sábado, 29 de abril de 2017

O CAVALO DO APOCALIPSE

O CAVALO DO APOCALIPSE

ROGEL SAMUEL

Leio o mágico poema de Farias de Carvalho (1930-1997), “Meu cavalo chegou”, meu ex-professor (sua filha a poetisa Graça Carvalho foi minha amiga, já falecida).
A personalidade de Farias era marcante, carismática, extraordinária e nos parecia grandioso ao falar aos alunos, a voz possante, os gestos teatrais, abertos, os grandes olhos que lembrava Orson Welles.

O poema começa com:

“Meu cavalo chegou (memória e nuvem),
 a aurora derramada sobre a crina.
 Meu cavalo chegou. Fome de tudo
 estou também: engoliremos mundos.”

Que significa esse cavalo? Pois sua poesia sempre tem isso: uma reflexão sobre o tempo, os mortos, um mergulho naquele espaço misterioso. A aurora sobre a crina, a fome sobre os mundos...

“Meu cavalo chegou. E, pressentidos,
 os caminhos me espiam de suas rédeas.
 Meu cavalo chegou. Há quanto tempo
 gasto-me em pés e olhos nesta espera...”

Os caminhos vêm das rédeas, os pés são de espera, os olhos no horizonte.
E o cavalo vem do mito, do tempo, do vento, dos espaços, da espera, da morte. Do sonho:

“Meu cavalo chegou. Eu despertava
 quando o vento falou-me de seus cascos
 e a poeira garantiu-me sua presença.”

E vem sob a poeira do tempo, sua presença neste cemitério, é o fim, cumprir-me-ei, a população desse campo o cavalo vem para completar, preencher, executar, recolher e levar os mortos:

“Meu cavalo chegou. Cumprir-me-ei.
 Tanta gente cansada nessas cruzes...
 Meu cavalo chegou. Mortos, montai!...”

Enfim, o cavalo significa a viagem, a partida, a passagem, a perda, o transporte, a fuga, o escape para a fantasia, para o mundo dos mortos, dos sonhos, do levar, do que arrasta, do que leva e retira, do afastar para sempre.
O cavalo branco retira os mortos e os apaga, no esquecimento, na névoa do nunca mais.
O cavalo chegou. Vamos partir.
--------------------------
 Meu cavalo chegou (memória e nuvem),
 a aurora derramada sobre a crina.
 Meu cavalo chegou. Fome de tudo
 estou também: engoliremos mundos.
 Meu cavalo chegou. E, pressentidos,
 os caminhos me espiam de suas rédeas.
 Meu cavalo chegou. Há quanto tempo
 gasto-me em pés e olhos nesta espera...
 Meu cavalo chegou. Eu despertava
 quando o vento falou-me de seus cascos
 e a poeira garantiu-me sua presença.
 Meu cavalo chegou. Cumprir-me-ei.
 Tanta gente cansada nessas cruzes...
 Meu cavalo chegou. Mortos, montai!...


quinta-feira, 27 de abril de 2017

ELA, LUZ CLARA DO DIA; ELE, ESCURIDÃO DA NOITE

ELA, LUZ CLARA DO DIA; ELE, ESCURIDÃO DA NOITE


Rogel Samuel


Sim, Alberto de Oliveira exibe poesia visual, apresentadora, cinematográfica, descritiva, clássica, seu soneto «Cheiro de espádua» possui música, perfume, perfume de mulher, festa e orquestra, som, brilho, claridade, paixão, desejo, luz, sabe a Proust, a «belle époque», a luxo, luxo romântico, a Sarah Bernhardt, um luxo adolescente, jovem, sonho, delírio, valsa, rosas, rosas vermelhas.


«Quando a valsa acabou, veio à janela, 
Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava.
Eu, viração da noite, a essa hora entrava 
E estaquei, vendo-a decotada e bela.
Eram os ombros, era a espádua, aquela 
Carne rosada um mimo! A arder na lava 
De improvisa paixão, eu, que a beijava, 
Haurí sequiosa toda a essência dela! 

