segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

DOGEN

Dogen - ROGEL SAMUEL




Que coisa extraordinária, o grande gol, a grande meta não é tornar-se um Buda Supremo, mas o principal é entender que um pensamento segue um pensamento, um após outro, infinitamente, no fluxo mental, e, enfim, deixá-los ir, não se concentrar em nenhum deles, não ser nenhum deles, não tomar nenhum deles como sendo meu ou eu, não dar importância a nenhum deles, não...




Acima de tudo, não deseje tornar-se um futuro Buda;
Sua única preocupação deveria ser,
Como o pensamento segue o pensamento,
E evitar agarrar qualquer um deles.


DOGEN (1200 - 1253) 

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

O TEATRO VAZIO.



1. O TEATRO VAZIO.

 O deputado Fernandes Júnior chegou cedo ao prédio da Assembléia Legislativa Provincial, que ainda estava fechado. Ele entrou pela porta lateral, reservada aos faxineiros, secretários, auxiliares administrativos.
         Era uma bela manhã de maio de 1881. O deputado trazia consigo o rascunho do texto que mudaria a história do Amazonas, pois prometera à sua mulher, D. Auxiliadora de Nazaré, que levantaria o pleito de se construir um teatro de alvenaria para a cidade de Manaus.
A cidade dispunha de três espaços para espetáculos: o “El Dorado”, o “Éden-teatro” (um barracão de madeira) e uma sala no Edifício da Beneficência Portuguesa, onde se representou “São Benedito”, uma peça popular.
Na noite anterior, no Éden, a exigente D. Auxiliadora assistira “Ghigi”, de Gomes de Amorim, e anteriormente a “Justiça”, de Camilo Castelo Branco, em 1869. 
A vida em Manaus era elegante, rica, alegre, no início do apogeu de uma sociedade que enriquecia rapidamente, com a extração da borracha. Fernandes Junior e sua mulher viviam em festas, piqueniques e espetáculos teatrais. Os salões de sua casa se abriam todas as semanas, nas noites das sextas-feiras, para receber os amigos. Nos domingos, numa grande mesa, sob o caramanchão do jardim, era oferecida uma tartarugada, ou uma peixada, almoço festivo regado a vinho português, sucos de diversas frutas, compotas de doces e banhos nas águas limpas do igarapé que passava atrás da casa. 
Aquilo ia até ao anoitecer. Lima Silva, Alarico José Furtado (presidente da província do Amazonas), Emílio Moreira, João Coelho e outros freqüentavam aquela mesa, com esposas, filhos, babás e empregados, congestionando a rua da Conceição, onde morava o deputado. Entre os convidados, o rico comerciante Manuel de Oliveira Palmeira de Menezes, chefe da casa Menezes, Gomes & Cia, o primeiro contratante da obra de construção do teatro, que depois passou para Alexandre Dantas e passou para Rossi & Irmãos da Itália, todos impossibilitados de realizar a obra pelos 493 contos contratados.
Fernandes Júnior era um dândi, simpático, educado, conhecia Paris, tinha refinamento, elegância e alguma cultura, principalmente de autores portugueses. Seu projeto era bem modesto, de apenas 60 contos de réis, para a construção de um teatro. Aprovaram em 120 contos. Mas as obras pararam. Quase dez anos paradas. E chegaram a milhões de contos de réis. Foi uma obra faraônica, uma das maiores e mais dispendiosa obra da República, até hoje. Fernandes Junior faleceu no Maranhão, no dia 24 de abril de 1894, treze anos depois de ver o seu Teatro construído com grandes, gigantescas modificações. Chegou a ver o Teatro Amazonas “erguido e em pleno apogeu”, como escreveu sobre ele Mário Ypiranga Monteiro.
Anos depois, em 1995, estando Paravotti no Brasil, fez questão de ir a Manaus apenas para conhecer o Teatro, que foi aberto somente para ele. Cantou para o Teatro Vazio. Em 1996, foi a vez de José Carreras.  O Teatro, entretanto, estava lotado. 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

