quinta-feira, 31 de janeiro de 2008


CANÇÃO DO EXÍLIO




Todos conhecem esta canção de Gonçalves Dias. É hino nacional. Mas alguns não percebam ainda quanto de poesia ela tem.

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

O que salienta é o ritmo da redondilha, associado com umas sonoridades vocais nascidas das evocações das palmas, dos pássaros, dos cânticos.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

O excessivo "nosso" - plural socialista - sentimento nacional, visual, ecológico das estrelas no céu brasileiro, das flores nas várzeas, dos bosques, da vida, dos amores tropicais.

Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar — sozinho, à noite —
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.

Solidão, saudade (exílio). O refrão chama para a praia. Opõe-se um "cá" com um "lá": prazeres e primores se opõem à morte. Se há, é a poética da simplicidade, da humildade. O poeta compôs uma canção a partir dos menores elementos, dos mais simples planos. Compare com, Bilac: "AOS SINOS".

Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta...
Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes,
Ardemos numa louca aspiração mais vasta,
Para trasmigrações, para metempsicoses!
Cantai, sinos! Daqui, por onde o horror se arrasta,
Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses,
Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta!
Levai os nossos ais rolando em vossas vozes!
Em repiques de febre, em dobres a finados,
Em rebates de angústia, ó carrilhões, dos cimos
Tangei! Torres da fé, vibrai os nossos brados!
Dizei, sinos da terra, em clamores supremos,
Toda a nossa tortura aos astros de onde vimos
Toda a nossa esperança aos astros aonde iremos!

A beleza aqui é a das sonoridades vastas. E assim, também:


"Kennst du das Land, wo die Citronen blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möcht’ich... ziehn."
(Goethe)

"Conheces a terra onde florescem os limoeiros,
Onde laranjas de ouro ardem no verde-escuro da folhagem?
Conheces bem? — Ali, ali!
Eu desejara estar."

domingo, 27 de janeiro de 2008

FIM DE TARDE


Fim de tarde. Leves passos me levam pelo calçamento da rua Gonçalves Dias. Passos lentos, na imaginação dos versos: «Se se morre de amor! — Não, não se morre, Quando é fascinação que nos surpreende De ruidoso sarau entre os festejos».

Amor! delírio — engano... Sobre a terra
Amor também fruí; a vida inteira
Concentrei num só ponto — amá-la, e sempre.
Amei! — dedicação, ternura, extremos
Cismou meu coração, cismou minha alma,

Amor! enlevo d'alma, arroubo, encanto
Desta existência mísera, onde existes?
Fino sentir ou mágico transporte,
(O quer que seja que nos leva a extremos,
Aos quais não basta a natureza humana;)
Simpática atração d'almas sinceras
Que unidas pelo amor, no amor se apuram,
Por quem suspiro, serás nome apenas?

Um homem me passa um adesivo eleitoral que o ponho no peito, meu candidato. Deve perder. A militância de braços cruzados. Fico imaginando se, alguma vez, Gonçalves Dias passou por aqui, pela Rua Gonçalves Dias. Gênio, publica «A canção do exílio», com vinte anos – único poema que entrou no Hino Nacional Brasileiro, suprema glória. Foi professor em Niterói. Olho as casas. Que segredos escondem elas? Que histórias nos poderiam revelar?
Gonçalves Dias foi amante fracassado. Viajou pelo Amazonas, pelo Madeira e pelo Negro. Podia ter lá encontrado cabocla risonha, como são, mas fixou-se em Ana Amélia, de 14 anos, recusada por ser ele mestiço. E bastardo.
O mesmo aconteceu com Dona Clarisse Indio do Brasil. Que se apaixonou por um mestiço, o Almirante Indio do Brasil. Ela era uma Condessa Laje, como escreveu sua neta, a escritora Clarisse de Oliveira: «Clarisse Lage nasceu em 4 de abril, talvez no ano de l869. Casou-se contra a vontade da família com Arthur Índio Do Brazil e Silva, em 23 de Janeiro de l893». Arthur foi Chefe de Segurança no Pará, Presidente do Conselho de Intendência de Belém, Deputado Constituinte Federal, Almirante e Senador, e em 23 de dezembro de 1925, feito Marquês pelo Papa.
D. Clarisse teve morte trágica. Quando se rompeu seu colar de pérolas e, recolhidas, nenhuma faltava, ela disse: "Nem mais um dia de vida - a morte está próxima".
Foi morta por um viciado em cocaína e alcoólatra, no dia 6 de outubro, às l8:30 horas, no centro da cidade, esquina da Rua do Ouvidor com a Ourives.
Talvez fosse um crime político, de um louco terrorista da época: Ela era rica e aristocrática, e o assassino tinha passado pela Escola militar, reduto republicano. O Senador tinha um escritório na Rua da Alfandega, 94. Clarisse costumava buscar o marido no trabalho todas as tardes. Quando o "Landaulet" estacionou, ouviu-se um tiro, e apareceu o "toillett" azul da senhora Indio do Brazil. Ela estava com a mão esquerda sobre o peito e a direita agarrada ao trinco da portinhola.
Morreu dias depois. Nas suas últimas palavras, pede perdão ao assassino. Diz ao marido: "Perdoa, Coração!" E morre.
Antes de morrer, Gonçalves Dias encontra Ana Amélia, que passa por uma rua, já casada. Escreve: «Enfim te vejo! — enfim posso, Curvado a teus pés, dizer-te, Que não cessei de querer-te, Pesar de quanto sofri.» Mas ela finge não vê-lo, não o conhece: «Mas que tens? Não me conheces? De mim afastas teu rosto? Olha-me bem, que sou eu! Nenhuma voz me diriges!... Que me enganei, ora o vejo; Nadam-te os olhos em pranto, Arfa-te o peito, e no entanto Nem me podes encarar; És doutro agora, e pr’a sempre! Eu a mísero desterro Volto, Adeus qu’eu parto, senhora; Negou-me o fado inimigo Passar a vida contigo, Ter sepultura entre os meus; Negou-me nesta hora extrema, Por extrema despedida, Ouvir-te a voz comovida Soluçar um breve Adeus!»