Deixei-a, porque a vi mais tarde, oh ciúme!
Sair velada da mantilha. A esteira 
Sigo, até que a perdi, de seu perfume. 

E agora, que se foi, lembrando-a ainda, 
Sinto que, à luz do luar nas folhas, cheira 
Este ar da noite àquela espádua linda!»

            O primeiro verso - «Quando a valsa acabou, veio à janela» - enverga, declara a perfeição clássica, a simplicidade do gênio, é um verso aberto com acento na sexta, ---------------- 6 -------- 10 , um decassílabo perfeito, heróico, camoniano, escorregadio como as valsas, volteia com a saída das moças da sala, virgens, perfumadas e com aquela, que veio até a sacada, respirar o ar fresco da noite, o ar fresco das estrelas, o hálito que desce das estrelas, que desce das luzes estelares, que desce com as fadas, as madrinhas, a pulsação, a palpitação do universo, das esferas que movem o céu, o sol e as outras estrelas, a juventude e seu amor, seu nobre amor, «Quando a valsa acabou... » são sons dos aa do amor, seis aas desse danúbio azul das flores de laranjeiras brasileira, ã – a – a – a – a – a – ou, «Quando a valsa acabou, veio à janela» - aquela valsa do amor do poeta, do amor poético, irisado de brilhos e vidros reluzentes, lustres de vitrine, vista da que veio à janela, «Sentou-se. O leque abriu. Sorria e arfava. » - são três segmentos da respiração arfante, da respiração difícil, ofegante, o sorriso da menina no bater do leque do ritmo dos espasmos de seu coração gozoso, prazeroso, sensual da virgindade em perigo, e o poeta, pronto para o ataque amoroso, para o estupro poético, para o noturno de beijos, sim, que é mais que beijo, porque nas espáduas, nos ombros, do «eu, viração da noite, a essa hora entrava / e estaquei, vendo-a decotada e bela», sim, o poeta entrava, descia, vinha pelo decote pela janela pelas fímbrias do amor – cavaleiro da noite, amante visitante da noite – pois se ela veio da luz e da valsa – ele veio da noite e da viração noturna, agressiva, pecadora, mortal: o seu desejo é cego, arde no fogo na lava da carne rosada rasgada e improvisada da paixão da sala - «eram os ombros, era a espádua, aquela  / Carne rosada um mimo! A arder na lava /  De improvisa paixão, eu, que a beijava, / Haurí sequiosa toda a essência dela! ».
            Então ela foge velada, escondida pela mantilha, e ele a segue pelo o rastro do perfume da carruagem de seu cheiro que, sim, continua na noite no luar no ar da noite aspirando-a numa masturbação poética à luz do luar, sim, cheiro de fêmea, do seu colo onde o olhar se precipita vai para o abismo de seu segredo. Sim, deixei-a porque a vi sair velada pela mantilha, a esteira, a perdi, o seu perfume, oh, agora, que se foi, lembrando-a ainda, sinto-a ainda à luz do luar das folhas, no cheiro desse ar da noite oh, aquela espádua linda. 
            Todo desejo é visual, é pelos olhos que começamos a atividade desejante. Ombros, espádua, a carne rosada,  Alberto de Oliveira abre o leque e revela, ostenta, a sua poesia visual, apresentadora do amor visualizado no colo nos ombros da amada, e tomando a parte pelo todo desce até o último íntimo ventre da noite de seu desejo. Até haurir a essência...