RIMBAUD - NOITE DE INFERNO


Noite de Inferno

RIMBAUD

Bebi um grande gole de veneno. - Três vezes bem-dito o conselho que até mim chegou! Abrasam-se-me as entranhas. A violência do veneno convulsiona-me os membros, desfigura-me, atira-me ao solo. Morrode sede, sufoco, não posso gritar. É o inferno, a condenação eterna! Olhai como o fogo cresce. Queimo como devo queimar! Sai, demônio! 
Havia entrevisto a conversão ao bem e à felicidade, a salvação. Posso descrever a visão? O ar do inferno não tolera hinos! Eram milhões de criaturas encantadoras, um suave concerto espiritual, a força e a paz, as nobres ambições, que sei eu? 
As nobres ambições! 
E é ainda a vida! - Se a condenação é eterna! Um homem que quer mutilar-se está condenado, não é assim? Acredito-me no inferno,logo estou nele. É o cumprimento do catecismo. Sou escravo de meubatismo. Pais, fizestes a minha desgraça e a vossa! Pobre inocente! - 
O inferno nada pode contra os pagãos. - É a vida. Mais tarde, as delícias da condenação serão mais profundas. Um crime, depressa, que as leis humanas me precipitem no nada. 
Cala-te, mas cala-te!... Esta é a vergonha, esta a repreensão: Satã que diz que o fogo é ignóbil, que minha cólera é terrivelmente louca. - 
Chega!... Segredam-me erros, magias, falsos perfumes, músicas pueris. - E dizer-se que possuo a verdade, que vejo a justiça: tenho um juízo são e firme, estou pronto para a perfeição... Orgulho. – Seca-me a pele da cabeça. Piedade! Senhor, eu tenho medo. Tenhosede, tanta sede! Ah! a infância, a erva, a chuva, o lago sobre aspedras, a claridade da lua quando o campanário tocava meia-noite... O diabo está no campanário, a esta hora. Maria! Virgem Santa!... -Horror de minha idiotice. 
Lá longe, não há almas honestas que me desejem o bem?... Vinde... Tenho um travesseiro sobre a boca, não me ouvem, são fantasmas. A1ém disso, que ninguém se aproxime. Cheiro a queimado, é certo. As alucinações são inumeráveis. É a que sempre tive: nenhuma fé na história, esquecimento dos princípios. Calar-me-ei; poetas e visionários sentiriam ciúmes. Sou mil vezes mais rico, sejamos avaros como o mar. 
Ah! o relógio da vida parou neste instante. Já não estou no mundo. - A teologia é séria, o inferno está sem dúvida em baixo - e o céu no alto. - Êxtase, pesadelo, sonho em meio a um ninho de labaredas. Quanta malícia na atenção no campo... Satã, Ferdinando, corre com os grãos selvagens... Jesus caminha sobre sarças ardentes, sem dobrá-las... Jesus caminhava sobre as águas revoltas. A lanterna no- lo mostrou de pé, branco e as tranças negras, sobre uma onda de esmeralda... 
Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religiosos ou naturais, morte, nascimento, futuro, passado, cosmogonia, o nada. Sou mestre em fantasmagorias. 
Escutai! 
Possuo todos os talentos. - Aqui não há nada e há alguém: não quisera desperdiçar o meu tesouro. - Desejais que eu desapareça, que mergulhe à procura do anel? Desejais? Fabricarei ouro, remédios. 
Confiai em mim, a fé conforta, guia, cura. Vinde todos, - até as criancinhas, - para que vos console, para que vos prodigue o seu coração. - O coração maravilhoso! - Pobres homens, trabalhadores! Não peço. orações; serei feliz apenas com vossa confiança. 
- E pensemos em mim. Isto me faz ter raras saudades do mundo. Minha vida foi somente doces loucuras, é lamentável. 
Bah! façamos todas as caretas imagináveis. Decididamente, estamos fora do mundo. Já não há ruídos. Desapareceu-me o tato. Ah! meu castelo, minha Saxônia, meu bosque de salgueiros. As tardes, as manhãs, as noites, os dias ... 
Estou exausto!\ 
Deveria ter o meu inferno pela cólera, meu inferno pelo orgulho, - e o inferno da preguiça; um concerto de infernos. Morro. de cansaço. É o túmulo, vou para os vermes, horror de horrores! Satã, farsante, queres disso1ver-me com teus feitiços? 
Exijo. Exijo! um golpe de tridente, uma gota de fogo. 
Ah, sair de novo para a vida! Contemplar nossos aleijões! E esse veneno, esse beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo! Deus meu, piedade, esconde-me, estou doente! - Estou escondido e ao mesmo tempo não o estou. 
É o fogo que se 1evanta com o seu condenado.

Arthur Rimbaud
(Tradução Xavier Placer)

Do livro: Uma estação no inferno, Cadernos de Cultura, Imprensa Nacional, 1952, RJ

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

O EFÊMERO




O EFÊMERO

ROGEL SAMUEL


De Ricardo Reis canta certa ode, digo Pessoa, nos meus ouvidos sempre que estou em dúvida e que logo me diz:


Tão cedo passa tudo quanto passa!
Morre tão jovem ante os deuses quanto
Morre! Tudo é tão pouco!
Nada se sabe, tudo se imagina.
Circunda-te de rosas, ama, bebe
E cala. O mais é nada.


De meu mestre Euryalo Cannabrava certa vez nos contava, em sala de aula, que, quando algum dilema lhe aparecia ele preparava a sua morte, que era hipotética morte, ele a marcava, com data e horta, para depois de alguns dias se matar, dizia ele, e seus problemas se diluíam porque nada resiste à Ela, a morte - a suprema! - e «tão cedo passa tudo quanto passa!». Que sem a morte a vida seria muito mais chata, repetitiva e cruel.
Nesse sortilégio o nada vai da invenção das palavras, criatura de uma rosa eterna, para além dessas floras efêmeras - eterna porque morre, e morre por ser eterna, neste mundo vão - curiosa antítese que me lembra uma página de Hannah Arendt em que se faz a distinção entre eternidade e imortalidade (Hanna ARENDT. A condição humana. Rio de Janeiro, Forense/Rio de Janeiro, Salamandra/São Paulo, Ed. Universidade São Paulo. 1981. 339p.)
A distinção estabelecida entre imortalidade e eternidade esclarece parte da alienação do nosso mundo moderno 
Pois Imortalidade significava a continuidade no tempo, através da realização de grandes feitos, obras - os feitos notáveis. Por sua capacidade de produzir grandes obras e de realizar feitos heróicos e imortais, os homens podiam, através das marcas de sua passagem, participar da natureza dos deuses. Na Antigüidade Clássica, havia os que ambicionavam à fama e, portanto, à imortalidade, e havia os que, satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferecia, viviam e morriam como animais. Nesses dois casos, uma alienação se percebe e uma falta de compreensão da natureza do real.
Outra coisa era a experiência do eterno, própria do filósofo, no sentido estrito do termo, isto é, aquela visão da eternidade, ainda que passageira, momentânea. Diz Arendt que depõe muito a favor de Sócrates o fato de ele não ter escrito nada, porque não estava preocupado com a fama, ou seja, com a imortalidade. O filósofo vivia a experiência do eterno. Se escrevesse a sua experiência do pensar, ambicionaria Sócrates a imortalidade, ou seja, procuraria deixar para a posteridade algum vestígio de si: assim é a fama. (Ironicamente hoje se admite poder alguém ser «famoso» sem nada ter produzido, como por exemplo um locutor de TV ou uma garota do Big-Broder).
A experiência do eterno, diz Arendt, só pode ocorrer fora da esfera das ambições humanas. Se morrer é deixar de estar entre os homens, ela é a morte do ego. Seu contrário seria a intenção da fama, da imortalidade. Eternidade e imortalidade estão, deste modo, em lados integralmente opostos e contraditórios.
Entretanto, tal experiência, a percepção do Eterno, diz Hannah Arendt, tem de ser rápida, ninguém poderia suportá-la por muito tempo. Nós, seres condicionados e mortais, não podemos encarar o eterno na sua eternidade, senão indireta e rapidamente, numa intuição momentânea. O eterno está fora do nosso mundo. A imortalidade, ao contrário, reside entre nós, é criação humana. Ao contrário, o eterno não é condição de possibilidade humana, nem é tocado pela ambição humana. O eterno advém ao homem quando este nada deseja, na imobilidade do pensamento atento, silenciado pelo êxtase da contemplação. Os poetas do Zen sabiam disso. Pois o eterno não pode ser convertido em atividade da cotidiana linguagem humana, é uma iluminação fortuita que não se consegue senão com a intuição do poético, com a observação pura dos movimentos do pensar. O eterno é positivo, nasce quando há radical negação. Não pode ser aprisionado pelo discurso, mas representa a intensificação, a liberdade, a libertação do que não pode ser objetivado pelo discurso científico - o eterno é a poesia.
A Imortalidade, entretanto, foi impiedosamente abalada com a queda do Império Romano. A destruição de Roma mostrou cruelmente que nenhum produto do homem pode ser considerado eterno. A nossa feitiçaria é vã, diria o poeta Ledo Ivo.
A morte, entretanto, é coisa séria, como o que «contam de Clarice Lispector» de João Cabral:


Um dia, Clarice Lispector 
intercambiava com amigos 
dez mil anedotas de morte, 
e do que tem de sério e circo.
Nisso, chegam outros amigos, 
vindos do último futebol, 
comentando o jogo, recontando-o, 
refazendo-o, de gol a gol.
Quando o futebol esmorece, 
abre a boca um silêncio enorme 
e ouve-se a voz de Clarice: 
Vamos voltar a falar na morte?

domingo, 21 de fevereiro de 2016

O AMANTE DAS AMAZONAS


TALVEZ que uma ratazana saísse dali diante de mim, de sua ratada. Talvez. Ratânia-do-Pará. Talvez um ratão, um rato enorme, como ratão-d’água, ratão do banhado, roendo, moendo sob a terra, corroendo a casca, mascando e carcomendo a crosta, consumindo, devorando por baixo de numa mastigação constante. Ou mais. Ou o dorso preto, ou cinza escuro, de quase 15 centímetros de rabo, couro, rabo-de-couro e arganaz, murídeo - e atrás vinham outros, catitas, ratinhos, e mais um rato preto, de pilosidade eriçada, um camundongo quase gordo, coró, toró, curuá, sauiá, e mais. E mais. E eram muito mais ratos vindo chegando entrando no barracão, imburucus, gabirus, dezenas, centenas, milhares - o Manixi estava sendo consumido por ratos, e não só de noite como a qualquer hora do mesmo dia.
Revelo que isso se passou naqueles anos, depois, em 1925. Quando presenciei o processo de decadência e morte do Manixi. Para tudo descrever do que então vi direi que os ratos, atrevidos, vorazes, famintos, se multiplicavam, agressivos. Todo o empenho de João Beleza, que administrava o espólio, toda a sua luta contra os ratos de nada adiantava, os ratos não desapareciam e aumentavam, dia a dia, não havia como salvar nada, nem quando conseguiu gatos, os gatos nada puderam fazer, acabaram mortos, os cadáveres dos gatos saqueados e comidos por ratos famintos, ávidos, múltiplos, como se fosse o Juízo Final.

sábado, 20 de fevereiro de 2016

O QUE FALOU UMBERTO ECO NAQUELA NOITE



O QUE FALOU UMBERTO ECO NAQUELA NOITE 

ROGEL SAMUEL...

JÁ FAZ MUITO TEMPO. VOU LEMBRAR ALGUMAS FRASES DELE NA VARANDA, ENQUANTO BEBÍAMOS VINHO NA NOITE MORNA CARIOCA...
ELE DISSE QUE GOSTARIA DE ENTRAR NO MERCADO DE LIVROS AMERICANO. OS SEUS LIVROS SÓ ERAM VENDIDOS NA EUROPA. E ELE SONHAVA CONQUISTAR O MERCADO AMERICANO. POR ISSO ESTAVA ESCREVENDO UM ROMANCE, OU IA ESCREVER, NÃO SEI BEM.
Sim, ia escrever um romance que não teria uma única frase sua, nenhuma, todas as frases seriam de pastiches, citações de outros romances de sucesso. Mesmo o enredo seria uma costura de outras narrativas, de todas as narrativas de sucesso no mundo da literatura. Ele iria usar de todo o seu conhecimento literário para costurar, frase a frase, o texto de sua obra, de seu primeiro romance, ainda sem nome...

MORRE UMBERTO ECO

MORRE UMBERTO ECO - EU O CONHECI NA CASA DE MÔNICA RECTOR... . Assim conheci Umberto Eco, com quem passamos a noite toda na varanda da casa de Mônica Rector discutindo a construção de romance... Ele se estava preparando para escrever “O nome da rosa”.
Mr. Eco was an expert in the arcane field of semiotics whose half-dozen works of fiction included the blockbuster medieval mystery “The Name of the Rose.”
NYTIMES.COM|POR JONATHAN KANDELL

A outra profecia Rogel Samuel


A outra profecia

Rogel Samuel


. Como eu disse, eu tive um amigo, Carlos de Souza Neves, pesquisador das profecias. Principalmente Nostradamus. Ele é autor de um gigantesco livro, “As profecias do nosso tempo”. Eu tenho esse livro, mas não o encontro. Desorganização minha. 

Ele dizia que o mar vai invadir a terra. Isto é possível, com o aquecimento global. No fim da vida, ele construiu uma casa, com cerca de 15 quartos, em Caxambu. Não é luxuosa. Eu a conheço. Após a sua morte, foi deixada, por herança, a um grupo da Sociedade Teosófica. A sua imensa biblioteca lá está.

Mas não é uma casa comum. 
Ela está preparada para o fim do mundo. Souza Neves estocou tudo para sobreviver ali durante muito tempo: fósforo, álcool, lenha, óleo, etc. A própria localização, numa elevação, mostra que ele construiu um refúgio. Uma fortaleza. 

Ele acreditava que a terceira guerra mundial viria do Oriente Médio. Na época nós só pensávamos no confronto entre a União Soviética e os Estados Unidos. Ele dizia que o perigo viria da zona árabe. Na época, ninguém falava em terrorismo. Mas ele sim. 
Mas o pior seria a invasão do mar. Moro a beira mar. No primeiro andar. 

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Carta enviada por Guimarães Rosa



Carta envida por Guimarães Rosa ao amigo e também autor João Condé, onde faz relatos inéditos sobre Sagarana.

