terça-feira, 31 de maio de 2016
A PANTERA 8 (ROGEL SAMUEL)
A PANTERA 8 (ROGEL SAMUEL)
Passaram-se vários dias sem que encontrássemos a pantera, e por isso julgamos que ela tinha sido morta na batalha, quando vimos uma lagoa ingente, açoitada dos ventos da montanha, como o que flagela o vento e ao rumo minhas ideias se volveram.
Mas ali buscamos beber.
Jara pode pescar estranhos peixes que comemos. “Mas andemos” – disse-me Jara, “prossigamos nossa empresa, vem no horizonte a noite assomando, e mais além a rota da passagem se faz escura”.
Passamos apreensivos aquela noite e quando acordamos, no meio da campina, vejo, feroz, um monstro desconhecido, como quem lá estava à espera e atento à nossa morte, que à vista se fazia pavoroso. Estávamos num caminho quase escondido, na borda de uma ribanceira, de forma que o monstro, que era um búfalo ou um touro, nos fechava e ameaçava avançar e então Jara disse: “Rápido demandemos a entrada da passagem” e eu cismava: “estamos agora em ruína”, que do horrendo monstro eu via a ira já vencida. “Deves saber que, uma vez descendo ao extremo desse bosque, lá em baixo esta rocha não está como estás vendo”. Mas desse vale temi tanto a profundeza, que pensei cairmos no profundo.
Foi então que vi que minha amiga nos conduzia por uma vereda estreita de pedra de onde víamos o vale e um rio, no fundo da distância. E uma cava divisei por onde passar não podia um animal daquele porte, que arqueava no seu plano inteiro, como quem quisesse que do mal se afastasse. E no espaço em que o penhasco dá passagem veio o monstro descer nos vendo mais acima. O arco e os arremessos preparando estava Jara, quando um brado de longe nos soara, que despertou o monstro para trás, olhando. Senti logo a pantera vindo, como quem vingara quem fatal lhe fora.
Aqueles dois monstros logo se encontraram, e a guerra entre eles iam começar, em nome do que os passos meus em tão medonha estrada continuaram. E Jara volveu-se à destra, segurou-me, e disse: “Não olhe para trás, vamos descendo para o caminho mais largo, para sairmos daqui o quanto antes”. E partimos naquela companhia das ondas de horror que no ar subiam, daquele agudo estridor que vinha ao longe daquelas duas feras em luta de morte que se enfrentavam, e mesmo de longe o sangue me faltava.
Não estávamos ainda livres disso quando por um bosque penetramos, de vestígios e de traços não marcados, sem frondes verdes mas escuras e cujos galhos nodosos e espinhentos tinham flores e frutos venenosos.
Ainda soavam nas selvas os uivos dos insanos ferozes inimigos que se estavam matando, quando Jara me alertou: “Não encontraremos daqui em diante lugar onde com calma possamos descansar, pois essas matas por aqui são possuídas de estranhas torvações”.
E asas negras rodopiando nos céus, garras afiadas ameaçando, apareceram e Jara me insta de segui-la, e dali a curta distância nos afasta das aves cujos sons ouvíamos, quando um rio aparece descendo a montanha, de águas geladas retombando e caindo pelas encostas.
Ah, por meus deuses, foi quando ouvimos o grito estrídulo da besta, que de longe se aproximava.
Mas muito tempo caminhamos em silencio para nos afastar do animal sangrento, quando chegamos à beira de um penhasco. De uma corda eu me achava então cingido, que a tirasse Jara me dissera, e eu logo a entreguei como ela prescrevera. Então ela à direita se voltando à borda do abismo infando: “Surgirá, em breve, novo perigo, trazido pela besta dos infernos. Precisamos logo sair”. E assim começamos a descida, lentos e cautelosos, protegidos pela corda, mas ao longe antevimos a fera de horrenda cauda e bafo imundo. E logo atravessamos para o outro lado: “Convém seja o caminho desviado da senda” disse-me ela. E seguimos pelo lado direito por duas horas de lenta e dolorosa caminhada até bem longe daquele abismo ingente.
http://apanteraderogelsamuel.blogspot.com.br/
domingo, 29 de maio de 2016
ANIVERSÁRIO DO MAHASSIDHA VIRUPA
REZA AO MAHASIDHA VIRUPA
Mahassiddha Virupa (pintura de 1500)
Precioso e glorioso Guru Raiz,
Assentado no assento de loto na coroa de minha cabeça,
Tendo sido aceito pelo portal de sua grande bondade,
Conceda-me as realizações de Corpo, Fala e Mente.
A La La!
É inconcebível testemunhar sua glória brilhante,
Surgida do simultaneamente nascido,
Livre de elaboração, Oh Mestre Virupa,
Você se tornou meu Senhor. E MA HOH!
O poder de seu brilho elimina todo o pensamento,
Depois de encher o ar das três portas com as quatro alegrias e
Tendo despertado felicidades e vacuidade do estupor de ofuscações habituais,
Eu ofereço esses elogios a inspirar me.
Possuindo bem-estar consumado e auspiciosidade dos dois propósitos,
Por sua onisciência e compaixão demonstrou você
O caminho excelente para estabelecer os discípulos afortunados para atingir Nirvana.
Ao que exibiu o jogo da imutabilidade sublime, prosterno-me eu.
Tendo renunciado a vida de dono da casa real,
Tomando ordenação e dominando as cinco ciências,
Tido sido aceito por milhões de Sthaviras,
Para você que ficou renomado como o Sthavira Dharmapala, eu me prosterno.