Sou atraído pelos sons de estranha música. Vêm da Confeitaria Colombo. Entro. Olho deslumbrado para dentro dos grandes espelhos, maiores agora na escuridão da noite. Dentro dos espelhos, os mortos aparecem de sobrecasaca.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

LEILA MICCOLIS NO CIRQUE DU SOLEIL


ALEGRIA COM O CIRQUE DU SOLEIL

Diferente da maioria das crianças, nunca me encantei com circos: as poucas tentativas de minha mãe foram um completo desastre: inexplicavelmente, eu achava os palhaços tristes, tinha medo dos trapezistas caírem e me apavorava com os domadores de animais e seus chicotes. Voltava aos prantos para casa, uma tragédia. Mais do que ninguém, entendo perfeitamente bem a expressão: “circo dos horrores”...

Semana passada, porém, com ingressos para o Cirque du Soleil, fiquei lutando muito comigo mesma: vou ou não vou? – eis a questão. Queria, mas temia, ao mesmo tempo. Para quem nunca vivenciou esse pânico infantil, há de achar até engraçado uma pessoa adulta com este conflito; mas todos sabem como são fortes as vivências de criança e como elas acabam muitas vezes marcando a vida da gente pela vida afora. Já havia visto a Companhia várias vezes na televisão, e sabia que não havia animais. Pelo menos com essa parte eu não me preocuparei. Pesei, refleti e afinal resolvi enfrentar (e tentar vencer) o pavor das reminiscências antigas. Ainda bem: mudou o circo ou mudei eu? Mudaram os dois.

O Cirque du Soleil não é um circo comum, mas um novo circo, como é denominado pelos seus próprios criadores. A companhia canadense, fundada em 1984 por Guy Laliberté e Daniel Gauthier, “abandonou Abandonou a estrutura convencional dos circos, tirando os animais de cena (eliminando assim uma das maiores despesas de um circo e também a mais controversa), mudou o foco para o público adulto (o que antes era uma diversão para crianças, se tornou uma paixão para os adultos) e baseou seus espetáculos na linguagem corporal, na sofisticação intelectual do teatro e do balé e na utilização de tecnologia. Ao fazer isso, o Cirque reinventou o modelo de preços das entradas” – escreveu com muita propriedade Viviane Rodriguez, colunista do site bonde . No começo eram aproximadamente 70 pessoas e, hoje, a equipe é de cerca de 900 artistas, sendo que em seus 13 diferentes espetáculos que giram o mundo (sete espetáculos itinerantes e outros seis encenados em lugares como Las Vegas e Disney World) já emprega mais de 3.000 profissionais de 40 nacionalidades (25 integrantes são brasileiros) e que se comunicam por mais de 25 línguas, o que significa que apresenta em elenco artistas internacionais de todas as partes do mundo.

Alegria, segunda apresentação do Cirque de Soleil no Brasil, é um espetáculo grandioso, de extremo bom-gosto (até os elementos grotescos incorporam-se magicamente ao universo circense) e os ginastas apresentam-se em um clima de tanto perfeccionismo, que mesmo com a respiração suspensa muitas vezes, nos mergulhos de vôos livres, não pensei no pior nem uma vezinha sequer – acreditem. Aliás, nem dá muito tempo para pensar, tal a sucessão de espantos e encantos. Os ginastas são verdadeiros bailarinos aéreos, o mesmo acontecendo com as contorcionistas, que mal pousam no chão – de tão leves às vezes parecem flutuar. Fiquei extasiada com o número dos arcos. Todos que fizeram ballet com aros ou os que brincaram de bambolê sabem a dificuldade de se movimentar um único, da cintura ao pescoço, sem deixá-los cair. Pois a acrobata rodopiava seis, sete, ao mesmo tempo, arranando quase que uma reação hipnótica do público. E, o mais impressionante: todos os ginastas e acrobatas executam seus pulos, saltos precisamente compassados com a música, exibem-se em uma sincronia exata, impecável.

Realmente é uma concepção nova de espetáculo, que explora as múltiplas possibilidades do circo, com toda a riqueza de seus personagens e dimensões oníricas e simbólicas, mas vai além. Envolve música, dança, mímica, humor, comicidade, teatro (o palco inclusive não é um picadeiro, mas tablado que lembra uma semi-arena de teatro), canto, belos efeitos de luz, e figuração cênica às vezes aparentemente surrealistas, que nos provocam sensações inusitadas e, de alguma forma mostra que a Alegria, vista através do circo – do teatro do mundo – é, de alguma forma, uma alegria feita também de flashes de gritos, assaltos à própria alegria, raivas e tristezas serenas, como escrito por René Dupéré, em Alegria, música-tema principal do espetáculo, uma letra que define o algo mais que o Cirque du Soleil propõe: uma alegria, mais viva ainda, por ser vivenciada plenamente, também em suas contradições, riscos e cortes e contrastes:

(...)
Allegria
Del delittuoso grido
Bella ruggente pena, seren
Come la rabbia di amar
Allegria
Come un assalto di gioia

(...)
Allegria
Como la luz de la vida
Allegria
Como un payaso que grita
Allegría
Del estupendo grito
De la tristeza loca
Serena
Como la rabbia de amar
Allegria
Como un asalto de felicidad

Fonte: http://vagalume.uol.com.br/cirque-du-soleil/alegria.html

(Eis minha tradução bastante livre e conotativa: alegria/ do grito delituoso (transgressor)/ bela aflição rugidora (que urra) será / como a raiva de amar / alegria/ como um assalto de jóia (...) alegria/ como a luz da vida/ alegria / como um palhaço que grita / alegria / do estupendo grito da tristeza louca / serena / como a raiva de amar/ alegria / como um assalto à felicidade (um roubo, ou arroubo... de felicidade).