Prezado João Condé,

Exigiu você que eu escrevesse, manu propria, nos espaços brancos deste seu exemplar de Sagarana, uma explicação, uma confissão, uma conversa, a mais extensa, possível — o imposto João Condé para escritores, enfim. Ora, nem o assunto é simples, nem sei eu bem o que contar. Mirrado pé de couve, seja, o livro fica sendo, no chão do seu autor, uma árvore velha, capaz de transviá-lo e de o fazer andar errado, se tenta alcançar-lhe os fios extremos, no labirinto das raízes. Graças a Deus, tudo é mistério.

Algo, porém, tem de ser dito. Ao autor o que é do autor, mas a João Condé o que é de João Condé.

Assim, pois, em 1937 — um dia, outro dia, outro dia... — quando chegou a hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no momento, a minha concepção-do-mundo.

Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela para mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente.

Já pressentira que o livro, não podendo ser de poemas, teria de ser de novelas. E — sendo meu — uma série de Histórias adultas da Carochinha, portanto.

Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições — no tempo e no espaço. Isso, porque: na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquele sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe. 

Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. De certo que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira. O que eu gostaria de poder fazer (não o que fiz, João Condé!) seria aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos de Paul Éluard: ...“o peixe avança nágua, como um dedo numa luva”... Um ideal: precisão, micromilimétrica.

E riqueza, oh! riqueza... Pelo menos, impiedoso, horror ao lugar-comum; que as chapas são pedaços de carne corrompida, são pecados contra o Espírito Santo, são taperas no território do idioma.

Mas, ainda haveria mais, se possível (sonhar é fácil, João Condé, realizar é que são elas...): além dos estados líquidos e sólidos, por que não tentar trabalhar a língua também em estado gasoso?!

Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores.

Porque o povo do interior — sem convenções, “poses” — dá melhores personagens de parábolas: lá se veem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores estalarem sob o raio, e cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca.

Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas. Aqui, caro Condé, findava a fase de premeditação. Restava agir.

Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, “revendo” paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de manhã.

O livro foi escrito — quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas — em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento.

(Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945, foi “retrabalhado”, em cinco meses, cinco meses de reflexão e de lucidez).

Lá por novembro, contratei com uma datilógrafa a passagem a limpo. E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o original, às 5 e meia da tarde, na Livraria José Olympio. O título escolhido era “Sezão”; mas, para melhor resguardar o anonimato, pespeguei no cartapácio, à última hora, este rótulo simples: “Contos” (título provisório, a ser substituído) por Viator. Porque eu ia ter de começar longas viagens, logo após.

Como já disse, as histórias eram doze: 

I) — O burrinho pedrês — Peça não profana, mas sugerida por um acontecimento real, passado em minha terra, há muitos anos: o afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio.

II) — A volta do marido pródigo — A menos “pensada” das novelas do Sagarana, a única que foi pensada velozmente, na ponta do lápis. Também, quase não foi manipulada, em 1945.

III) — Duelo — Aqui, tudo aconteceu ao contrário do que ficou dito para a anterior: a história foi meditada e “vivida”, durante um mês, para ser escrita em uma semana, aproximadamente. Contudo, também quase não sofreu retoques em 1945.

IV) — Sarapalha — Desta, da história desta história, pouco me lembro. No livro, será ela, talvez, a de que menos gosto.

V) — Questões de família — História fraca, sincera demais, meio autobiográfica, malrealizada. Foi expelida do livro e definitivamente destruída.

VI) — (Uma história de amor — Um belo tema, que não consegui desenvolver razoavelmente. Teve o mesmo destino da novela anterior).

VII) — Minha gente — Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais.

VIII) — Conversa de bois — Aqui, houve fenômeno interessante, o único caso, neste livro, de mediunismo puro. Eu planejara escrever um conto de carro-de-bois com o carro, os bois, o guia e o carreiro. Penosamente, urdi o enredo, e, um sábado, fui dormir, contente, disposto a pôr em caderno, no domingo, a história (n. 1). Mas, no domingo caiu-me do ou no crânio, prontinha, espécie de Minerva, outra história (n. 2) — também com carro, bois, carreiro e guia — totalmente diferente da da véspera. Não hesitei: escrevi-a, logo, e me esqueci da outra, da anterior. Em 1945, sofreu grandes retoques, mas nada recebeu da versão pré-histórica, que fora definitivamente sacrificada.

IX) — Bicho mau — Deixou de figurar no Sagarana, porque não tem parentesco profundo com as nove histórias deste, com as quais se amadrinhara, apenas, por pertencer à mesma época e à mesma zona. Seu sentido é outro. Ficou guardada para outro livro de novelas, já concebido, e que, daqui a alguns anos, talvez seja escrito.

X) — Corpo fechado — Talvez seja a minha predileta. Manuel Fulô foi o personagem que mais conviveu “Humanamente” comigo, e cheguei a desconfiar de que ele pudesse ter uma qualquer espécie de existência. Assim, viveu ele para mim mais umas 3 ou 4 histórias, que não aproveitei no papel, porque não tinham valor de parábolas, não “transcendiam”.

XI) — São Marcos — Demorada para escrever, pois exigia grandes esforços de memória, para a reconstituição de paisagens já muito afundadas. Foi a peça mais trabalhada do livro.

XII) — A hora e vez de Augusto Matraga — História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre o seu conteúdo. Quanto à forma, representa para mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir.

Por ora, Condé, aqui está o que eu pude relembrar, acerca do Sagarana. Se você quiser, eu poderei contar, mais tarde —, num exemplar da 2ª edição — algumas passagens históricas, ocorridas entre o dia 31 de dezembro de 1937 e a data em que o livro foi entregue à Editora Universal. Serve?

Com o cordial abraço do
Guimarães Rosa

 Fonte: Portal Vermelho

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

A água canta

A água canta




Rogel Samuel

O outono lentamente se instala. Nas árvores, nas casas, no ar. Há a sutileza de um ar frio. Não é inverno, mas outono invernal. Dá para usar uma roupa um pouco mais quente. Ler um poema mais antigo de Bilac. Descreve o poema uma janela, o jardim, o mar. As folhas mortas, o navio o viajar o mar inabitado e morto. A água canta. É o amor quem canta. O fugidio amor que veio de noite, só por uma noite, amor marinheiro de Bilac que se sente envelhecido e desconfortado. O amor foge, ele é o sol. O mar está deserto, triste, as folhas amarelas caem, viuvez, velhice. Desconforto. Solidão.

