domingo, 14 de agosto de 2011

Ódios de família na morte de Federico García Lorca


Ódios de família na morte de Federico García Lorca
Jorge Almeida Fernandes


O que teria acontecido se Lorca tivesse escolhido outro título para "A Casa de Bernarda Alba"? É uma especulação. Mas o seu assassínio, diz um historiador, terá mais a ver com uma guerra de famílias da Vega de Granada do que com razões políticas

Federico García Lorca foi assassinado na madrugada de 17 de Agosto de 1936, junto de um posto militar improvisado em Víznar, arredores de Granada. Faz 75 anos na quarta-feira. É um dos episódios mais obscuros da Guerra Civil Espanhola. A novidade é que a investigação histórica começa prevalecer sobre as lendas. Sabemos agora os nomes dos executores, de presumíveis mandantes e parte das circunstâncias do crime.

É uma história trágica e sórdida. "Para entender o assassinato de García Lorca temos de remontar aos seus antecedentes familiares no século XIX", escreve o historiador Miguel Caballero Pérez. "Não houve uma só razão. Foi uma concatenação de causas que deu lugar ao assassinato." Muitos dos crimes da Guerra Civil "tiveram a sua origem em desavenças privadas, estranhas a posicionamentos políticos, maceradas na cuba dos ódios e das vinganças familiares."

A pista dos ódios entre clãs da Vega de Granada foi documentada por Manuel Caballero Pérez e Pilar Góngora em "Historia de una família: la verdad sobre el assassinato de García Lorca" (Ibersaf Editores, 2007). Em Junho passado, Caballero publicou "Las trece últimas horas en la vida de García Lorca" (Esfera de los Libros), em que reconstitui a morte do poeta. "Não nos baseámos nos relatos da tradição oral, que apresentam sempre pequenos erros, mas em documentos absolutamente autenticados", diz.


Bernarda Alba

Lorca era filho de Federico García Rodríguez. Os García, os Roldán e os Alba eram famílias rivais, unidas por complexos laços de parentesco. Eram rendeiros que, na viragem do século, começaram a comprar as terras aos latifundiários absentistas. A perda de Cuba, em 1898, lançou a Andaluzia na produção de açúcar, o que fez prosperar os novos proprietários.

Os conflitos entre os García, por um lado, e os Roldán e os Alba, por outro, não decorriam apenas de rivalidades ou "canalhices" nos negócios. García Rodriguez e Alejandro Roldán Benevides eram também caciques políticos, o primeiro do Partido Liberal, o segundo do Partido Agrário. O advogado Horácio Roldán, filho de Alejandre, pertence à geração de Lorca e é o chefe do clã nos anos 30.

"A Casa de Bernarda Alba", a última obra de Lorca, ilumina o conflito. A personagem Bernarda remete para Francisca Alba; e duas outras são facilmente identificáveis: o marido e o genro - este sob o nome de Pepe el Romano. Federico fez leituras da peça em Madrid e repetiu-as ao chegar a Granada. Tê-la-á mostrado ao seu primo Alejandro Rodriguez Alba - filho de Francisca Alba e cunhado de Horácio Roldán.
A peça não é um retrato naturalista dos Alba. É um "drama rural" espanhol. A alusão aos Alba foi uma "vingança literária". A mãe e o irmão de Federico pediram-lhe insistentemente que retirasse o nome Alba. Ele recusou abdicar de um prazer.


"Onde estás, Federico?"

Durante três anos, Espanha esteve suspensa da "guerra" das exumações, desencadeada pela Lei da Memória Histórica (2007) e estimulada pelo juiz Baltasar Garzón. A "guerra" condensou-se em Lorca, "o mais célebre desaparecido da Guerra Civil". A família opôs-se - "Deixem os mortos em paz" -, mas acabou por ceder. As buscas criaram altíssimas expectativas. Mas as escavações de Novembro e Dezembro de 2009, em Alfacar, traduziram-se num retumbante fiasco. Os jornais passaram a perguntar: "Y ahora donde estás, Federico?"

As buscas seguiram a pista indicada pelo biógrafo oficial de Lorca, Ian Gibson, e por um investigador hispano-americano já falecido, Agustín Peñon. Baseavam-se no testemunho do empregado de mesa granadino Manuel Castillo, "Manolillo el Comunista", que afirmava ter enterrado o poeta. Mostrou o lugar a Peñon em 1956, a Gibson em 1966 e aos dois em 1976. Castillo fora já denunciado como impostor por outros investigadores, como o francês Claude Couffon. Gibson defendeu o seu testemunho mesmo depois do fracasso: "Que tinha ele a ganhar? Não me pediu dinheiro."

O fracasso das escavações em Alcafar levou também ao regresso de outra "tradição oral": a de que os restos mortais de Lorca teriam sido desenterrados pela família e sepultados clandestinamente na sua casa de Verão, Huerta de San Vicente. Seria a razão que levara os familiares a oporem-se à exumação. As lendas não morrem.

"Agora temos de reconsiderar a história desde a base", disse a historiadora Maribel Brenes. "A investigação de uma pessoa que se guia pelo coração e não pela cabeça nunca funciona", acrescentou o arqueólogo Francisco Carrión, aludindo a Gibson. "Além das pressões, há os mitos e as pessoas que vivem deles." Brenes e Carrión foram os responsáveis pelas buscas, nomeados por Garzón.


Desabam mitos

O fiasco da exumação teve um efeito inesperado: fez desabar algumas ideias feitas. Para lá do erro de localização, punha em causa muitos outros pontos - a data, os executores, os responsáveis últimos. Deitava por terra versões baseadas numa infinidade de testemunhos orais e em lendas politicamente orientadas.