terça-feira, 25 de abril de 2017

O manto de diamantes das estrelas

O manto de diamantes das estrelas

Rogel Samuel

Os astrônomos encontraram no Universo um belo planeta azul, um belo planeta maior do que a Terra, um belo planeta feito todo de diamantes.
Os astrônomos descobrem muitas coisas.
Mas sempre distantes...
O que para mim significa um mundo cheio de diamantes é que, na cosmologia budista, me levou a pensar em Unisha Chakarvati, o Imperador do Universo.
Não seria aquele planeta uma joia que se soltara da sublime coroa de Unisha Chakarvarti?
Se os astrônomos podem especular lá do lado deles, por que eu, um pequeno cronista, não poderei sonhar do meu modo?
O planeta não pertence a nenhum de nós, nem a mim nem a eles.
Pertence ao Grande Universo, que é Eterno.
“Os diamantes são eternos”, canta Shirley Basey aquela canção de Jonny Barry, canção que apareceu no filme britânico de 1971, o sétimo da série 007, dirigido por Guy Hamilton e produzido por Harry Saltzman e Albert R. Broccoli.
Quando valerá um planeta feito de diamantes?
Quanto custará na bolsa de valores de diamantes?
Quem comprará um múltiplo diamante do tamanho do nosso mundo?
Em que joalharia poderia ele ser exposto?
No colo de que mulher caberia ele em colares?
Como supor que o Universo não tenha muitíssimos outros mundos inteiros feitos de outras pedras preciosas, de esmeraldas, turquesas, ametistas?
E outros mundos feitos ouro?
Como a riqueza dos seres humanos parece insignificante, diante da grandeza do Universo!
O vasto Universo é sem fim, sem limites, sem fronteiras.
Com que os astrônomos sonham? Quantos mais Universos iguais ao nosso existem cobertos de ouro?
Segundo a mesma cosmologia budista, existem três mil universos, que constituem o nosso Universo multiplicado por mil, e o resultado disso multiplicado por mil, e o resultado dessa segunda multiplicação multiplicado por outros mil.
Esse espaço significa os “Três mil Universos”, um número incalculável.
Assim, na imensidão do Universo, cabem muitas coroas universais de um único rei.
Como na cosmologia budista, onde tudo é muito extraordinário.
Mas a notícia me fez sonhar.
De sonhos me alimento eu.
Diz o texto:

“Astrônomos descobriram um planeta duas vezes maior do que a Terra, composto na maior parte de diamante, orbitando uma estrela que é visível a olho nu.
“O planeta rochoso, chamado "55 Cancri e", orbita uma estrela como o sol a 40 anos-luz de distância na constelação de Câncer, movimentando-se tão rápido que um ano lá dura apenas 18 horas.
“Descoberto por uma equipe de pesquisa franco-americana, o planeta tem raio duas vezes maior que o da Terra, mas é muito mais denso, com uma massa oito vezes maior. Também é incrivelmente quente, com temperaturas em sua superfície atingindo 1.648 graus Celsius”.

"A superfície deste planeta é provavelmente coberta de grafite e diamante em vez de água e granito", disse o pesquisador Nikku Madhusudhan, de Yale, cujas conclusões deverão ser publicadas no Letters Astrophysical Journal.
O estudo, feito com Olivier Mousis do Institut de Recherche en Astrophysique et Planetologie em Toulose, na França, estima que pelo menos um terço da massa do planeta, o equivalente a cerca de três massas terrestres, poderia ser de diamante.
Planetas-diamante já foram vistos antes, mas esta é a primeira vez que um foi localizado orbitando em torno de uma estrela parecida com o Sol e estudada em tantos detalhes.
"Este é o nosso primeiro vislumbre de um mundo rochoso, com uma química fundamentalmente diferente da Terra", disse Madhusudhan, acrescentando que a descoberta do planeta rico em carbono significa que não se pode mais acreditar que planetas rochosos mais distantes teriam componentes químicos, interiores, ambientes ou biologia semelhantes à Terra.
O astrônomo David Spergel, da Universidade de Princeton, disse que é relativamente fácil desenvolver a estrutura básica e histórica de uma estrela, uma vez que se descobre sua massa e idade.
"Os planetas são muito mais complexos. Esta 'super-Terra cheia de diamantes' é provavelmente apenas um exemplo dos ricos conjuntos de descobertas que nos esperam, à medida que começamos a explorar planetas em torno de estrelas próximas".

segunda-feira, 24 de abril de 2017

BILAC



BILAC 

ROGEL SAMUEL 


No primeiro verso do soneto "Aos sinos" diz Bilac: "Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta..." Lembro-me de ter lido em Hannah Arendt que, em 1957, foi lançado o primeiro satélite, foi saudado com alegria, diz ela, como "o primeiro passo para libertar o homem de sua prisão na terra". Por que não gostamos da Terra? Por que a destruímos? "A Terra, diz, é a própria quintessência da condição humana" [A condição humana]. 

Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes, 
Ardemos numa louca aspiração mais vasta, 
Para trasmigrações, para metempsicoses! 

Entro em casa. Ouço a fita de Christopher Schindler. É a
gravação do concerto de 15 de junho de 2000, Portland, a que
assisti. 

Bilac atual, poderoso. 
Cantai, sinos! Daqui, por onde o horror se arrasta, 
Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses, 
Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta! 
Levai os nossos ais rolando em vossas vozes! 

Releio sempre Bilac. Os modernistas o odiavam. Tem momentos supremos. 
"Politicamente, diz Arendt, o mundo moderno em que vivemos surgiu com as primeiras explosões atômicas". Chris toca o "Tango", de Castro, um argentino. Depois arremete a "Sonata Dante", de Liszt, que busco no soneto "Dante no Paraíso": 


Enfim, transpondo o Inferno e o Purgatório, Dante 
Chegara à extrema luz, pela mão de Beatriz: 
Triste no sumo bem, triste no excelso instante, 
O poeta compreendera o mal de ser feliz. 

As notícias do mundo vêm devagar, entram pela TV, de muito
longe, como se de outro universo, lugar muito distante, cheio de guerras, miséria. Qual o "mal de ser feliz"? Elas penetram a sala de trabalho como penetra o fio de fumaça de um incenso. A terra ao nosso amor não basta... Fio de fumo da "fragilidade dos negócios humanos". 

A Sonata de Liszt canta, como Carpeaux: "Meu Dante" - "Dante pode ter sido, diz ele, em vida, um homem intratável, irrascível e orgulhoso, convencido do seu direito de ser lembrado e venerado por todos os séculos. Mas essa pretensão enorme se reduz, afinal, à exigência de ser lido." Otto Maria Carpeaux foi nosso paraninfo, na FNFi. Como era gago, seu discurso foi lido por um colega nosso. Atravessei a vida 
daquele tempo lendo seus artigos diários, no "Correio da
Manhã". De tanto lê-lo, apreendi a técnica: quatro parágrafos. O primeiro era uma espécie de introdução. O segundo, uma tese, uma proposta, uma opinião.
O Terceiro o inverso, o contrário. O quarto e último
parágrafo, que era a conclusão, a superação da contradição. Assim, o ensaio, geralmente pequeno, era a dialética de um tema. 

Todos os anos costumo reler a Divina Comédia inteira, diz ele. Lembro-me bem, dele. Na Universidade do Brasil. Do Reitor Pedro Calmon. 

Um dia, estudando na Biblioteca, senti que alguém estava atrás de mim. Era Pedro Calmon. Interessado no que eu estava lendo. Conversamos, ou melhor, ele falou. Calmon era homem extraordinário. Como eu tinha uns 19 anos e cara de menino, perguntou de onde eu era, como morava e vivia. Indagou se a comida do bandejão era boa (dizem que às vezes
comia lá, nunca vi). Disse-me que se eu precisasse de qualquer coisa teria nele um pai. Deu-me seu cartão. Era homem imprevisível. (A terra ao nosso amor não basta...) Certa vez, vindo pela Cinelândia de carro, Calmon viu um policial espancando um menino de rua. "Pare o carro!" 
e partiu contra o guarda, aos gritos: "Pare com isso! Pare com isso! Ele é apenas uma criança!" 
Vi-o numa das primeiras passeatas de estudantes. Ele apareceu sob estrondosa vaia. Queria fazer parar a massa, que rumava pela Rio Branco. Chorava. Tentava falar. "Não façam isso!" vociferava. "Não provoquem a reação! Vocês vão radicalizar!" 
Tinha razão, se viu depois. ("Campas de rebeliões, bronzes de 
apoteoses"). Anos depois fui seu vizinho, na Rua Santa Clara, 
Copacabana. Ele morava numa grande casa estilo (creio) normando. A esquerda sempre o desprezou, porque os presidentes da ditadura freqüentavam aquela casa. Quando ele morreu, os jornais não deram uma linha, exceto o que saiu no obituário. Foi Ministro da Educação (1950-51). Sua "História do Brasil" em 7 volumes é citada por Roberto Simonsen, que diz na "História Econômica do Brasil" se baseou em Euclides, Afrânio Peixoto, Gilberto Freire e Pedro Calmon para "fixar o valor do nosso homem, como fator de produção". Força de trabalho morena. Calmon foi um dos poucos convidados à cerimônia da coroação, na Inglaterra. 