Dotado do três treinamentos significativos e
Tendo-se tornado um explicador insuperável das escrituras de grande luminar,
A força de vida dos ensinamentos, o segundo onisciente,
Para você que não tem nenhum rival nesta terra, prosterno-me eu.
Depois de satisfazer grandes assembléias reunidas por toda parte,
Com a ambrósia de fases múltiplas dos veículos,
Você foi liberado como um praticante noturno secreto.
Para você que atingiu o sexto bhumi pela orientação de Vajra Nairatmya, prosterno-me eu.
Para guiar os seres exibindo “charya” conduta
Adotando comportamento humilde entre a sangha,
Vagar então por aldeias você tornou-se itinerante.
Para você que é renomado como o Virupa, prosterno-me eu.
Tendo separado o Ganges você subjugou o incontrolável,
Segurando o sol, você consumiu o licor de muitas terras sem se tornar
intoxicado,
Você quebrou o Linga e dominou Candali.
Para você que é conhecido como o Senhor do Poder, prosterno-me eu.
Tendo exibido feitos mágicos imensuráveis
Você subjugou o herege Kartika em Saurastra.
Você penetrou o espaço inteiro com sua compaixão que está além de objeto.
A você que desfruta as grandes felicidades da não-dualidade, prosterno-me eu.
Como todos os fenômenos são perfeitamente puros, felizes e vazios,
Para perceber isto, demonstrou você rapidamente
O caminho profundo das quatro linhagens secretas sussurradas.
A você que amadureceu e liberou tantos seres afortunados, prosterno-me eu.
Ema!
Até que minha mente obtenha completa
Liberação da esfera de pureza,
Que eu possa ser abençoado com seu aparecimento direto
Que surge nova e novamente.
Tendo transmitido a continuidade de néctar,
Pelo poder de sua compaixão.
Possa tudo ser dotado do significado completo e perfeito.
Também possam todos os seguidores manter a prática
Dos dois estágios inseparáveis.
E sem enfrentar obstáculos no caminho
Possam eles beneficiar outros seres pelos Ensinamentos.
Estando cheio das quatro alegrias
Dos completamente puros modos de ar das três portas,
Que eu possa dissolver os quatro portões essenciais e assim
Atingir a fase do Senhor que segura o Vajra.
Possa este lugar (Sá), onde eu moro,
Ficar renomado na terra e nos céus.
Que possamos desfrutar da prosperidade da ação virtuosa que é
Branca (Kya), como a lua e a flor de Kumuda.
(Colofão.)
Sakya Kunga Nyingpô compôs este elogio espontaneamente pelo poder da devoção, quando o Mahasiddha Virupa apareceu no céu em uma postura sentada sobre a paisagem branca, seu corpo cobrindo desde Baldog até Maldog Gorges, as suas mãos no dharma mudra pedagógico, com Krishnacharya à direita dele, Gayadhara à esquerda, Kokalipa atrás e Vinasana na frente. Neste momento Virupa deu as quatro iniciações, bênçãos e explicações do Caminho Escondido, a explicação do Vajra.
Trad. R. Samuel
quinta-feira, 26 de maio de 2016
O RATO DA ROUPA DE OURO, OU A ROUPA DE OURO DO PODER
O RATO DA ROUPA DE OURO, OU A ROUPA DE OURO DO PODER
ROGEL SAMUEL
Dir-se-ia que Dilson Lages Monteiro desenhou um retrato do Poder do Brasil de hoje. Mas o livro foi escrito e publicado em 2013.
Por isso a crítica literária há séculos que diz: o Poeta é um profeta.
O Rato vive uma estória de Poder. Ele aproveita uma “crise” para virar Rei, pois na tempestade cai numa antiga mina de ouro e se torna Rei do Ouro, transforma-se em ouro, veste-se ouro...
Porém todo poder é temporário... nova tempestade transforma sua vida... as serpentes voltam a ameaçar... o rato, de Rei volta a seu esgoto...
Quando saiu, o livro foi sucesso de público e de crítica. João Castello, de “O Globo”, teceu elogios e viu o potencial dessa estória,
Mas não é só um livro para criança...
É uma metáfora, uma foto do Brasil.
O livro é uma obra-prima.