A morte de Lorca era situada a 19 de Agosto (por vezes 18), apesar de haver desde 1983 uma rigorosa reconstituição da execução, feita pelo jornalista granadino Molina Fajardo, que dava a maioria dos nomes envolvidos. Lorca fora morto na madrugada de 17. Entrevistara 48 testemunhas da época e reunira numerosos documentos. Indicava o local onde Lorca teria sido enterrado. Mas Molina era falangista e o livro foi posto de lado como tentativa de branqueamento da Falange. A investigação de Molina foi o ponto de partida de Caballero, que confirmou e desenvolveu o essencial das suas hipóteses, após uma exaustiva exploração de arquivos.

Em qualquer história da Guerra Civil Espanhola se encontra a referência à conversa telefónica ou via rádio entre o general Queipo de Llano, comandante dos rebeldes na Andaluzia, e o governador civil de Granada, José Valdés. "Dále café, mucho café", teria ordenado o general. "Café" era o acrónimo de "Camaradas: Arriba Falange Española." Significava uma ordem de morte. O problema é que no governo civil de Granada não havia rádio e as linhas telefónicas tinham sido cortadas por milicianos republicanos. E Queipo não falava com Valdés, mas com o governador militar, o general Espinosa. Os biógrafos não investigaram o suficiente porque os testemunhos orais eram mais "interessantes" do que os documentos. Os historiadores reproduziram essas lendas, politicamente apetecíveis.

A execução de Lorca foi muitas vezes atribuída a Juan Luis Trescastro, advogado, cacique político e reaccionário notório. Vangloriou-se nos bares de Granada de lhe ter dado "dos tiros en el culo por maricón". Trescastro participou na detenção de Lorca, mas não esteve em Víznar. Ruiz Alonso, tipógrafo e ex-deputado da CEDA (direita), foi também acusado do assassínio. Dirigiu a captura de Lorca, mas não esteve no fuzilamento. Valdés Guzmán, o governador civil, que teria recebido a ordem de Queipo de Llano, estava ausente de Granada no dia da detenção. A ordem de prisão e execução teria partido do seu substituto, Nicolás Velasco Simarro, tenente-coronel da Guardia Civil na reserva.

A maior resistência é a do mito político: Lorca foi assassinado pelos falangistas, sob ordem de Queipo, porque era "vermelho, homossexual e inimigo da Espanha católica" (Gibson). Tornou-se num ícone dos "vencidos". Lorca era republicano, mas não "vermelho". Tinha amigos comunistas e falangistas - incluindo José António Primo de Rivera, o fundador da Falange.


A morte

Lorca partiu de Madrid para Granada dias antes da sublevação militar e instalou-se na Huerta de San Vicente. A 9 de Agosto foi objecto de uma provocação e insultado por uma "esquadra negra" aparentemente à procura de um dos caseiros. Refugiou-se em casa dos irmãos Rosales, três falangistas amigos, onde estaria em segurança. Era particularmente próximo do poeta Luis Rosales.

As 13h30 de 16 de Agosto, Ruiz Alonso, Juan Luis Trescastro e Federico Martin - ex-militar e recém-ingressado na Falange - apresentam-se em casa dos Rosales, com uma escolta de guardas, para deter Lorca. Os irmãos não estão em casa, apenas está a mãe. Transportam-no para o governo civil e entregam-no a Nicolás Velasco. Cerca das dez da noite, é levado para o campo militar de Víznar, onde será fuzilado, antes da quatro da manhã. Com ele foram executados, aparentemente com tiro de pistola militar, o professor primário Dióscoro Galindo e dois bandarilheiros anarquistas, Francisco Galadi e Julián Arcoya Cabezas. A muleta de Don Dióscoro, que era coxo, teria sido atirada para cima dos cadáveres - disse a Molina uma testemunha de Víznar. Um dos executores, que depois se vangloriará de ter dado dois tiros na cabeça do poeta, é Antonio Benavides Benavides, da família Alba e parente afastado de Federico.

Ainda hoje não se sabe quem foi o autor da denúncia que levou Ruiz Alonso à casa dos Rosales. Houve calúnias infamantes. Uma delas apontou o nome de Miguel, o mais velho dos Rosales. Outra indicou uma irmã de Federico, Concha, cujo marido, Manuel Montesinos, "alcalde" socialista de Granada, seria fuzilado no cemitério nesse mesmo dia. Teria entregue o irmão para salvar o pai.

Quem está por trás da morte de Lorca? Uma pista é a forma apressada e dissimulada do acto. Quem no dia fatal estava no comando do governo civil era Nicolás Velasco, amigo e protector de Horacio Roldán, sublinha Caballero. Os homens que o prendem, tal como os que o transportam a Víznar, seriam também amigos políticos dos Roldán. Quando Luís Rosales chegou ao governo civil, na tarde de 17, com uma ordem de soltura assinada por Espinosa, o governador militar, Federico já lá não estava.

"Y ahora donde estás, Federico?" Marguerite Yourcenar contemplou um dia a paisagem em que foi assassinado. "A Serra Nevada perfilando-se majestosa no horizonte. E disse-me a mim mesma que um lugar como aquele envergonha toda a pacotilha de mármore e de granito que povoa os nossos cemitérios, e que se pode invejar o irmão por ter começado a sua morte naquela paisagem de eternidade. Não se pode imaginar mais formosa sepultura para um poeta."

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