Quando a rainha esteve aqui, meu amigo Don Kulatunga Jayanetti, monge budista do Sri Lanka, foi convidado por um embaixador asiático. Havia uma fila, para cumprimentá-la. Don parou a fila, Sua Majestade conversou com ele, revelou conhecimento e interesse budista. O Príncipe, seu esposo, continuou o diálogo, lhe disse ter feito um retiro de meditação Vipássana, no Ceylão. Mas... 

Ma la notte risurge e oramai 
é da partir, ché tutto avem veduto.

domingo, 23 de abril de 2017

A retrospectiva das horas

A retrospectiva das horas



A retrospectiva das horas

Rogel Samuel

Alceu Amoroso Lima escrevia uma linha no fim do dia. Só uma linha, num caderno especial, registrava um resumo do que acontecera no dia, uma retrospectiva do dia. Dizia que todo escritor deveria rabiscar um texto todos os dias, para exercitar-se. "Nenhum dia sem uma linha". Ele também redigia uma carta diariamente para a filha monja reclusa, naquela sua ilegível e apressada letra, o texto na ortografia antiga. Todos os dias uma carta sobre seu dia, sua vida cotidiana e espiritual. Todos os dias um resumo de sua vida. Uma retrospectiva das horas.

Alguns monges budistas tibetanos recomendavam que, no fim do dia, antes de dormir, deveríamos meditar sobre o que fizemos no dia colocando bolas pretas e brancas numa caixa - as pretas para nossas ações más, as brancas para nossas boas ações. Assim faríamos um balanço do dia. Num diário também. Exprimiriam nossas promessas? Composição na soma do tempo.
E no fim do ano? Vamos comemorar porque a vida de um ano foi ótima, toda vida vale a pena e ela é efêmera e se esvaiu, logo se parece longínqua, fina gaze. Meu Deus! A vida é mesmo um sonho, uma visão de um mágico show. Triste ou bela, sólida ou frágil, "a vida leva-a o vento", escreveu poeta João de Deus (1830-1896), no seu "Campo de flores":

A vida é o dia de hoje,
a vida é ai que mal soa,
a vida é sombra que foge,
a vida é nuvem que voa;
a vida é sonho tão leve
que se desfaz como a neve
e como o fumo se esvai:
A vida dura um momento,
mais leve que o pensamento,
a vida leva-a o vento,
a vida é folha que cai!
A vida é flor na corrente,
a vida é sopro suave,
a vida é estrela cadente,
voa mais leve que a ave:
Nuvem que o vento nos ares,
onda que o vento nos mares
uma após outra lançou,
a vida – pena caída
da asa de ave ferida -
de vale em vale impelida,
a vida o vento a levou!

POR ISSO VAMOS COMEMORAR AGORA!