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OU A ROUPA DE OURO DO PODER
quarta-feira, 25 de maio de 2016
EM BUSCA DA POÉTICA DE J. G. DE ARAÚJO JORGE
EM BUSCA DA POÉTICA DE J. G. DE ARAÚJO JORGE
Rogel Samuel
Faço aqui uma breve tentativa de ensaio crítico sobre este grande poeta – e como “ensaio”, algo provisório, limitado a alguns poemas de “Harpa submersa” (1952), para mim reveladores, indicadores daquela arte do poeta acreano, no centenário de seu nascimento. Até hoje, ele ainda é o poeta mais lido do Brasil, porque popular, fácil, melódico, oral. De certo modo, o maior poeta para o povo brasileiro. Famosíssimo mesmo hoje, tantos anos depois de sua morte (1987), publicou 36 livros, um romance, 2 LPs, várias músicas, manteve programa de rádio, é nome de rua no Rio de Janeiro e em várias cidades brasileiras. Suas músicas foram gravadas por Orlando Silva, Nana Caymmi, Carlos Galhardo, Silvio Caldas, Agnaldo Timóteo, etc. Foi professor do Colégio Pedro II, no tempo em que lá só chegavam grandes mestres. Enfim, uma vida plena e gloriosa. Morreu aos 73 anos. A obra literária, sua poética, se confunde com a sua ideologia política, que ele escreveu para povo, para o leitor semialfabetizado, rural, proletário, operário, para as belas normalistas suburbanas, que com elas queria comunicar-se, para as massas, deu voz às massas, como poeta. Creio que foi o único parlamentar brasileiro moderno que conseguiu eleger-se como poeta, com a fama de Poeta, com a popularidade de seus livros, que eram publicados e vendidos aos milhares, mesmo no interior brasileiro, em papel jornal pela Editora Vecchi. “Amo!” vendeu 80 mil. Ele foi o único poeta brasileiro que vendeu mais de um milhão de livros. JG por volta dos 18/19 anos. Foto cedida por Rogel Samuel, retirada de livro do poeta. Nasceu em 20 de maio de 1914, em Tarauacá (que na época devia ser uma pequena vila na beira do rio), no Acre. Curso primário no Acre, secundário nos Colégios Anglo-Americano e Pedro II do Rio. Em 1931, ainda estudante, publicou um poema no “Correio da Manhã”, depois transcrito no popular “Almanaque Bertand”, em 1932. Em 1932, no Externato Pedro II, foi escolhido “Príncipe dos Poetas”, saudado por Coelho Neto. Estudou na Faculdade Nacional de Direito da Universidade do Brasil. Foi orador oficial do CACO, da União Democrática Estudantil, precursora da UNE, da Associação Universitária. Foi locutor e redator da Rádio Nacional, Tupi e Eldorado. Em Coimbra, recebeu o título de “estudante honorário” e na Alemanha fez Curso de Extensão Cultural na Universidade de Berlim. Elegeu-se Deputado Federal em 1970, pela Guanabara, reelegendo-se para o terceiro mandato em 1978. Ocupou a vice-liderança do MDB e a presidência da Comissão de Comunicação na Câmara dos Deputados. Só não foi reeleito pela 4ª vez devido na uma greve dos Correios, que (dizem) o deixou endividado e deprimido, morrendo anos depois, em 1987, creio que em Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. Ele adorava Friburgo. Politicamente, era homem de esquerda, desde estudante, quando combateu o “Estado Novo”. Preso e perseguido várias vezes. Deixou de ser orador de sua turma por estar detido na Vila Militar, em 1937. Ficou famoso como Poeta do Povo e da Mocidade, pela mensagem socialista da sua obra lírica. Um dia, uma pessoa querendo me ofender, me disse: - Sabe quem gostou do seu livro?... A minha empregada! Isto não seria problema para o grande J. G. de Araújo Jorge, que se dirigia à massa proletária! Ele mesmo tem um livro que se chama “O poeta na praça” (1981). Sua poesia é oral, livre, espacial, fácil. Como não compreender sua poética? “O diabo é que não sou complicado / sempre sei o que sinto, o que quero, / pelo menos no momento que passa. // Por isso não tenho dificuldade em meu verso, / na verdade, não tenho nenhum trabalho, / ele vem e me diz: aqui estou! / Pois bem: que cante!” (“Harpa Submersa” 1952 ) No seu “Canto Banal”, ele diz: “Não te quero dizer palavras difíceis e deformantes / nem inventar imagens que embelezam talvez / mas que não reconheces. // Não tocarei música para os teus ouvidos / nem criarei poesia para a tua imaginação, / nem nada esculpirei que já não esteja em ti... // Nesse instante serei banal, / não respeitarei nem mesmo o silêncio, / nada que nos eleve além do plano em que estamos, / não serás estrela, não serás a nuvem, não serás a flor... // Quando chegares, e eu tomar teu corpo em meus braços nervosos, te direi apenas: / - meu amor!” (“Harpa Submersa” 1952). Ele também sabia dizer coisas como: “Meu coração, como uma harpa submersa, / jaz no fundo de que ignorado oceano? / Que estranhas correntes arrancam de suas cordas / sons líquidos e redondos que se perdem côncavos / antes de chegar à tona?... // Que peixes cegos tiram notas imprevistas / e se vão tontos na ondulação do canto que despertam / entre espectros calcários e verdes algas trementes? // Que músicas borbulhantes se agitam, nascidas / de que movimentos sem origens, incognoscíveis, / marcando um tempo morto e imensurável? // Meu coração é como uma harpa submersa, / sem dedos, sem cordas, tocando sozinha / uma canção que desvenda os mistérios da vida / para os peixes ouvirem.” (“Harpa Submersa” 1952). Que significa Harpa