Em uma Tarde de Outono

Outono. Em frente ao mar. Escancaro as janelas
Sobre o jardim calado, e as águas miro, absorto.
Outono... Rodopiando, as folhas amarelas
Rolam, caem. Viuvez, velhice, desconforto...

Por que, belo navio, ao clarão das estrelas,
Visitaste este mar inabitado e morto,
Se logo, ao vir do vento, abriste ao vento as velas,
Se logo, ao vir da luz, abandonaste o porto?

A água cantou. Rodeava, aos beijos, os teus flancos
A espuma, desmanchada em riso e flocos brancos...
Mas chegaste com a noite, e fugiste com o sol!

E eu olho o céu deserto, e vejo o oceano triste,
E contemplo o lugar por onde te sumiste,
Banhado no clarão nascente do arrebol...

Olavo Bilac

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

SERMÃO DA SEGUNDA DOMINGA DA QUARESMA - VIEIRA




SERMÃO DA SEGUNDA DOMINGA DA QUARESMA


Assumpsit Jesus Petrum, et Jacobum, et Joannem, et duxit illos in montem excelsum seorsum, et transfiguratus est ante eos.[1]


§ I

As felicidades do Monte Garizim, e as maldições do Monte Hebel. O monte da tentação e o monte da Transfiguração. A fim de desfazer a cegueira dos que seguem o demônio ao monte das tentações, porá o autor um monte à vista do outro monte; o monte das tentações à vista do monte da Transfiguração, e as glórias do mundo à vista das glórias do céu, comparando, não bem com males, senão bens com bens.

Às portas quase da Terra de Promissão, mandou Moisés apregoarem dois montes altos e opostos — com vozes que todo o exército imenso dos filhos de Israel, estendido pelos campos, milagrosamente ouvia — em um, chamado Gari­zim, as felicidades dos que guardassem a Lei de Deus, e em outro, que se chamava Hebel, as maldições e desgraças dos que a não guardassem. Tais se me afiguram nesta entrada da Quaresma os dois montes, também muito altos, e não só opostos, mas totalmente contrários, cuja história evangélica neste domingo, e no passado, nos representou e representa a Igreja. No primeiro monte o demônio, que ainda se chamava príncipe deste mundo, mostrou a Cristo todos os reinos do mesmo mundo, e todas as suas glórias: Ostendit et omnia refina mundi, et gloriam eorum (Mt. 4, 8). — No segundo, Cristo, verdadeiro Rei e Senhor do céu, mostrou a alguns discípulos seus mais familiares, não todo o reino, nem toda a glória do céu, porque não eram capazes de a ver os olhos humanos, mas alguma parte dela: Et transfiguratus est ante eos[2] — Oh! quanto vai de monte a monte! Oh! quanto vai de reinos a reino! Ó quanto vai de glórias a glória! Também um desses montes, e com mais razão, se podia chamar o das felicidades, e outro o das maldições. E também está bradando o pregão, em cada um deles, que as felicidades estão guardadas para os que guardarem a lei de Deus, a que Cristo transfigurado nos anima com a vista da glória do céu, e as maldições, do mesmo modo, estão aparelhadas para os que desprezam e quebrantam a mesma lei, a que o demônio tentador nos incita com a falsa aparência das glórias do mundo..

Como ambos estes montes são de glória, posto que tão diversas, a cada um deles responde a sua assunção. Ao primeiro: Assumpsit eum diabolus[3]; ao segundo: Assumpsit Jesus Petrum, et Jacobum, et Joannem[4]. — É certo que bastava ser uma assunção do diabo, e outra assunção de Jesus, para todos amarem e desejarem a assunção de Jesus, e abominarem e renegarem da assunção do diabo. Mas que é o que vemos? O caminho do Monte Tabor, por onde se vai à glória do céu, deserto, e quase sem  haver quem o pise; e a estrada do outro monte sem nome, por onde se vai às glórias do   mundo, cheia e rebentando de gente de todos os estados, ainda daqueles que professam o desprezo cio mesmo mundo! Lá disse Davi que todo o homem que tem fé e entendimento, o que faz muito de propósito neste vale de lágrimas é dispor a sua ascensão: Ascensines in corde suo disposuit, in valle lacrymarum, in loco quem posuit[5].– Pois,se todos desejamos e esperamos que a nossa ascensão e assunção seja para gozar eternamente as verdadeiras felicidades da bem-aventurança, como deixamos o caminho do monte por onde Cristo nos guia à glória do céu, e seguimos com tanta ânsia e contenda, não digo já a estrada, senão os precipícios, por onde o demônio, debaixo do falso nome nosso, de glórias do mundo, nos leva às maldições do inferno?

Ora, eu com a graça divina quisera hoje desfazer esta cegueira, que tantas almas tem enganado e perdido, as quais nesta vida a não conheceram, e agora sem nenhum remédio a choram. A este fim porei um monte à vista do outro monte, e umas glórias à vista da outra glória: o monte da tentação à vista do monte da Transfiguração, e as glórias do mundo à vista da glória do céu, comparando, . não bens com males, senão bens com bens. Por este meio, mais clara e manifestamente que por nenhum outro, se verá a diferença dos falsos aos verdadeiros; e já que os nossos entendimentos e vontades andam tão enganados, ao menos nos desenganarão os olhos. A luz da divina graça se sirva de no-los abrir e alumiar por intercessão da Cheia de graça: Ave Maria.

A prosa soberana

A prosa soberana




A prosa soberana

Rogel Samuel

Eu gosto dos escritores à moda antiga: Euclides da Cunha, Rui Barbosa. São textos fortes, camaleônicos, enrustidos, vulcânicos. O campeão é Antonio Vieira. O imperador da prosa. O monstro sagrado da escritura. Quem se mete a imitá-los, hoje, é rotulado de acadêmico, antiquado. Os escritores amazonenses do passado os imitavam, e até hoje prosadores como Saramago fazem uso dessa estética do texto retumbante, relâmpagos de sonoridades poéticas. De certo modo Guimarães Rosa. Ele também construía um palácio de assonâncias, como quando disse: “Sábio não é quem sempre ensina. Mas quem de repente aprende”.
São seis vezes o som de EM, que lembra o questionamento de “hein?”. Rosa constrói um romance em cima de sonoridades.
Alguns bons prosadores hoje estão esquecidos. Exemplo de Herberto Sales. Seu romance “Cascalho” tem uma “tessitura artística”, uma “arquitetura e a linguagem”, uma “densidade” estilística, no dizer de Adonias Filho.
São escritores de prosa soberana.