São duas horas e quarenta minutos de espetáculo e, ao final, sentimos que continuaríamos assistindo a mais duas outras horas e quarenta minutos, talvez... Sugiro a quem for que leve cartão de crédito ou dinheiro extra para o pote grandão da saborosíssima pipoca, cujo aroma no intervalo inunda deliciosamente todo o ambiente, e também para as fabulosas máscaras e belas roupas exclusivas da grife Cirque du Soleil, expostas no hall de entrada/saída. Há ainda a exposição e venda de CDs, fotos, livros da Companhia, programas do espetáculo, adereços usados, obras de arte de rara beleza, originais e fascinantes. Outra recomendação é que você vá bem cedo, não deixe para sair na última hora, principalmente se você não conhece ainda o Metropolitan. E divirta-se com o espetáculo, que faz um bem danado para a gente. Não se esqueça de, quando aplaudir entusiasticamente os artistas, incluir neste aplauso também o Bradesco, que nos proporciona a oportunidade de assistir no Brasil a estes brilhantes artistas. Só mesmo um grande banco para patrocinar um grande espetáculo como este.

Particularmente, ainda tenho mais um agradecimento especial a fazer: ter revisto meus sentimentos, através do primeiro circo que realmente me entusiasmou na vida (e do primeiro circo bom a gente nunca esquece...). É muito bom me sentir liberta de sentimentos negativos, que tantas vezes perturbaram e/ou impediram minha Alegria, assaltando-me esta jóia... O Cirque du Soleil realmente faz jus ao nome que tem: ele ilumina o coração e contenta a alma até de quem, como eu, achava que detestava circos.

Leila Míccolis

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008


TENREIRO ARANHA


Poucos poetas foram tão misteriosa, inusitadamente famosos como ele. Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, prosador e poeta, nasceu e faleceu no Amazonas (1769-1811). Era um poeta leve, arcádico, que veio a ser publicado na leva daqueles momentos de patriotismo do Século Dezenove, em 1850 por seu filho, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro Governador da Capitania do Rio Negro.
Ele nasceu em Barcelos, cidade antiga, primeira capital da antiga Capitania do Rio Negro (posteriormente Amazonas). Seu famoso “Soneto à parda Maria Bárbara, mulher de um soldado, cruelmente assassinada, porque preferiu a morte à mancha de adúltera”, entretanto, sempre nos surpreende pelo inusitado do assunto popular. Não se trata de um poema a alguma alta e bela dama da corte, ou ao Governador do Estado do Pará, ou a algum ilustre e poderoso fidalgo.
Mas a uma “parda”, ou seja, a uma Maria Bárbara, mulher de soldado.
Aquilo não era coisa muito comum. O interesse pelo povo humilde, mesmo depois de uma tragédia, na época, não era tema de literatura.
O famoso soneto do primeiro artista autenticamente amazonense é esse:

Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito
Esta nova ao esposo aflito, errante...
Diz-lhe como de ferro penetrante
Me viste por fiel cravado o peito,
Lacerado, insepulto, e já sujeito
O tronco feio ao corvo altivolante:
Que dum monstro inumano, lhe declara,
A mão cruel me trata desta sorte;
Porém que alívio busque a dor amara
Lembrando-se que teve uma consorte,
Que, por honrada fé que lhe jurara,
À mancha conjugal prefere a morte.


Ora, quem fala é a vítima, já cadáver feita. Quem fala é o cadáver de u’a mulher, outra novidade. Não um belo corpo bem tratado, empoado, de cortesã viçosa, mas o putrefato cadáver de alguém, pardo, na beira da estrada, corpo já frio, corpo de crioula ou de cafuza morta, corpo morto.
O cadáver tem um recado a dar. Um recado, uma nova, uma notícia dela para o esposo aflito, que, se aflito não a sabe morta. “Leva piedoso”, significa, “por favor, por piedade, diz para meu marido que morri”.
Sim, o poeta está interessado na sorte da “mulher de soldado”, morta, parda, insepulta. Talvez estuprada.
Ela já diz que preferiu a morte à “mancha conjugal”. Quer que o esposo busque nisso o alívio à dor amara.
Hoje, Tenreiro Aranha é rua de Copacabana, rua sem saída, que começa na Siqueira Campos. Ex-Travessa Trianon.
Em outro soneto, canta o poeta:

Passarinho que logras docemente
Os prazeres da amável inocência,
Livre de que a culpada consciência
Te aflija, como aflige ao delinqüente;
Fácil sustento e sempre mui decente
Vestido te fornece a Providência;
Sem futuros prever, tua existência
É feliz limitando-se ao presente.

Não assim, ai de mim! Porque sofrendo
A fome, a sede, o frio, a enfermidade
Sinto também do crime o peso horrendo...

Dos homens me rodeia a iniqüidade
A calúnia me oprime, e, ao fim tremendo
Me assusta uma espantosa eternidade.