Submersa? Harpa Submersa “/ Este retardatário gosto de pureza, / que me vem à boca do fundo coração, / não sei se é tédio ou o sinal de alvoradas renascentes. / Na areia branca onde a onda tenta apagar/ vestígios de pés e levar todas as conchas, / me deixo à espera de outras vagas carregadas de conchas / ou de passos que tatuem novas marcas / na epiderme do coração. / Pobre coração marinheiro, tão marcado, / de que canto obscuro desenterras imprevistamente / esta harpa cheia de algas e de sons submersos?” (“Harpa Submersa” 1952). A água é signo feminino. Ele sabe tocar o âmago da mulher, tocar a sua Harpa, o seu ventre submerso. O canto lhe vem à boca, do fundo do mar do coração. O canto nasce imprevisto do obscuro das algas, do som submerso daquela harpa cheia de algas, de pureza retardatária, do seu itinerário, das marcas na areia do chão de sua vida. Harpa Submersa significa “ventre submerso”. Ele é o poeta do sentimento, do amor, do itinerário da vida. Ele era um “poeta popular” sim. E a depender dos leitores, o poeta da Harpa Submersa vai se tornar eterno. Ele não entrou na Academia Brasileira, mas se sentia “Imortal”: “Me sinto na academia, me sinto “imortal” / Não sei bem de que academia / nem sei a que morte me refiro / sei que neste momento me sinto como as crianças / e os animais / para quem a morte não é nem mesmo, / uma palavra que se lê.” Por que deputado? Por que o grande poeta do povo entrou na política? Por que foi um grande político de esquerda, tão grande que morreu pobre e endividado? Porque toda poesia é uma política. Política entendida como a arte de mudar o mundo. Era no mundo grego a “arte da polis”. A consciência comunicativa vigorava na polis grega, entre os homens livres. Mas a poesia só manifesta “arte” na medida em que está a serviço da “polis”. O mundo poético é o mundo da sociedade. A poesia, tal como ele a praticou, resume uma grande força política em prol do desenvolvimento espiritual dos povos. O poeta dá voz aos povos, como um profeta, as massas se identificam com ele. Ele não era porta-voz da classe dominante, da elite intelectual dominante, que combateu e por isso ela se vingou, apagando o seu nome das histórias da literatura. Mas ele não precisava disso. Sua legitimação vinha do povo. Ele fez política, fez política com a sua poesia de amor. Quando canta: “meu coração é como uma harpa submersa, / sem dedos, sem cordas, tocando sozinha / uma canção que desvenda os mistérios da vida / para os peixes ouvirem” – tais peixes atuam, nadam no subconsciente revolucionário das massas proletárias. Poucos como ele sabem que a poesia pode mudar o mundo. Por isso ele não consta das histórias literárias e a crítica o ignora. O seu público é outro: JG escreveu para a massa proletária dos “homens tristes” (de que ele sempre fala), para o verdadeiro Brasil operário. Hoje ele seria aceito? Não sei. Talvez. Mas não pela mídia, que a elite dominante continua a mesma e mais entrincheirada. O Brasil está cheio de grandes poetas esquecidos da mídia e da crítica. Mesmo assim JG colecionou prêmios acadêmicos, como o “Prêmio Raul de Leoni”, para o melhor livro de poesia do ano, prêmio oferecido pela Academia Carioca de Letras, com o livro “Eterno motivo”, em 1943. E até agora ele vende muito: seus livros são os primeiros a vender nos sebos, quando aparecem. Suas obras estão quase todas na Internet. Mas em Tarauacá, onde nasceu o poeta, não existe nenhuma livraria... ________________________________________________________________________________ ROGEL SAMUEL é doutor em Letras e professor aposentado da Pós-Graduação da UFRJ. Poeta, romancista, cronista, webjornalista. É autor, entre outros, de O Amante das Amazonas (2005, 2a edição), Novo Manual de Teoria Literária (2013, 6a reimpressão); Teatro Amazonas (2012); e Modernas Teorias Literárias: breve introdução (2014). Visite a página pessoal do autor: literaturarogelsamuel.blogspot.com
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segunda-feira, 23 de maio de 2016
O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL
Um obscuro deus dorme, no inominável, no universal, imerso, incompleto, pré-histórico há um milhão de anos, desde que aquilo era mar. Estamos a 3.100 km de Manaus. Gabriel Gonçalves da Cunha comprara o rio Jordão e toda a margem esquerda do Igarapé Bom Jardim, até o Igarapé São João e um furo do Igarapé Cruzeiro do Sul. Isolava o Seringal Manixi. A cotação da borracha amazonense sobe na Bolsa de Londres. Aumenta a produção dos pneumáticos. O Amazonas, único produtor de látex do mundo. Manaus rica, copia Paris. Comerciantes enriquecem. Ostenta o Teatro Amazonas os seus espelhos de cristal. Os milionários jogam cartas com anelados dedos pesados de diamantes, arriscando fortunas no Hotel Cassina, no Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta. Telhas de Marselha ao luar na Rua dos Remédios, na Rua da Glória. Arquitetura art-nouveau do palácio de Ernest Scholtz - depois Palácio Rio Negro, sede do Governo. Arandelas, bandeiras, implúvio. Intercolúnio. O cunhal, o lambrequim, a voluta, o capitel, a cornija. Arquitrave. Barrete de clérigo, adufa, muxarabi, água-furtada, muiraquitã, envasadura, atleta, estípite. O enxalso, o frontão de canela. Galilé. Pequena Manaus, grande