A SABEDORIA DO ANDAR



A SABEDORIA DO ANDAR

Rogel Samuel


Tivesse tempo, talento, saber, escreveria um livro de auto-
ajuda intitulado ' A sabedoria do andar'.
Como caminhar cidades.
Há cidades de caminhar. 
Paris, é claro. 
Não meter-se num 'Panorama' (creio que se chama assim), ônibus de conhecer os pontos turísticos. 
Paris para ser degustada a pé, vagarosamente, mesmo que
só se disponha de um dia. 
Andar sem destino. Benjamin escreveu um ensaio a respeito. 
Penso em Poços de Caldas.
Poços é para ser percorrida a pé, ver seus jardins, suas 
montanhas, o horizonte verde e azul, o vale das montanhas distantes que cercam a cratera desse vulcão extinto, Poços é a cratera de um vulcão, de onde saem águas sulfurosas, ares limpos,flores o ano inteiro, gente bonita.
É preciso ter a sabedoria do andar. 
Não só olhar vitrine, entrar em livraria e cafés. Que é bom. Mas o andar meditativo, o desfilar lento, sem finalidade, sem 
nada buscar, querer. 

'As coisas boas do mundo
Tu podes ter sem comprar'

Escreveu Olegario Mariano numa revista. Nunca mais encontrei este soneto. Não está nas suas Obras Completas.
Ser sem finalidade desnorteia, apavora as gentes. 'Você
não sabe o que quer!' - diz a voz da experiência. 
Mas todo prazer é sem finalidade. 
A ação visando a um fim, de que falava Weber, gera compromisso, é trabalho, esforço, ansiedade, frustração. 
Estar de férias, ser feliz, é ser sem finalidade.
- Para onde vai? pergunta-se logo. Que vai fazer? Seria bom 
responder: 'Não sei, apenas vou'. 
Entra-se na loja, o vendedor logo chega: 'Que deseja? Posso 
ajudar?' E se disser que não quer nada? 
O zen fala da não-finalidade da ação. 
Isso tem um nome.
Chama-se liberdade.

Mas Clarice vai além: "Liberdade ainda é pouco. O que eu desejo ainda não tem nome"

sábado, 22 de abril de 2017

Cidades



Cidades

Rogel Samuel

Da janela se vê a torre da capela, entre as árvores, no sopé 
da montanha. 
As magnólias brancas reverdecem, ainda sem flores. 
O resto é floresta. 
Como será aquela igrejinha no meio da paisagem? 
Uma grande torre de nuvens se ergue sobre o céu, e parece mais alta ainda do que as mais altas montanhas. 
Um aeroplano cruza o espaço azul claro. 
Em Katmandhu, quando o céu está limpo e claro, se podem ver as brancas e grandes geleiras dos Himalaias, ao longe, como uma dentadura de reluzente cristal. 
Eu quero muito voltar para lá, rever Boudanath e Thamel. 
Há cidades incorporadas na nossa substância mental : Manaus, Sydney, Katmandhu. E esta Poços de Caldas. 
As cidades são nossas personalidades edificadas em pavimentos, ares. 
Um dia, um amigo disse, em Manaus : « Amanhã o R. vai-se sentir em casa ». Porque eu voltava para Rio. 
Mas eu não consigo ver o Rio dentro de mim, senão quando estou muito longe. 
Aí me ocorrem imagens, lembranças, músicas. Marchas de carnaval. 
A estupa de Jerukhanshor, em Boudanath; o Teatro Amazonas, em Manaus; a casa do Chris, em Portland; a UBC, em Vancouver. 
Onde eu realmente gostaria de estar? 
Não sei, não tenho raízes profundas. 
Um dia Lothar, em Frankfurt, me disse que ele era cidadão das 
cidades. Mendelshonstrasse, onde estava. 
Em Manaus, na rua Sete de Setembro. Pelas janelas dos fundos se via o Rio Negro. Havia um gavião, que habitava um buraco perto do telhado da edificação de uma velha fábrica. 
Todas as tardes, ao por do sol, eu ia de binóculo vê-lo. 
Parecia uma águia romana, desafiava o espaço, de asas abertas. 
Soberano. 
Aquela fábrica datava da época da borracha. Ficava nos fundos do cinema que havia nas margens do igarapé, creio que Cine Éden, ex-Alcasar, hoje igreja evangélica. 
As ruas guardam também muito sofrimento, camadas de lembranças acumuladas e mortes.
Como os trechos escuros de Paris. 
Qual a cidade mais alegre? 
Depende de cada um, de suas lembranças. 
E das magnólias.