Note-se que há dois Aranhas: Além do poeta, que se chamava Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, existe seu filho, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro Governador da Capitania do Rio Negro, em 1850. É quando se constrói a Catedral, que não é bela, mas imponente. Dizem que foi construída com trabalho escravo indígena. Nesta época Manaus se torna centro político. Começa o comércio da borracha e piaçava.
` O poeta cedo ficou órfão. Seu tutor o colocou na lavoura, junto com os escravos.Com doze anos inicia estudos com um vigário. Interno no Convento de S. Antônio de Belém. Os bens familiares do menino foram “confiscados”, literalmente pelo Fisco. Devem ter sido roubados. Já adulto, foi nomeado para um cargo público, foi demitido por intrigas políticas. Depois, o Conde dos Arcos, Governador do Grão Pará, o faz Escrivão. Dizem que o poeta era um erudito, tinha sólida cultura, e sabia grego. Traduziu Odes de Píndaro.
O segundo soneto louva a “inocência”, logra docemente os prazeres da amável inocência, “livre de que a culpada consciência / Te aflija, como aflige ao delinqüente”. É obra leve, bela, clássica. O tema, bem ao gosto do Renascimento: “Sem futuros prever, tua existência / É feliz limitando-se ao presente”. Mas o ambiente é arcádico. Não é amazônico. Nada mais agressivo do que a Floresta Amazônica, com seus espinhos, insetos, aranhas, escorpiões, formigas venenosas, serpentes e pântanos. Não, não se tem ali “Os prazeres da amável inocência”. Nem o “Fácil sustento e sempre mui decente”. Não, isso não é amazônico.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2008


A POSSIBILIDADE DO SONHO



Ora, quem sonha são os poetas, principalmente românticos, que sonham «as ilusões perdidas»:

Minh’alma é triste como a rôla aflita
Que o bosque acorda desde o albor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.
E, como a rôla que perdeu o esposo,
Minh’alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gôzo
Relê as fôlhas que já foram lidas.
E como notas de chorosa endeixa
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.
Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minh’alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.
Dizem que há gozos nas mundanas galas
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
- Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque mas a minh’alma é triste!

Como toda ilusão, a realidade já nasce «perdida», e os românticos lastimavam que, em verdade, não encontravam a materialidade de seus sonhos. Ou seja, a vida concreta (se se concede falar assim – e só em crônica se pode) não corresponde ao sonho abstrato, e aqui os gozos, os prazeres, os brincos (os brinquedos), os amores, no campo ou na cidade não correspondem ao idealizado pela imaginação. Por isso, «a minha alma é triste».

No poema de Casimiro de Abreu se ouve, até mesmo, um OH! – esta exclamação lamentosa - rola, bosque, acorda, albor, aurora, soluço, morto, esposo, chora etc. – uma série de oooos, todos lamentosos acentos.
Incompatibilizados com o mundo, não é sem razão que os românticos acabem morrendo tão cedo. Morrem de inanição espiritual, depressão. Sucumbem à glória do capitalismo da primeira revolução industrial.
A poesia (mas nem sempre) pertence à categoria dos sonhos:

Conheces a região do laranjal florido?
Ardem, na escura fronde, em brasa os pomos de ouro;
No céu azul perpassa a brisa num gemido...
A murta nem se move e nem palpita o louro...
Não a conheces tu? Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu querido bem!
(Diz Goethe, na belíssima tradução do mestre João Ribeiro.)

Sim, esta é a região dos sonhos. Lá, bem longe, além. Lá é melhor. Para lá é que devemos ir, escapar, fugir. Lá está tudo o que é belo, perfeito. Lá está a felicidade. Não a conheces tu, leitor e leitora? Será que existe mesmo?
Mas... não percamos as esperanças.

O "NOVO MANUAL DE TEORIA LITERÁRIA" ESTÁ EM
http://www.arara.fr/BBLIVRES.html
LEIA "JOSÉ PARANAGUÁ", TERCEIRO CAPÍTULO DO ROMANCE "TEATRO AMAZONAS" DE ROGEL SAMUEL, EM "BLOCOS ON LINE", O MAIOR PORTAL DE LITERATURA DO BRASIL

http://www.blocosonline.com.br/home/index.php

8532626726 NOVO MANUAL DE TEORIA LITERÁRIA - edição revisada e ampliada
Editora: Vozes
Autor(es): Rogel Samuel
232 páginas
Formato (largura x altura): 13.7 x 21.0 cm cm
Peso: 196 gramas
4ª edição (2007)
Assunto: Letras e literatura
Preço: R$ 33,80
Manual básico de Teoria Literária, o qual apresenta os conceitos básicos e as modernas pesquisas feitas sobre os gêneros literários. Estuda também as teoria críticas, a literatura comparada e as teorias "pós-modernas".

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

A SAGA DOS DIAS


Fim de ano. Penso em ver a queima de fogos em Copacabana. Espero que tudo esteja calmo, ali. Que não haja tiros, bombas ou chuva. Mas não podemos nos recolher aos nossos medos. Viver é arriscar. Depois vou relatar o que vi. Aqui.
A leitura. Um pouco de poesia. Quando um dia acaba, espero a noite. Não sonhamos apenas de noite. Sonhamos também de dia, embora não se investigue com igual energia o sonho diurno. Chega-se mesmo a reduzi-lo a um simples prelúdio do sonho noturno. Entre ambos há distinções consideráveis. No sonho diurno o eu não desaparece. Mantém-se até bem vivo e sem exercer nenhuma censura. A ponto de os desejos tanto mais funcionarem. Serem mais visíveis, do que no sonho noturno. Apresentarem-se sem máscara nem vergonha. Livres de inibições. Corajosamente. De peito aberto. As ruas vivem cheias de gente com sonhos diurnos. Os mostruários das lojas tocam seus acordes. Um sapato elegante. Um vestido “toillette”. A nova máquina de lavar. Uma cadeira de balanço. E tudo o mais que se mostra. Em primeiro lugar, a casa sonhada a que tudo isso vai pertencer. Todo um mundo de vento em popa, multiplicando os castelos no ar, onde o custo de vida não é tão alto." (Ernst Bloch).
A felicidade máxima é silenciosa. Além da imaginação. Quando tudo cessa e aparecem os cânticos do silêncio.
Tenho de aprender com os pássaros. Voar na amplidão. Na imaginação. Abrir o espaço da mente. Abrir o coração. Conhecer o vasto universo interior. A liberdade é espacial. É espaço. A felicidade se move no espaço da liberdade. Espaço mental.