Paris!. Lojas, magazines, charutarias, livrarias, alfaiatarias, ourivesarias. Bissoc. Pâtisserie. Du sucre, des fruits, de la crème. A la ville de Paris, Au bon marché, Quartier du temple, Damas do Gabinete Villeroy, Casa Louvre, Livraria Palais Royal (na rua Municipal, n0 85, as novidades literárias), Livraria Universal, Agência Freitas, Casa Sorbonne (dentro do Grande Hotel), a Confeitaria Bijou, a Padaria Progresso. Faroletes de pedra de morona e de puraquequara. A bela Villa Fany, luxuosíssima. O Cais dos Barés, a Biblioteca Provincial (que incendiou fraudulentamente, para destruir os Arquivos Públicos, nos fundos). O prédio dos Educandos Artífices que deu nome ao bairro. Amazon Steamship Navigation Co. Um prédio importado, peça por peça, da Inglaterra: a Alfândega, montada aqui. Outro, projeto do próprio Gustavo Eiffel, de ferro: o Mercado Municipal. Um Serviço Telefônico serve a cidade. A eletricidade ilumina as ruas de Manaus no início do Século, talvez das primeiras cidades brasileiras a ter este serviço. Calçadas da Praça São Sebastião, em pedras portuguesas pretas e brancas, em ondas que alegorizavam o “encontro das águas” do Negro e Solimões (posteriormente imitadas na praia de Copacabana). Bondes elétricos da Manaus-traways. Bebe-se Veuve Clicquot, truffes, champignon. Huntley & Palmers, Cross & Blackwell. A Cork, a Pilsen, o Bordeaux, o fiambre, o Queijo da Serra da Estrella. Lagostas, a Goiabada Christalizada. Charteuse, Anizette. Champagne Duc de Reims. O Vermouth. Água de Vichy. Leite dos Alpes Suíços. Casacas inglesas, o H. J., o pongê, o filó. Bengalas de castão de ouro. Cartolas, luvas, perfumes franceses, lenços de seda. Pistolas de prata e cabo de marfim. Gramophones de Victor. Discos duplos de Caruso. Casas aviadoras. O Amazonas participa da Exposição Comercial de St. Louis, no Missouri, e posteriormente da Exposição Universal de Bruxelas, onde ganha 32 medalhas de ouro, 39 de prata, 70 de bronze, 6 Diplomas de Honra e os 13 Grandes Prêmios. Manaus-Harbour. Tabuleiro de Xadrez. Óperas, óperas, óperas. Diariamente. Prostitutas importadas. A Cervejaria Miranda Correia.
terça-feira, 17 de maio de 2016
A COLEÇÃO CENTENÁRIO
A COLEÇÃO CENTENÁRIO
ROGEL SAMUEL
Recebo, com emoção e surpresa, a totalidade da
COLEÇÃO CENTENÁRIO, da Academia Piauiense de Letras. E começo a leitura
imediata pelo livro de João Pinheiro, “Literatura piauiense”, onde, é claro,
meus olhos buscam logo o poeta Taumaturgo Vaz, que viveu e produziu no Amazonas.
Então passo a ler a obra do famoso Félix Pacheco e de
Hardi Filho.
No livro de João Pinheiro encontro várias páginas
de referência ao herói Gregório Thaumaturgo de Azevedo, fundador da cidade de
Cruzeiro do Sul, governador do Piauí e do Amazonas, erudito, autor de várias
obras, inclusive “O Acre”, em colaboração com o sábio Clóvis Beviláqua.
O Piauí pode-se considerar orgulhoso pela
publicação dessa Coleção, atualmente de 52 livros, mas que deve chegar a 100
volumes.
Espero que não se esqueçam de publicar a obra do
Castelinho, o Carlos Castelo Branco, o maior cronista político de minha geração,
que era membro das Academias Piauiense e Brasileira de Letras.
Castelinho faz falta hoje. Ele era o autor que eu
lia diariamente pelo jornal durante creio que 20 anos.
Sua opinião
era segura.
sábado, 14 de maio de 2016
SEM PAI, NEM MÃE
Sem pai nem mãe
Sem pai nem mãe
NEUZA MACHADO
(Foto Xíxaro: carregador do cais do porto de Manaus)
“Sem pai nem mãe, nem parente algum de que tivesse notícia”. Em um dia qualquer do presente histórico (“como se tudo tivesse bem pensado”, muito consciente de que a grandeza imperial do Manixi “não mais existia”, consciente de que “o Palácio onde ele agora morava”, em seus sonhos de “meia-noite psíquica”, “estava em ruínas”), o neo-personagem Ribamar de Sousa se vê afastado do posto de primeiro narrador, submete-se a um segundo narrador (que contará aos leitores a sua ascensão e glória na Grande Cidade), e, atendendo a um pedido de Maria Caxinauá, resolve mudar-se para Manaus.
Neste ponto do relato, o(s) narrador(es) (s) sofre(m) o que Gaston Bachelard denomina “endosmose do devaneio e das lembranças”[lii], o que configura a necessidade de voltar(em)-se para dentro, protegido(s) por uma membrana ou placa porosa (de acordo com os ensinamentos da Física), em outras palavras, um renovado desenrolar ficcional entre duas matérias líquidas (ambas propensas à profundidade) de espessuras corpóreas diferentes.
No início do romance, o primeiro narrador Ribamar de Sousa apresentou a sua trajetória ficcional de dentro para fora (a técnica do olhar), buscando, por meio de simulacro narrativo (marca das narrativas pós-modernas), retomar a própria história de vida do segundo narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração e a história sócio-mítico-substancial do Estado do Amazonas. O ato de narrar de dentro para fora, resguardado pelo aparato histórico e pelo arcabouço mítico particular e/ou universal, ao mesmo tempo em que revelava um passado de glórias (de luxo e de riquezas), provindos da extração da árvore da Seringa, desenvolveu-se muito bem camuflado, propiciando ao primeiro narrador a exterior explanação de verdades não-autorizadas pela consciência intelectualizada do segundo narrador.