DUGPA RINPOCHÊ:



DUGPA RINPOCHÊ: 

Quem deseja a sorte alcança-a sempre. Não deprecies nunca os teus sonhos. Deves fazer um pacto com eles. Eles são a nascente e a força inesgotável que te levarão à vitória. Atrás do obstáculo, encontra-se uma liberdade virginal, um horizonte mais vasto.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

NATAL 2008

NATAL 2008



NATAL 2008

Natal me inspira estrelas e reis magos,
Natal revolve os séculos de usura,
Natal me faz pensar nessa loucura
de esperar pelos bens que foram pagos.
Natal de paz ou da canção dos lagos,
Natal de mim que em trevas se procura,
Natal de Deus na fé, quando obscura
ou quando se ilumina em breves tragos.
Natal de amor à mesa que nos prende
aos laços afetivos e ao consolo
de ter alguém que a mesma luz acende.
Natal da iniciação: que a cruz suporte
o corpo deste Rei, sangue e tijolo
do soneto que vence a própria morte.

JORGE TUFIC

VLADIMIR SOLOVIEV

VLADIMIR SOLOVIEV


POEMA

VLADIMIR SOLOVIEV
(Moscou, 1853-1900)

Amada criança, você não vê 
Que tudo que percebemos 
Reflexo é, como uma sombra 
Do invisível para nós?
Criança amada, não compreende você 
Que da vida cotidiana o seu fracasso 
É o deformado eco 
Das triunfantes harmonias?
Amada criança, você não sente 
Que o que importa nesta Terra 
É aquilo que um coração diz a outro, 
Sua mensagem silenciosa?
(Trad. Rogel Samuel)

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

A lógica do quintal

A lógica do quintal




A lógica do quintal

Rogel Samuel

Tem o verão sua lógica própria. Vejo as pessoas dentro daquela água imunda da praia e não gosto. O sol já está insuportável. Dizem que está cancerígeno. Tudo contribui para um verão desconfortável se eu não me adaptar à lógica dos nossos novos tempos de poluição. Ficar trancado no ar condicionado não, o verão impõe o ar, o andar.

Lembro-me do calor dos quintais. Dos fundos dos quintais, com galhinheiros e mangueiras. Luiz Bacellar traz os quintais de volta em:



PORTA PARA O QUINTAL

Bem haja o sol e a brisa neste canto!
Cá fico maginando a tarde inteira
deixando relaxar nesta cadeira
de embalo o corpo bambo de quebranto.
Brincam nas folhas da saputilheira
brilhos metalescentes, cor de amianto
saltitam sanhaçus de curto canto,
aranhas tecem prata na trapeira.
As telhas debruçadas dos beirais
vão com as calhas de lata, lá entre elas,
coisas de chuva e vento conversando
quais velhinhas comadres; nos varais
a roupa brinca de navio de velas
minha infância perdida reinventando...


(Frauta de barro)

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

JOÃO ZORRO





João Zorro 

Em Lixboa sobre lo mar 
barcas novas mandei lavrar, 
ay mia senhor velida! 

Em Lisboa sobre lo lez 
barcas novas mandei fazer, 
ay mia senhor velida! 

Barcas novas mandei lavrar 
e no mar as mandei deitar, 
ay mia senhor velida! 

Barcas novas mandei fazer 
e no mar as mandei meter, 
ay mia senhor velida! 

domingo, 7 de fevereiro de 2016

carnaval

carnaval
















carnaval

rogel samuel

no seu calor
eu que rebolar
a minha dor

na sua voz
eu que entoar
o amor

não sinto tanto
o vazio do meu
pranto

leve retrato

o meu carnaval
é no seu prato

sábado, 6 de fevereiro de 2016

CONHECES A REGIÃO DO LARANJAL FLORIDO?

CONHECES A REGIÃO DO LARANJAL FLORIDO?














CONHECES A REGIÃO DO LARANJAL FLORIDO?


Rogel Samuel

No início da "Canção de Mignon" de GOETHE misterioso verso: "Conheces a região do laranjal florido?" No original há um "lá", que se repete (Dahin, dahin), objetivando transcendência que a tradução excelente de João Ribeiro manteve. Um lá (Mignon) que talvez se refere a certo lugar na Itália, diz Eça de Queiroz, n'O mandarim. Um lieder de Schubert, de 1816. A terra privilegiada onde o laranjal floresce ouro (Citronen blühen). Um "lá... bem longe, além", que aponta para lugar, a princípio
paradisíaco, onde o sujeito do poema nos convida a ir, com ele, onde dourados pomos brilham na escuridão (Gold-Orangen glühen), e no céu azul a brisa, tudo em paz, nada move, nada passa, nem a vida, nem a glória (nem o louro)... Não a conheces tu? Quisera ir-me contigo...

Conheces a região do laranjal florido?
Ardem, na escura fronde, em brasa os pomos de ouro;
No céu azul perpassa a brisa num gemido...
A murta nem se move e nem palpita o louro...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu querido bem!

[Kennst du das Land, wo die Citronen blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möchtl ich... ziehn.]

A estrofe epígrafe de "A canção do exílio", de Gonçalves Dias, por isso a transcrevo. Não sei alemão. João Ribeiro, sábio e erudito filólogo carioca (1860-1934), também poeta. Hoje esquecido. Não mais editado. Em 1932 escreveu um ensaio sobre Goethe. Foi jornalista, catedrático do Pedro II. Soube dar e transpor o clima da "A canção de mignon".

A casa, sabes tu? em luzes brilha toda,
E a sala e o quarto. O teto em colunas descansa.
Olham, como a dizer-me, as estátuas em roda:
- Que fizeram de ti, ó mísera criança!
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu senhor, meu bem!

Súbito, Goethe introduz, nessa região maravilhosa, fantástica, irreal - uma casa! Sólida casa, como deve ser a tradição familiar: "O teto em colunas descansa". Casa paterna, a sala e o quarto, o mais íntimo das forças arquitetônicas do espírito ("sabes tu?), que olham, falam, vêem a desgraça a que fomos reduzidos ("que fizeram de ti, ó mísera criança?") - não, não a conheço, não a reconheço, a casa de meus pais, no além, no bem longe, aonde o poeta me levou. Meus familiares estátuas tumulares...

