domingo, 21 de agosto de 2011

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA


JORGE TUFIC

RETRATO DE UMA OBRA-PRIMA


Rogel Samuel

O tema é banal, é vulgar. O tema é a mãe, tema já tão gasto pelo tempo dos cadernos poéticos e saudades. Todos nós tivemos ou temos, uma mãe a saudar, a lembrar, a louvar.

Mas Tufic é um poeta excepcional: Realizou sua obra-prima. Sonetos pós-modernos em que ele traça o perfil, o “Retrato de mãe“, de sua verdadeira mãe.

O livro todo está neste blog, logo abaixo.

http://historiadosamantes.blogspot.com/search/label/JORGE%20TUFIC


O livro é uma obra-prima em quinze sonetos. E começa por uma invocação:

Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios

Invocada, a mãe começa a delinear-se, começa a aparecer, nítida, forte, sim, ele começa a pintar o retrato interno da dulcíssima Mãe que logo todos nós assumimos, conjuntamente, nossa mãe síntese e simbólica, fonte, semente e nome de nossa vida, que tudo nos deu.


E neste segundo soneto logo aparece um mistério: Quem será este desconhecido Ramón que aparece no penúltimo verso? É D. Ramón Angel Jara, Bispo de La Serena, Chile, citado no pórtico do livro.


A descrição, o retrato começa pelos cabelos, as tranças, a voz, a lembrança.


Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.

Depois vem a casa, a cozinha, a Mãe prepara comidas da culinária libanesa, a lentinha, o azeite, as cebolas fritas, a coalhada, o pão redondo, tudo isso passou.

Ao redor da casa, o vento. Também passa. A cerca do quintal, os vizinhos, as vozes cantam, e passaram. O que passa é o calendário sem datas, o chão do passado, o que passa, mas volta agora.


Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites
para a janta frugal e acolhedora.
Nos arredores brinca o vento: a cerca
divisória, talvez, nada separa.
Vizinhando quintais vozes fraternas
cantam, mandam recados de ternura.
Assim te vejo, mãe, rosto suado
na lida da cozinha ou pondo a mesa.
Terrinas de coalhada, o pão redondo
a recender de ti, mais que do trigo.
Calendário sem datas, chão de outrora,
como tudo passou se tudo é agora?


Que dizer sobre o quarto soneto? Escreveu Dom Ramon Angel Yara, bispo de La Serena, Chile, no seu igualmente “Retrato de Mãe”: "Uma simples mulher existe que, pela imensidão de seu amor, tem um pouco de Deus; E pela constância de sua dedicação, tem muito de anjo; Que, sendo moça, pensa como uma anciã e, sendo velha, age com as forças todas da juventude; Quando ignorante, melhor que qualquer sábio desvenda os segredos da vida, e, quando sábia, assume a simplicidade das crianças;
Pobre, sabe enriquecer-se com a felicidade dos que ama, e, rica, empobrece-se para que seu coração não sangre ferido pelos ingratos; Forte, entretanto estremece ao choro de uma criancinha, e, fraca, entretanto se alteia com a bravura dos leões; Viva, não lhe sabemos dar valor porque á sua sombra todas as dores se apagam, e, morta, tudo o que somos e tudo o que temos daríamos para vê-la de novo, e dela receber um aperto de seus braços, uma palavra de seus lábios. Não exijam de mim que diga o nome dessa mulher, se não quiserem que ensope de lágrimas este álbum porque eu a vi passar no meu caminho. Quando crescerem seus filhos leiam para eles esta página: eles lhe cobrirão de beijos a fronte; e dirão que um pobre viandante, em troca de suntuosa hospedagem recebida, aqui deixou para todos o retrato de sua própria mãe... (Tradução de Guilherme de Almeida).

Que dizer do quarto soneto? Trata da permanência da mãe. Mãe não morre nunca. Somos nós mesmos.


Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
suavíssimo que vinha do teu corpo,
do pólen de tuas mãos, do hortelãzinho.
Em tudo, minha mãe, teu vulto amado
se desenha mais firme, e, lentamente,
vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa
desses anos que pesam sobre mim.
Em tudo, minha mãe, vejo este lenço
que à passagem da dor recolhe o traço
do sorriso que foste a vida inteira.
E, mesmo quando morta, entre açucenas,
ainda ressai de ti, poder divino,
a canção que adormece o teu menino.

Essa é a permanência da mãe, mesmo morta, ainda canta, ainda existe, ainda alivia, ainda consola, ainda sorri.

A mãe é eterna!