O fogo da labareda da serpente
Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel
domingo, 8 de maio de 2016
RETRATO DE MÃE DE JORGE TUFIC
RETRATO DE MÃE
RETRATO DE MÃE
Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios
Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.
Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites
para a janta frugal e acolhedora.
Nos arredores brinca o vento: a cerca
divisória, talvez, nada separa.
Vizinhando quintais vozes fraternas
cantam, mandam recados de ternura.
Assim te vejo, mãe, rosto suado
na lida da cozinha ou pondo a mesa.
Terrinas de coalhada, o pão redondo
a recender de ti, mais que do trigo.
Calendário sem datas, chão de outrora,
como tudo passou se tudo é agora?
Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
suavíssimo que vinha do teu corpo,
do pólen de tuas mãos, do hortelãzinho.
Em tudo, minha mãe, teu vulto amado
se desenha mais firme, e, lentamente,
vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa
desses anos que pesam sobre mim.
Em tudo, minha mãe, vejo este lenço
que à passagem da dor recolhe o traço
do sorriso que foste a vida inteira.
E, mesmo quando morta, entre açucenas,
ainda ressai de ti, poder divino,
a canção que adormece o teu menino.
Numa tarde opressiva de domingo,
o estrondo de tua queda: a irreversível
fratura que me dói quando te lembro
de olhos fixos em mim, quase a dizer-me
adeus, lágrimas ácidas rolando
sobre abismos drenados- tal o impacto
na dureza do chão, tal a dureza
do impacto na ossatura envelhecida.
Ninguém para colher-te o desamparo
desse tombo sem grito; apenas gestos
e vozes pressentidas me indicavam
zombeteiro demônio. Quem mais, Senhor,
de tão covarde, cínico e vilão,
faz da morte uma simples diversão?
Nossa infância era toda iluminada
pelas fontes da tua juventude.
Armadura que tínhamos freqüente
para afastar as sombras e o perigo.
Eram fartos os dias com teus peixes
mergulhados no arroz: postas de ouro
não largavam seus brilhos nem suas luas.
Na escassez, entretanto, te inquietavas.
Ainda te vejo, o porte esbelto indo
por aqueles baldios transparentes
onde a luz, de tão verde, pincelando
os ermos, quanta música expandia!
Voltavas quase noite ao doce abrigo,
e o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.
Fui pedir ao canário que me desse
um raspão do seu canto fragmentário;
fui às nuvens do céu pedir mais nuvem
para o leve pedal que emite a voz;
debrucei-me, também, sobre os regatos
em busca de tua face; a brisa, enfim,
tentara descrever-te mas não pôde.
Andei, assim, por montes e calvários.
Ajoelhei-me ante o Cristo, bebi vinho.
Nada pude captar, nenhum remorso
fora maior que o meu nessa procura.
Somente agora, mãe, na tecelagem
destes versos que fiz para louvar-te,
em tudo posso ver-te e posso amar-te.
Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.
Tão branca e tão distante companheira
destes ventos na pausa da agonia.
Quisera ter morrido quando foste,
nave de ti somente, abrindo rotas
na invisória partida, nesse coro
latente em nossas almas. Parecias
dormir, então, liberta como um trono.
Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,
corpo de insones ânforas, mãezinha,
que sei de ti nos guantes da saudade?
Que sabemos de ti quando te vais,
se o teu vazio é feito de punhais?
Dormindo vinhas, mãe, já rente à brisa,
aos telhados de Sena, rente às asas
dos Derwiches que em sonho acorrentavas,
rente ao chão, rente à luz, à névoa rente
sobre a qual repousavas como em sonho.
Na música de um verso ou na toada
das cachoeiras, metáforas de ti
sobrevoam meus olhos consolados
pela visão dos seres que encarnaste.
A morte também veio, barulhenta,
mas galáxias cintilam nos teus passos,
vales de auroras curvas te embalsamam.
Por teres ido, fica mais sombria
a terra onde plantaste o nosso dia.
Que restara de ti, dos teus pertences?
Um vestido de linho desbotado,
um sapato comum, chinelo torto,
e nada mais, ó nuvem, se restara.
Tudo posto num saco humilde e roto.
Eu quis, então, medir esse legado,
mas limites não vi para a tristeza.
Davas a sensação de que o tesouro
se enterrara contigo. E era tão leve
quanto um sopro lilás, cantiga doce,
mansidão perdulária, água de fonte.
Como dizer-te verdadeiramente
numa sílaba só? Que eternidade
pode igualar-se à voz desta saudade?
Extravaso em rugidos carcerários
minha raiva de ser todo impotente,
barro de horas fantásticas, mas barro
solancado de escamas, quilhas, peito,
maremoto pulsar, refugo e tábua,
sobras, talvez, calungas e malárias
de um canto mais diuturno, menos frágil,
mais perene ou barroco, mais você
na inventação das ilhas, regelado
marujo, testemunha das nascentes,
dos dilúvios, da Cóchida e Gomorra;
em ti, Jorge de Lima, eu busco a vaca
resoluta dos pântanos enormes,
e louvo a minha mãe, enquanto dormes.
Ampulheta de ignotas ressonâncias,
me contas do teu mar, do teu navio;
mar e portos lavados pelo brilho
dos teus olhos cativos ao marulho
de outros mares guardados bem no fundo
das arcas de teu pai: este luarense
das tascas litorâneas e do vinho.
Que são lucandas, mãe? Que são topázios?
E a Tour d’ Eifel, que nuvens ela toca
ao se erguer entre os pássaros do orgulho?