Conheces a montanha ao longe enevoada?
A alimária procura entre névoas a estrada...
Lá, a caverna escura onde o dragão habita,
E a rocha donde a prumo a água se precipita...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Vamos, ó tu, meu pai e meu senhor, meu bem!

Goethe introduz palavra-chave, palavra grave, palavra-montanha, ponto de fuga, de onde a dor se despedaça: meu "pai". Não só pai, mas pai e "senhor", com os semas que a idéia de senhor nos traz, nos põe, dispõe,
na mesa da leitura, do poder, da Lei. Do nome, do não. Goethe e João Ribeiro têm algo em comum além das "afinidades eletivas": a idéia, a ideologia do pai. João Ribeiro não teve pai (faleceu cedo), foi criado
pelo avô, "culto e liberal" (diz Afrânio Coutinho). Goethe cultuou o pai, herói. Entre eles se estabelece laço cúmplice da volta ao Pai. Meu pai, cuja língua materna era o alemão, recitava Goethe de memória. Mas a
montanha está enevoada, envolvem-se os mistérios de grandeza... os animais procuram estrada... lá reside o perigo - o dragão! - na Caverna escura, indevassável, uterina, se verte a água, da vida, que a prumo se
precipita, nas veias do destino... Não a conheces tu? É lá, lá...

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

A floresta do fim do mundo

A floresta do fim do mundo






A floresta do fim do mundo


Neuza Machado



Eis aí o espaço da ficção traduzido como a barca de Caronte a carregar o “coração triste” de quem narra, juntamente com os “mortos” de sua história extra-sensorial. Mas não é simplesmente uma “água melancolizante”, como a de Edgar Alan Poe, que preside a obra assinalada; é antes de tudo a atormentada água do sofrimento do povo primitivo do Amazonas, aquela que marcou a gênese de sua própria realidade sócio-espiritual (do povo primitivo, bem entendido). O narrador pós-moderno, em sua ativada solidão citadina, intelectualizada e contemplativa, socialmente distanciado do viver primitivo, meditou os “rios de sangue” que compuseram a realidade histórica do Amazonas. E, pela meditação, eis aí/aqui a mitológica barca de Caronte navegando insolitamente e ficcionalmente em direção a um espaço ensoberbecido - o Manixi - e ao seu rio da morte, o Igarapé do Inferno.





“A morte está nela”, na barca de Caronte. “A água leva para bem longe, a água passa como os dias”, diz Gaston Bachelard. A água mítica de Ribamar (do ribeiro ao Oceano), o primeiro personagem-narrador, para se livrar definitivamente de sua histórica dor - “matar” a dor que o consumia -, obrigou-se a ir ao fim do mundo, daquele mundo mítico onde se localizava o Igarapé do Inferno. Eis aqui o verdadeiro embate, embate infernal, para enterrar os mortos dignamente, fossem eles índios ou brancos ou mestiços, enterrar para sempre um passado histórico desvalorizado. Oh, “terra sem história”, como disse Euclides da Cunha. Mas, Euclides da Cunha não conheceu a dor de quem mergulhou a própria “taça de prata dourada na fonte que borbulhava” e viu “ela se encher de lágrimas”, se encher de “sangue”. “Quando o coração está triste, toda a água do mundo se transforma em lágrimas”, disse Gaston Bachelard. A narrativa ficcional pós-moderna, entrópica, é demonstrativa da tristeza que assolava o narrador do final do século XX, século de guerras e mortes inglórias, mas levando seus “mortos” em uma “barquinha de nada”, à moda daquele “filho” roseano, de “A terceira margem do rio”, que carregou, durante toda a sua existência, o seu velho pai/Sertão no coração.

In: O fogo da labareda da serpente (Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel)

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Cisne com uma asa só‏

Cisne com uma asa só‏




Cisne com uma asa só‏


CLARICE DE OLIVEIRA



O Cisne branco nasceu com uma só asa.
Quando o bando começou a voar com os menores, o Cisne ficava em terra, apenas olhando o vôo sob o Céu.
Afora isso, o cisne nadava muito bem e via sua imagem na água do Lago.
Mas... um Lago só.
Os outros cisnes, conheciam outras águas.
Muitas coisas da Vida, foram acontecendo com os cisnes do bando: casaram, tiveram filhos, perderam ninhadas na época da neve, sofreram nos temporais.
O cisne de uma só asa, tinha um lugar seguro perto do lago e era onde se refugiava nas tempestades e no frio.
O cisne, viu morrer muitos dos companheiros e não teve coragem de fazer a corte à uma fêmea, por ter somente uma asa, assim não teve o prazer de ter uma ninhada e como se resguardava muito, envelheceu, quando os outros cisnes, morreram.
O cisne viu passar o tempo, seu campo mudou; outras familias de moradores vieram al se estabelecer, e ele, o cisne, tornou-se uma figura famosa no lugar.
Tiravam muitas fotos dele, o cisne de uma asa só.
Quando o cisne morreu, ele voou para o Espaço, que pôde sobrevoar com uma asa só, e
viu-se diferente, com outro aspecto.
Dentro dele, do cisne, havia mais horizontes, pelo tempo na Terra, que ele observou; sua Alma era um Templo, onde a Pureza cultivada pela sua introspecsão, sem brigas por fêmeas, o transformaram, o Cisne, Hansa na língua Sânscrita, no símbolo máximo da Evolução Santificada.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016