QUE IMPORTA O AREAL E A MORTE E A DESVENTURA?




A leitura do romance histórico de Aydano Roriz, O DESEJADO, me fez reler a terceira parte da MENSAGEM de Fernando Pessoa.

'Sperai! Cai no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus

O romance me surpreendeu. Em vários pontos.
O autor diz que o jovem rei era hermafrodita, e por isso não se casou.
Seu cadáver foi embalsamado em Marrocos, e anos mais tarde resgatado por Felipe de Espanha.
Oh, tudo é mistério, e não 'haverá rasgões no espaço / que dêem para outro lado'...
Romance intrigante, momentos de rara beleza. Mas volto ao mito. Prefiro o mito.
Sou, a meu modo, um sebastianista: Durante 15 anos minha amiga X. pagou todas as prestações de seu apartamento com a pontualidade que somente mulheres honestas sabem ter, e ao fim e ao cabo o Banco (particular, o maior do Brasil) lhe disse que ainda devia o preço total. Ela não tinha o dinheiro: Não consegui convencê-la do contrário - ela vendeu o imóvel e pagou pela segunda vez a mesma dívida... (mais pagaria se não fosse, para tanto pagar tão curta a vida...). Por isso Camões entregou seu poema a D. Sebastião.
O jovem rei no livro é rapaz extremamente religioso, pudico, puritano, que se delicia em matar porcos na cozinha, em assistir às sessões de tortura, ao suplicio dos condenados. Havia condenados pelos mais extremos e hediondos crimes, como o crime da masturbação etc.
A obsessão do rei de matar-mouros lembra certo presidente de nação distante, hoje. Conflito que vem de longe, entre nossa boníssima civilização cristã e a dos cruéis árabes pagãos. Mas:

Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!

Devemos a D. Sebastião o nome da nossa cidade do Rio de Janeiro.

Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?

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Acabo de assistir ao filme de Karim Ainouz, Madame Satã. Quase um grande filme. Fotografia luxuosa. Cenário da Lapa fantástico. O jovem ator Lázaro Ramos convence em tudo. Ainda não vi Cidade de Deus, filme extraído do romance de Paulo Lins, meu ex-aluno na Faculdade de Letras da UFRJ. Conheci João Francisco dos Santos, ou Madame Satã. Na Ilha grande, onde acampei no início dos anos 70. Já bem velho, mais de 70 anos, ainda bem forte.
O filme, porém, não deprime, é positivo, levanta o moral brasileiro. É apologia do espírito nacional. As cenas de sexo nada acrescentaram porém, e umas senhoras da platéia muito se incomodaram com elas. Mas não é nada explícito, somente beijos e navalhadas. Madame Satã, afinal, morreu velho, realizado, em paz, no Abraão, povoado da Ilha Grande, onde o vi. Feliz.
Hoje teria sido logo morto. Não antes sem uma sessão de tortura piedosa.
Satã deve ter sido descendente de rei africano: orgulhoso, imbatível, não se curvava. Nem à polícia. Duplamente discriminado, foi uma espécie de Zumbi na Lapa. Em suas memórias, ditadas a um jornalista do Pasquim, ele não fala de seus amores, de sua privacidade.
Num país onde a discriminação é mais forte hoje do que naquele tempo devido a Aids, ele era fiel a si mesmo, preferia a morte à humilhação.
O filme não conta que pôs a nocaute vários marinheiros, que invadiu uma delegacia para quebrar cara de delegado, etc.
Talvez seja Mito.
Prefiro o Mito.

No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2008


O "NOVO MANUAL DE TEORIA LITERÁRIA" ESTÁ EM
http://www.arara.fr/BBLIVRES.html
LEIA "JOSÉ PARANAGUÁ", TERCEIRO CAPÍTULO DO ROMANCE "TEATRO AMAZONAS" DE ROGEL SAMUEL, EM "BLOCOS ON LINE", O MAIOR PORTAL DE LITERATURA DO BRASIL

http://www.blocosonline.com.br/home/index.php

8532626726 NOVO MANUAL DE TEORIA LITERÁRIA - edição revisada e ampliada
Editora: Vozes
Autor(es): Rogel Samuel
232 páginas
Formato (largura x altura): 13.7 x 21.0 cm cm
Peso: 196 gramas
4ª edição (2007)
Assunto: Letras e literatura
Preço: R$ 33,80
Manual básico de Teoria Literária, o qual apresenta os conceitos básicos e as modernas pesquisas feitas sobre os gêneros literários. Estuda também as teoria críticas, a literatura comparada e as teorias "pós-modernas".

sábado, 12 de janeiro de 2008


VIVA NELSON FREIRE!
(especial para Entre-texto)

Rogel Samuel

Venho de comprar, hoje, dia 12 de janeiro de 2008, um CD duplo que estou ouvindo: Nelson Freire toca os dois concertos de Brahms com a Leipzig Gewandhausorchester regida por Riccardo Chailly.