E, te ouvindo contar destas viagens,
teu filho adormecia, tatuado,
ora pelo rigor de tua costura,
ora pelos encantos da aventura.
Volta comigo o trágico cenário,
e algo de inumerável me angustia.
Um cântico, talvez, de olhos miúdos,
cardume de fantasmas, trastes velhos.
Soma de nossos dias, ponte amarga
entre os bichos e a terra; pedras soltas,
navegantes do caos: roupas no tanque
onde o limo se avilta e se devora.
E o teu sangue, mãezinha? Que algazarra
no espaço vesperal de um plenilúnio
feito de nossas urzes cotidianas!
Deve ser esta a voz que me chamava,
o rosto que me quer. E a luz que fica
neste pátio me açoita e crucifica.
Nem maior nem menor do que ninguém,
me banho deste sol, bebo esta água
e sorvo a taça azul dessa manhã
num canto de quintal feito por ti.
Entre gato e cachorro as folhas verdes
de um jovem pé de frutas: me debruço
lendo as coisas e os seres pequeninos,
umas de tempo findo, outros em luta.
Em luta por um talo ou por um nada,
e na luta maior e mais profunda
dos monturos calados chão adentro.
Vou pedindo licença e vou entrando
nos buracos, nas fendas, neste cheiro
que um dia será rosa em meu canteiro
Foi lendo-te, Chalita, que no breve
mapa do nosso Líbano deparo
a infância de minha mãe: ouro e neve,
o monte, a vida, o sol e o clima raro.
Chat-il-baher, Batrun. Que tinta escreve
o som, a voz, a luz e este disparo
de asas que me escravizam? Tanto deve
ter sido ela feliz e o tempo claro.
Mas o fado, Chalita, esse outro mapa
que em suas mãos eu lia, é tão diverso
daquele em que se nasce e nos escapa.
Brisa mediterrânea, fêmea austera,
seu martírio, depois, lento e perverso,
ainda assim nos trazia a primavera.
Venham fios de luz, aromas vivos
misturar-se às palavras, à centelha
do louvor mais profundo deste filho
que se depura e sofre com tua ausência.
Venha o trigo do Líbano, a maçã
de que tanto falavas; venha a brisa
tecer mediterrânea esta saudade
que vem de ti quando por ti me alegro.
Que venha a primavera, saturando
vales, planícies, colorindo os montes,
noites de luar caiando os muros altos.
Venha a pedra da igreja onde ficaste
quando em febre te ardias. Venham lírios
rebrotados de ti, dos teus martírios
Teus cabelos castanhos, tuas tranças
fazem lembrar as madres de Cartago.
Doce mãe, sombra tépida, murmúrio
de sonâmbulas fontes; poucos sabem
teu nome, enquanto, fatigada embora,
dás-nos o pão e o leite, a flor e o fruto.
Poucos sabem te amar enquanto viva
e, quando morta, poucos também sabem
da fraqueza que em força transformavas.
Ai, retrato de mãe, quanto mistério
se converte na tímida lembrança
destes álbuns que lágrimas sulcaram.
Na verdade, Ramón, só de lembrá-la
um soluço arrebenta-nos a fala.
Lentilha, azeite doce, o acebolado
chia na frigideira de alumínio;
a casa está repleta de convites
para a janta frugal e acolhedora.
Nos arredores brinca o vento: a cerca
divisória, talvez, nada separa.
Vizinhando quintais vozes fraternas
cantam, mandam recados de ternura.
Assim te vejo, mãe, rosto suado
na lida da cozinha ou pondo a mesa.
Terrinas de coalhada, o pão redondo
a recender de ti, mais que do trigo.
Calendário sem datas, chão de outrora,
como tudo passou se tudo é agora?
Em tudo, minha mãe, te vejo e sinto.
Neste verniz antigo, neste cheiro
suavíssimo que vinha do teu corpo,
do pólen de tuas mãos, do hortelãzinho.
Em tudo, minha mãe, teu vulto amado
se desenha mais firme, e, lentamente,
vem dizer-me aos ouvidos qualquer coisa
desses anos que pesam sobre mim.
Em tudo, minha mãe, vejo este lenço
que à passagem da dor recolhe o traço
do sorriso que foste a vida inteira.
E, mesmo quando morta, entre açucenas,
ainda ressai de ti, poder divino,
a canção que adormece o teu menino.
Numa tarde opressiva de domingo,
o estrondo de tua queda: a irreversível
fratura que me dói quando te lembro
de olhos fixos em mim, quase a dizer-me
adeus, lágrimas ácidas rolando
sobre abismos drenados- tal o impacto
na dureza do chão, tal a dureza
do impacto na ossatura envelhecida.
Ninguém para colher-te o desamparo
desse tombo sem grito; apenas gestos
e vozes pressentidas me indicavam
zombeteiro demônio. Quem mais, Senhor,
de tão covarde, cínico e vilão,
faz da morte uma simples diversão?
Nossa infância era toda iluminada
pelas fontes da tua juventude.
Armadura que tínhamos freqüente
para afastar as sombras e o perigo.
Eram fartos os dias com teus peixes
mergulhados no arroz: postas de ouro
não largavam seus brilhos nem suas luas.
Na escassez, entretanto, te inquietavas.
Ainda te vejo, o porte esbelto indo
por aqueles baldios transparentes
onde a luz, de tão verde, pincelando
os ermos, quanta música expandia!