Sim, mas morre: é o quinto soneto. A morte do eterno. A queda dos deuses... E num domingo! É o soneto da morte, do fim. O Eterno, como bem viu Hannah Arendt, é a eternidade do instante. O imortal é a presença da lembrança.

Numa tarde opressiva de domingo,
o estrondo de tua queda: a irreversível
fratura que me dói quando te lembro
de olhos fixos em mim, quase a dizer-me
adeus, lágrimas ácidas rolando
sobre abismos drenados- tal o impacto
na dureza do chão, tal a dureza
do impacto na ossatura envelhecida.
Ninguém para colher-te o desamparo
desse tombo sem grito; apenas gestos
e vozes pressentidas me indicavam
zombeteiro demônio. Quem mais, Senhor,
de tão covarde, cínico e vilão,
faz da morte uma simples diversão?


A seguir se volta para o tempo materno, ou seja, a infância, iluminada época da Mãe, mãe protetora armadura fonte. Nossa juventude dela vinha, nossa fartura se originava nela. A poderosa Mãe, entretanto pobre, que se inquietava na escassez. Mãe bela, esbelta, musical. Mãe mítica! Poderosa fantasia posta em ouro. Brilhos e luas. Amada que quando voltava trazia o mundo inteiro em seus cabelos, em suas vestes, em suas mãos.

Nossa infância era toda iluminada
pelas fontes da tua juventude.
Armadura que tínhamos freqüente
para afastar as sombras e o perigo.
Eram fartos os dias com teus peixes
mergulhados no arroz: postas de ouro
não largavam seus brilhos nem suas luas.
Na escassez, entretanto, te inquietavas.
Ainda te vejo, o porte esbelto indo
por aqueles baldios transparentes
onde a luz, de tão verde, pincelando
os ermos, quanta música expandia!
Voltavas quase noite ao doce abrigo,
e o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.

O texto é escrito com o intuito, com a busca de recuperar a imagem daquela criatura divina, dama antiga, fada e santa, busca infinita de volta ao útero materno, ao ninho antigo, àquele aconchego materno, onde tudo estava em paz, onde nela nos alimentávamos, nos encontrávamos com nossa originária semente, e para isso, para esse canto, o poeta pede a voz do pássaro, o pedal das nuvens, procurou, como Narciso, na água dos regatos, a imagem aquela que em nós dela nunca se esquece.

Mas nada.

Somente nos versos há a sua fotografia.

Mas...

Fui pedir ao canário que me desse
um raspão do seu canto fragmentário;
fui às nuvens do céu pedir mais nuvem
para o leve pedal que emite a voz;
debrucei-me, também, sobre os regatos
em busca de tua face; a brisa, enfim,
tentara descrever-te mas não pôde.
Andei, assim, por montes e calvários.
Ajoelhei-me ante o Cristo, bebi vinho.
Nada pude captar, nenhum remorso
fora maior que o meu nessa procura.
Somente agora, mãe, na tecelagem
destes versos que fiz para louvar-te,
em tudo posso ver-te e posso amar-te.

O que a lembrança traz, porém, gera um pavor, o horror da recordação, o recordar aquela cena que não devia de ser nunca recordada, a agonia, a morte, a terrível e insuportável cena da morte, daquela que foi fonte da vida, da alegria, da proteção, abrigo, auxílio, amparo, e por quê?, e como de repente aparece este “estavas, posta no esquife” - Não! Não quero vê-la! Não a posso ver, ainda que ela estava ali liberta como numa trono, entronizada no Eterno sono, o sonho rente à luz, Iluminada – a morte veio mas também vieram as galáxias, vales luminosos, auroras – mas por teres ido ficam mais sombrios os dias aqui deixados:

Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.
Tão branca e tão distante companheira
destes ventos na pausa da agonia.
Quisera ter morrido quando foste,
nave de ti somente, abrindo rotas
na invisória partida, nesse coro
latente em nossas almas. Parecias
dormir, então, liberta como um trono.
Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,
corpo de insones ânforas, mãezinha,
que sei de ti nos guantes da saudade?
Que sabemos de ti quando te vais,
se o teu vazio é feito de punhais?


Dormindo vinhas, mãe, já rente à brisa,
aos telhados de Sena, rente às asas
dos Derwiches que em sonho acorrentavas,
rente ao chão, rente à luz, à névoa rente
sobre a qual repousavas como em sonho.
Na música de um verso ou na toada
das cachoeiras, metáforas de ti
sobrevoam meus olhos consolados
pela visão dos seres que encarnaste.
A morte também veio, barulhenta,
mas galáxias cintilam nos teus passos,
vales de auroras curvas te embalsamam.
Por teres ido, fica mais sombria
a terra onde plantaste o nosso dia.



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