Nelson dá um show de maestria, de leveza, de magnitude.

Além das salas de concerto, eu o vi certa vez em Ipanema e me arrependo de não ter ido até ele cumprimentá-lo. Ele parece uma pessoa amável e simples. Até tímido. Dá impressão de que não se julga um “astro”, um astro internacional que é.

Ele supera com elegância os trechos mais difíceis de um dos concertos, ainda que estude com fervor conforme se vê no filme de João Moreira Salles.

Esse “trecho difícil”está na Internet, no Youtube, e pode ser ouvido e visto em:
http://www.youtube.com/watch?v=rXzcuU_UtcQ

Nelson Freire nasceu em Boa Esperança e iniciou os estudos de piano, aos três anos de idade, com Nise Obino e Lúcia Branco. Estreou em público aos cinco anos. Em 1957 ganhou o Concurso Internacional de Piano do Rio de Janeiro, tocando o Imperador de Beethoven. Ganhou uma bolsa para estudar com Bruno Seidlhofer, em Viena. Sete anos mais tarde, ganhou a Medalha Dinu Lipatti, em Londres, assim como o 1º. Prémio no Concurso Internacional Vianna da Motta, em Lisboa.
“Ele foi nomeado “Solista do Ano 2002” nos prêmios Victoires de la Musique”.

Eu assisti Nelson Freire quando ele era quase um menino, no Municipal. Faz muitos anos.


Editora: Vozes
Autor(es): Rogel Samuel

232 páginas
Formato (largura x altura): 13.7 x 21.0 cm cm
Peso: 196 gramas
4ª edição (2007)
Assunto: Letras e literatura

Preço: R$ 33,80

Manual básico de Teoria Literária, o qual apresenta os conceitos básicos e as modernas pesquisas feitas sobre os gêneros literários. Estuda também as teoria críticas, a literatura comparada e as teorias "pós-modernas".


http://www.editoravozes.com.br/




E EM BREVE, TALVEZ AMANHÃ, LEIA "JOSÉ PARANAGUÁ", TERCEIRO CAPÍTULO DO "TEATRO AMAZONAS" EM:

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domingo, 6 de janeiro de 2008


ABRE A BOCA UM SILÊNCIO ENORME



Pois de Ricardo Reis canta certa ode, digo Pessoa, nos meus ouvidos sempre que penso em morte que me diz:

Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.

De meu mestre Euryalo Cannabrava certa vez contava, em sala de aula, que, quando algum dilema lhe aparecia ele preparava a sua morte, hipotética morte, ele a previa, com data e hora marcada, para depois de alguns dias se matar, dizia ele, e logo seus problemas se diluíam, nada resiste à morte, à Ela, - a suprema! - que «tão cedo passa tudo quanto passa!» e sem a morte a vida seria uma chatice, repetitiva e cruel.

Nesse sortilégio o nada mortal vai da invenção de palavras, criatura de uma rosa eterna, para além dessas floras efêmeras - eterna porque morre, e morre por ser eterna, neste mundo, - curiosa antítese.

A morte, entretanto, é coisa séria, como o que «contam de Clarice Lispector» de João Cabral:

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.
Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.
Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008


A DIMENSÃO DO MAR

Escreveu Fernando Pessoa:
Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

O rei D. Dinis governou entre 1279 e 1325. Criou a semente da primeira universidade portuguesa, em Lisboa (1290). Escreveu 72 cantigas de amor e 51 de amigo, como a deliciosa:
Levantou-s' a velida,levantou-s' alva
e vai lavar camisas
eno alto:vai-las lavar alva.
Levantou-s' a louçaa,levantou-s' alva
e vai lavar delgadas
eno alto

Ora, D. Dinis ficou conhecido como «lavrador», «plantador». No poema de Pessoa bem se vê. Plantador do Império. Ele plantou os pinheiros com que se construíram as naus.Nós não vamos examinar aqui o heróico fato de que aqueles navios também espalharam o terror pelo mundo. Toda a Europa fez isso. As naus portuguesas dominaram o mundo à força das armas. Há, por exemplo, um texto, na literatura singalesa, que conta a invasão de um mosteiro budista. No Brasil, nossos índios foram dizimados etc. Não. Vamos ficar com o poema. Com a visão do Pessoa jovem, poeta máximo. « Na noite escreve um seu Cantar de Amigo». Por que «na noite»? Porque o Império ainda ia amanhecer. Este verso revela a maestria do poeta, são dez sílabas, numa alternância de átonas e tônicas: na NOIte esCREve um SEU canTAR de aMIgo. (-/=/-/=/-/=/-/=/-/=/). 1-2, 1-2, 1-2, 1-2, 1-2. Este ritmo, binário, com alguma imaginação, traduz o ato da máquina, o ato do escrever, do trabalhar, seu ritmo, sua maquinaria, seus pinhais, seus delírios. O verso marca o ritmo do trabalho poético, do trabalho noturno, do trabalho intelectual, silencioso, martelando. E Amigo. Ele escrevia a história, a história do futuro, «o plantador de naus a haver». E ele «ouve um silêncio múrmuro consigo», que é « o rumor dos pinhais», o rumor do vento nos pinhais, que sussurram: seremos reis, seremos Detentores-reis das terras de além-mar. O murmúrio do futuro, murmúrio do «trigo da história», murmúrio do cabelo da história, que ondula sem se poder ver. E a fala dos pinhais, marulho obscuro,É o som presente desse mar futuro,É a voz da terra ansiando pelo mar. Pessoa abusa de sua genialidade, no «Plantador do Trigo do Império do Fim do Mundo». Sim, porque o Império se estendeu, de Oriente a Ocidente do Orbe terrestre. Como dele disse Camões: O Sol, logo em nascendo, vê primeiro; Vê-o também no meio do Hemisfério, E quando desce o deixa derradeiro;
D.Dinis canta, e «esse cantar, jovem e puro, busca o oceano por achar». Aponta o futuro. Pessoa era um patriota, e a pátria ingrata só lhe prestou homenagem e lhe fez honra depois de morto. Como a Camões. No maior jornal de Lisboa de sua época, o «Diário de Notícias», o seu nome nunca apareceu. Ou melhor, só apareceu na página policial, quando um mágico, seu amigo, fez alguém sumir de verdade. Seus colegas de escritório nem sabiam que ele era poeta! Por isso disse que pertencia a uma geração que herdara a descrença. «Pertenço a uma geração, diz ele, que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em tôdas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda a impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas da ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outroseram enamorados só da beleza, outras tinham a fé na ciência e nas seus proveitos, e havia outras que, mais cristãos ainda, iam buscar a orientes e ocidentes outras formas religiosas com que entretivessem a consciência, sem elas ôca, de meramente viver. Tudo isso nós perdemos, de tôdas essas consolações nascemos órfãos. Nós perdemos essa, e às outras também. Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de sesentir viver. Um barco parece ser um objeta cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um pôrto. Nós encontramo-nosnavegando, sem a idéia da pôrto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é precisa. Sem ilusões, vivemos apenas da sanha, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos...» (nota solta, sem data nem assinatura, do magnífico poeta Fernando Antonio Nogueira Pessoa, talvez o maior de todos nós).