Voltavas quase noite ao doce abrigo,
e o mundo inteiro, mãe, vinha contigo.
Fui pedir ao canário que me desse
um raspão do seu canto fragmentário;
fui às nuvens do céu pedir mais nuvem
para o leve pedal que emite a voz;
debrucei-me, também, sobre os regatos
em busca de tua face; a brisa, enfim,
tentara descrever-te mas não pôde.
Andei, assim, por montes e calvários.
Ajoelhei-me ante o Cristo, bebi vinho.
Nada pude captar, nenhum remorso
fora maior que o meu nessa procura.
Somente agora, mãe, na tecelagem
destes versos que fiz para louvar-te,
em tudo posso ver-te e posso amar-te.
Estavas, posta no esquife, igual a todas
as defuntas convulsas, lapidadas.
Tão branca e tão distante companheira
destes ventos na pausa da agonia.
Quisera ter morrido quando foste,
nave de ti somente, abrindo rotas
na invisória partida, nesse coro
latente em nossas almas. Parecias
dormir, então, liberta como um trono.
Ó lágrimas de Orfeu, tempo escoado,
corpo de insones ânforas, mãezinha,
que sei de ti nos guantes da saudade?
Que sabemos de ti quando te vais,
se o teu vazio é feito de punhais?
Dormindo vinhas, mãe, já rente à brisa,
aos telhados de Sena, rente às asas
dos Derwiches que em sonho acorrentavas,
rente ao chão, rente à luz, à névoa rente
sobre a qual repousavas como em sonho.
Na música de um verso ou na toada
das cachoeiras, metáforas de ti
sobrevoam meus olhos consolados
pela visão dos seres que encarnaste.
A morte também veio, barulhenta,
mas galáxias cintilam nos teus passos,
vales de auroras curvas te embalsamam.
Por teres ido, fica mais sombria
a terra onde plantaste o nosso dia.
Que restara de ti, dos teus pertences?
Um vestido de linho desbotado,
um sapato comum, chinelo torto,
e nada mais, ó nuvem, se restara.
Tudo posto num saco humilde e roto.
Eu quis, então, medir esse legado,
mas limites não vi para a tristeza.
Davas a sensação de que o tesouro
se enterrara contigo. E era tão leve
quanto um sopro lilás, cantiga doce,
mansidão perdulária, água de fonte.
Como dizer-te verdadeiramente
numa sílaba só? Que eternidade
pode igualar-se à voz desta saudade?
Extravaso em rugidos carcerários
minha raiva de ser todo impotente,
barro de horas fantásticas, mas barro
solancado de escamas, quilhas, peito,
maremoto pulsar, refugo e tábua,
sobras, talvez, calungas e malárias
de um canto mais diuturno, menos frágil,
mais perene ou barroco, mais você
na inventação das ilhas, regelado
marujo, testemunha das nascentes,
dos dilúvios, da Cóchida e Gomorra;
em ti, Jorge de Lima, eu busco a vaca
resoluta dos pântanos enormes,
e louvo a minha mãe, enquanto dormes.
Ampulheta de ignotas ressonâncias,
me contas do teu mar, do teu navio;
mar e portos lavados pelo brilho
dos teus olhos cativos ao marulho
de outros mares guardados bem no fundo
das arcas de teu pai: este luarense
das tascas litorâneas e do vinho.
Que são lucandas, mãe? Que são topázios?
E a Tour d’ Eifel, que nuvens ela toca
ao se erguer entre os pássaros do orgulho?
E, te ouvindo contar destas viagens,
teu filho adormecia, tatuado,
ora pelo rigor de tua costura,
ora pelos encantos da aventura.
Volta comigo o trágico cenário,
e algo de inumerável me angustia.
Um cântico, talvez, de olhos miúdos,
cardume de fantasmas, trastes velhos.
Soma de nossos dias, ponte amarga
entre os bichos e a terra; pedras soltas,
navegantes do caos: roupas no tanque
onde o limo se avilta e se devora.
E o teu sangue, mãezinha? Que algazarra
no espaço vesperal de um plenilúnio
feito de nossas urzes cotidianas!
Deve ser esta a voz que me chamava,
o rosto que me quer. E a luz que fica
neste pátio me açoita e crucifica.
Nem maior nem menor do que ninguém,
me banho deste sol, bebo esta água
e sorvo a taça azul dessa manhã
num canto de quintal feito por ti.
Entre gato e cachorro as folhas verdes
de um jovem pé de frutas: me debruço
lendo as coisas e os seres pequeninos,
umas de tempo findo, outros em luta.
Em luta por um talo ou por um nada,
e na luta maior e mais profunda
dos monturos calados chão adentro.
Vou pedindo licença e vou entrando
nos buracos, nas fendas, neste cheiro
que um dia será rosa em meu canteiro
Foi lendo-te, Chalita, que no breve
mapa do nosso Líbano deparo
a infância de minha mãe: ouro e neve,
o monte, a vida, o sol e o clima raro.
Chat-il-baher, Batrun. Que tinta escreve
o som, a voz, a luz e este disparo
de asas que me escravizam? Tanto deve
ter sido ela feliz e o tempo claro.
Mas o fado, Chalita, esse outro mapa
que em suas mãos eu lia, é tão diverso
daquele em que se nasce e nos escapa.
Brisa mediterrânea, fêmea austera,
seu martírio, depois, lento e perverso,
ainda assim nos trazia a primavera.
quinta-feira, 5 de maio de 2016
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