A PANTERA 34 - ROGEL SAMUEL

Um dia, me pediram uma coleção primavera-verão e eu desenhei. Era a primeira vez que eu aceitava essa encomenda. Trabalhei meses e depois assisti ao desfile, anônimo. 
Foi consagrador, pois eu era diferente e logo encontrei meu lugar na chamada alta costura.
Não era no primeiro time, mas era.
No fim da apresentação, apareci rapidamente para agradecer os aplausos.  
Naquela noite sonhei com meu pai, coisa rara. Meu pai aparecia como um homem quase negro e me perguntava por que eu não queria fazer aquilo, e ganhar dinheiro. Ele não perguntava com palavras, mas com um gesto, um resmungo. -“E  então?” parecia dizer ele. Aí eu me lembrei de meu  pai tocando piano em Itacoatiara, no interior do Amazonas, sozinho na cidade, no único piano da cidade. Tocava aquela “Sonata ao Luar” de Beethoven, e lágrimas escorreram de meus olhos ao sabor da lembrança de meu pai já morto, no seu piano, tão longe, tão distante, no morto espaço de minha vida passada. Meu pai era um bom pianista. Aprendeu música em Strasbourg, onde cresceu, perto daquela catedral. Toda manhã acordava ao som dos sinos da Catedral.   
Depois daquela coleção, caí no esquecimento, mas continuei mesmo assim desenhando para  diferentes casas, graças ao sonho de meu pai,  profético, de apoio, como dizia “vá em frente”.
Depois resolvi fazer mais fotografia.  Era uma diversão. Eu sempre aprendia a cada foto. Fiz um estudo de luz e sombra em preto e branco e em cor. Fotografei corpos e objetos. Ao som das sonatas de Beethoven. Minhas fotos, reunidas, eram a “Sonata ao luar”. 
Mas o mundo girava rápido. Soube que a ditadura brasileira tinha prendido um companheiro nosso na Espanha e eu me apavorei.
Voltei a morar em diferentes hotéis por motivo de segurança, ou porque eu me sentia sempre perseguido. E tinha sempre uma boa quantidade de dinheiro vivo comigo para o caso da fuga. Talvez fosse paranoia, mas as notícias da repressão eram terríveis. Eu não viajava mais, sempre ficava em Paris, mudando de lugar quase escondido. E só.
Depois, fechei minha loja e desapareci.
Conheci a ponta dos extremos. Dos cadáveres semienterrados no alto da floresta, cujas roupas vesti, ao luxo europeu. Ali estava eu. Era esse o mistério de minha concepção de mundo e de arte. Desenhei roupas para rainhas e para índias. O meu mundo era o caos. 
Pretendia ir para os Himalaias, mas um devastador terremoto com milhares de mortos me deixou paralisado. Era um mundo em guerra. Eu me via em busca de segurança, num mundo inseguro, móvel, tinha pesadelos em que era caçado por tropas inimigas. Eu só via destruição e morte por toda parte. Tudo era um horror, tudo era a catástrofe. 


terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

O SOL

O sol

Rogel Samuel


O sol fica fraco, o verão. O brilho intenso cai, os ares claros, as nuvens raras. O outono. O abril se vai para maio, mês das noivas. Do amor. Quando eu era garoto, havia uma canção:

Rosa de Maio
É meu desejo
Mandar-te um beijo
Nesta canção.

Não sei, creio que era Francisco Alves. Aqueles cantores: Orlando Dias, Vicente Celestino. Conheci, pessoalmente, Albenzio Perrone. No fim da vida, gerente de restaurante vegetariano. E pobre, e digno. Elegante, magro, educado. Contou-me que, um dia, quando era grande sucesso, uma 
"fã" lhe telefona. Uma senhora estava em hospital. Dizia que, antes de morrer, queria conhecê-lo. Perrone mandou um amigo. Ela deixou toda a fortuna para o amigo. Rica. Sem herdeiros. Na época do rádio, não da TV - ela não sabia que o amigo era um impostor. Um falso Perrone. 
Gosto de vozeirões escandalosos, Agnaldo Rayol, Timóteo, Caubi. Gosto de Miltinho. Encontrei Agnaldo Rayol em casa de amigos. Me disse que seu ídolo era Altemar Dutra. Espanta como Agnaldo é jovem, para sua idade. Alto, bonitão. Sorriso aberto. Me disse quão amigo é da Hebe. Por causa dela tinha-se incompatibilizado, na época, com a Globo, o que lhe custava muito caro. Caubi era meu vizinho, em Copacabana. Digo, sua "boite", creio que "Drink". Caubi posava, aos domingos de sol, na porta. 
Via o movimento da garotada passar. Timóteo desfilava com seu conversível, emplacado em Timóteo, uma cidade. Passava glorioso pela Avenida Atlântica. Morava perto do Arpoador, num luxuoso prédio. Tinha predileção pelos domingos de sol, de verão.


Minha avó cantava uma canção que ouvi de sua boca refrão: "eu morro, eu perco vida, mas o amor dela não hei de deixar". Meu pai entoava uma estranha canção amazonense: "Cabocla do Caxangá, vem cá, cabocla, vem cá". E canções folclóricas alzacianas. O sol está ficando fraco, vai-se o verão, a vida, as canções. Mas o brilho intenso do passado estandartiza, nos ares, as claras visões dos cânticos do outono. Abril se vai para maio, quando se espera amar. 

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

CORREIO DA MANHÃ - 10 DE SETEMBRO DE 1968


A imaginação - CLARICE DE OLIVEIRA

A imaginação - CLARICE DE OLIVEIRA




A imaginação é mais importante que o conhecimento - Einstein



Somos os deuses, os criadores de nós mesmos. Que mais poderia haver, antes e depois de nós mesmos?
As nossas provações, são decretadas pelos nossos Espiritos, zelosos de nós mesmos.
Os mais zelosos e preocupados com nossa sincronia com a Harmonia, somos nós mesmos.
Quem mais nos amaria como nós nos amamos?
Nós criamos Deus, para ama-lO em tudo e Nele nos amarmos para recriar eternamente.
A Recriação Eterna é Função do Criado - humanos e animais.
Se estamos em Estágio de sofrimento e provação, a Criação e o Mundo, estão.
Sofremos, porque a Inteligencia ainda não percebeu a Razão Primaria que ainda não nos chegou para nos estabelecer de acordo com o Universo, ainda Desconhecido.

A Inteligencia sente que o Infinito e o Eterno escaparam do raciocinio, mas Não da Inteligencia.
Os Planos, dito Maiores, estão nos Menores, porque agem constantemente, concomitantemente, mas a Inteligencia, ainda não os absorveu.
O humano, não tem controle de Si próprio, isto é, do seu Destino, porque não se coloca em acordo com a Inteligencia.
O humano não morre, não reencarna, não nasce; é isto uma modificação de acordo com
o que ele perde e ganha; não digo "adquire", porque, ia "adquerir", o que? E Nisto não está, nem Vaidade, nem Humilhação.
clarisse