A visão do mar

Rogel Samuel

Mas não sei como poderia subsistir hoje sem a visão do mar, como nas “Palavras ao mar”, de Vicente de Carvalho:
“Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Junto da espuma com que as praias bordas,
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas - a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.”
Vicente de Carvalho, que era paulista, de Santos, assim o disse. Quando ele nasceu...
“Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras:
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como olhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...”
Este hino ao mar, um dos melhores, amplo, sonoro, Vicente de Carvalho escreveu. Nasceu em abril, como diz o poema, no dia 5 de abril de 1856, “O claro mês das garças forasteiras / Abril, sorrindo em flor pelos outeiros, / Nadando em luz na oscilação das ondas”. Poeta feliz, ou melhor, da felicidade, da felicidade luminosamente azul:
“Sei que a ventura existe,
Sonho-a; sonhando a vejo, luminosa.
Como dentro da noite amortalhado
Vês longe o claro bando das estrelas;
Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas
Da alma entreabrindo, subo por instantes...
O mar! A minha vida é como as praias,
E o sonho morre como as ondas voltam!”
Os olhos descansam na visão oceânica. Além disso, Vicente de Carvalho também foi aguerrido jornalista. Escrevia na imprensa, defendendo suas idéias. Foi deputado, Constituinte do Estado, em 1891. Seu ritmo é oral, como de tribuno, em:
“Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Ouço-te às vezes revoltado e brusco,
Escondido, fantástico, atirando
Pela sombra das noites sem estrelas
A blasfêmia colérica das ondas...
Também eu ergo às vezes
Imprecações, clamores e blasfêmias
Contra essa mão desconhecida e vaga
Que traçou meu destino... Crime absurdo
O crime de nascer! Foi o meu crime.
E eu expio-o vivendo, devorado
Por esta angústia do meu sonho inútil.
Maldita a vida que promete e falta,
Que mostra o céu prendendo-nos à terra,
E, dando as asas, não permite o vôo!”

Em Santos ele faleceu. Em 22 de abril de 1924, aos 68 anos. Herdou o verso forte de Castro Alves. O verso: “A que as brisas da terra o sono embalam”, lembra o de Alves: “que a brisa do Brasil beija e balança”, em:
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...

Esta estrofe ousada, esta ousadia poética de Castro Alves, de rasgar a Bandeira Nacional num poema, poderia, em outros tempos, levá-lo à prisão. Entretanto vivia na liberdade de seu tempo democrático, heróico, nos versos decassílabos heróicos, com acentos 6 - 10: -------dão------ter / ----- sil ------ lan.
Auriverde penDÃO de minha TERra, Que a brisa do BraSIL beija e baLANça
O Brasil oscila, ali. Aos ventos. Aquele navio cheio de escravos era bem brasileiro. Uma “vergonha”, diz ele. Lembro-me do poeta amazonense Hemetério Cabrinha a recitar, na Rua Saldanha Marinho, em Manaus, na porta do jornal “A crítica”:
Era um sonho dantesco o tombadilho
que das luzernas avermelha o brilho...
Ele me lembra o seu próprio poema “O Cristo do Corcovado”:
“No escalavrado píncaro da serra,
Que o luar alveja e a luz do sol estanha;
E onde a cidade, abençoando a terra,
Se espreguiça na falda da montanha;
Ergue-se o Cristo-Redentor, coitado!
Braços ao ar, o triste olhar cravado
Na base de granito que o suporta
De alma apagada e a consciência morta.
O Cristo cujo busto alvinitente,
Granítico, imponente
E lavado de sol;
Aureolando de alvura o Corcovado,
Qual Prometeu, virado
Para o horizonte, a medir o arrebol;
E, de distância imensurável, visto
Qual uma forma etérea
É apenas um Cristo
Feito à custa de angústias e miséria.”
O poema inteiro está no nosso sítio, em:
http://www.geocities.com/rogelsamuel/cabrinha.html
O verso: “Que a brisa do Brasil beija e balança” tem 4 “bb” de beijos. A bandeira aí ondula aos beijos dos ventos. Nas cores do céu, nas cores da esperança. A bandeira irradia sol. Irradia patriotismo. “Estamos em pleno mar”, o mar azul, o “mar da memória” do amazonense Sebastião Norões:
“Eu quero é o meu mar, o mar azul.
Essa incógnita de anil que se destrança
ânsias de infinito e me circunda
em grave tom de inquietude langue.
O mar de quando eu era, não agora.
Quando as retinas fixavam tredas
a incompreensível mole líquida e convulsa.
E o pensamento convidava longes,
delimitava imprevisíveis rumos
viagens de herói e de mancebo guapo.
Quando as distâncias fomentavam sonhos.
Rebenta em mim essa aspersão tamanha
que a imagem imatura concebeu
de quando o mar era meu, o mar azul.”

Coube a este amazonense a glória de ter escrito um dos mais belos sonetos do mar. Longe do mar. Só de memória. Norões nasceu no dia 7 de março de 1915, em Humaitá, Rio Madeira e faleceu em Manaus. Estudou em Fortaleza. Aos 18 anos volta para Manaus, faz a Faculdade de Direito. Professor no Colégio Estadual, onde foi meu professor de geografia. Exerceu o cargo de Chefe de Polícia do Estado, quando escondeu e deu fuga ao comunista Jorge Amado. Membro do Clube da Madrugada e da Academia Cearense de Letras. “Poesia Freqüentemente” é livro de minha predileção. Ali sentimos sua poesia viva, sua poesia azul. Nesta pequena obra-prima, que é “Mar da memória”, a ânsia de infinito, como se o poeta quisesse voar, escapar do estreito espaço em que se movia, alcançar Alascas e Austrálias. Revela lembranças, do mar, dos verdes mares de Fortaleza, do mar literário, do mar de Alencar, que era verde. Mas quando “o mar é meu”, o mar de minha memória, é azul, e não verde, de minhas lembranças que se voltam para os céus, dos imprevisíveis rumos de minha vida, sonhada ainda, de imprevisíveis rumos. Pois “arte é o homem acrescentado à natureza”, escreveu Van Gogh, em carta a Théo de 1879. E ele entendia de azul, de delirante azul.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008


O SILÊNCIO ANTES DA CATÁSTROFE


Rogel Samuel


Li na internet que, de acordo com um relatório da OMS (a organização mundial de saúde) e do UNICEF, mais de 2,6 bilhões de seres humanos – ou seja, mais de 40 por cento da população mundial - não tem água de boa qualidade, e para mais de um bilhão de pessoas a água é completamente não-potável, anti-higiênica.
O relatório - "A realização de objetivos de desenvolvimento do milênio para potável e sua purificação" – avalia os anos de 1990 a 2002, e chega a dados catastróficos. A purificação da água, em escala mundial, não será alcançada para o extraordinário e desnorteante número de um e meio bilhão de indivíduos - a maioria deles vivendo da agricultura na África e Ásia.
Os esgotos não tratados ou abertos contaminam de várias doenças e matam milhões de crianças, e deixam milhões de pessoas no limite da sobrevivência.
O mundo está para alcançar um nível crítico de consumo de água em relação ao crescimento da população, de forma que 800 milhões de pessoas beberão água contaminada até 2015. Os efeitos catastróficos poderiam ser evitados, segundo a UNICEF e o OMS, se se tomassem as providências cabíveis e se se ensinasse uma higiene elementar para as populações. O relatório aponta para uma crescente tendência mundial de favelização e marginalidade urbana das grandes cidades.
Por conseqüência, as famílias que moram em aldeias e em distritos deserdados pelas cidades ricas serão dominadas por um ciclo de doenças e pobreza maior.
Crianças são as primeiras vítimas, mas a falta de higiene também terá um efeito negativo no crescimento econômico mundial. «Num mundo em que milhões de crianças nascem sem as necessidades elementares», declarou a Sra. Carol Bellamy, diretora geral do UNICEF, «a desigualdade crescente entre os que têm e os que não têm acesso a serviços de base está matando por dia aproximadamente 4.000 crianças, e são a causa de morte de 10 milhões de crianças todos os anos. Nós precisamos agir agora, caso contrário este número de vítimas vai certamente aumentar». Nas regiões mundiais em desenvolvimento, como a África saariana, reside o maior perigo.
Na ex-União Soviética só 83 por cento da população têm acesso a instalações de purificação de água suficiente. Com o crescimento das pressões econômicas e da população essas porcentagens podem diminuir. De acordo com o OMS e o UNICEF a inatividade de hoje terá conseqüências sérias. A diarréia será responsável pela morte de 1,8 milhões de pessoas todos os anos. Na maioria dos casos crianças de menos de cinco anos.
Na África as pessoas perdem mais de 40 bilhões de horas de trabalho para ir buscar a água que bebem. E muitas crianças, em particular as meninas, não vão para a escola por falta de latrinas, o que é um desperdício para suas possibilidades intelectuais e econômicas. Não basta dinheiro, diz a Sra. Bellamy e o Dr Lee, para inverter essa tendência e se ir aproximando de uma cobertura mundial de água, mas de políticas nacionais de reorientar recursos para benefício das comunidades mais pobres, com a cooperação da administração local e o setor privado para a contribuição de uma solução possível.
«Para alcançar os objetivos de 2015, os países têm que criar uma determinação política e têm que constituir recursos que permitam socorrer um bilhão de habitantes de cidade novas, e diminuir em cerca de um bilhão o número de habitantes que não tem acesso a instalações de purificação de água suficiente - caso contrário nós arriscamos a deixar à margem caminho do desenvolvimento milhões ou até mesmo um bilhão de seres humanos», diz o Dr Lee. «Temos de garantir os elementos básicos à vida até 2015».