sexta-feira, 21 de abril de 2017

SOMOS MEMBROS UNS DOS OUTROS



SOMOS MEMBROS UNS DOS OUTROS

Rogel Samuel

«Somos membros uns dos outros», dizia São Paulo aos cristãos de Efeso. 
Isto é citado por Laín Entralgo, em texto que incluímos recentemente no nosso site.
Entralgo, pensador da direita espanhola, discípulo de Ortega, 
sempre exerceu sobre mim extraordinário fascínio.
Define ele a capacidade do homem de considerar-se pessoa por 
dois conceitos: o próprio e o alheio. 
Na esfera do próprio, estabelece Laín duas diferentes esferas: a do 'meu' (que define a própria estrutura do eu), e a do 'em mim' (que posteriormente ele estuda na patologia). 
Como a pessoa é capaz de relacionar-se com a outra? como considerar o outro como outro eu? como analisar o encontro, como estabelecer relações de amizade? 
Para ele, a realidade consiste em ser 'de si' e em 'dar de si''. 
A realidade se faz presente e cognoscível na impressão de realidade que a coisa oferece ao sujeito que a percebe. 
Seu principal livro, de Entralgo, raríssimo entre nós, se 
chama 'Teoria e realidade do outro', que só consegui ler na 
Biblioteca Nacional. 
Nesse, ele percorre com maestria toda a filosofia ocidental desde os pré-socráticos, e vai em busca da teoria da consciência do outro, do outro como outro eu, onde a consciência de si é a consciência do outro. 
Assim era em Hegel, quando o sujeito suprassumia a si no outro a que se opunha numa negação: eu não sou o outro. 
Lain também era médico. Escreveu tratados de medicina. 
Faleceu no ano passado, com mais de 90 anos.
Essas considerações vêm antes de ler o CANTO 1, 26 de Jorge 
de Lima, em INVENÇÃO DE ORFEU:

Qualquer que seja a chuva desses campos 
Devemos esperar pelos estios; 
E ao chegar os serões e os fiéis enganos 
Amar os sonhos que restarem frios. 

Porém senão surgir o que sonhamos 
E os ninhos imortais forem vazios, 
Há de haver pelo menos por ali 
Os pássaros que nós idealizamos. 

Feliz de quem com cânticos se esconde 
E julga tê-los em seus próprios bicos, 
E ao bico alheio em cânticos responde. 

E vendo em tôrno as mais terríveis cenas, 
Possa mirar-se as asas depenadas 
E contentar-se com as secretas penas. 

Alguns poetas tiveram, ou revelam, alguma dificuldade de 
relacionar-se com o outro ('os ninhos imortais forem vazios'). 
'Imortal' - traduz o 'felizes para sempre'.
A felicidade presente ('a chuva desses campos') atinge a solidão do futuro ('Devemos esperar pelos estios'). 
Sua poesia reside nisso. 
Entre 'os serões e os fiéis enganos' há uma solidão sempre ali, sempre fiel, uma vocação de 'amar o perdido', o passado: 'Amar os sonhos que restarem frios'. 
Os ninhos estarão vazios, e neles só os pássaros os idealizados.
A estrofe:

Feliz de quem com cânticos se esconde 
E julga tê-los em seus próprios bicos, 
E ao bico alheio em cânticos responde. 

Marca o centro do reconhecimento de si no outro inexistente, no outro distante, impossível.
Diz esses versos: Eu me escondo nos versos que canto, canto 
com o fingimento do canto.

É o contentar-se descontente de si consigo mesmo, e em si.

E vendo em tôrno as mais terríveis cenas, Possa mirar-se as asas depenadas E contentar-se com as secretas penas. 

As asas depenadas não voam. O coração não ama. As cenas ao 
redor, terríveis. As dores não se expressam e são secretas. Os ninhos vazios, os enganos fiéis, mas a poesia de Invenção de Orfeu mantém a sua imortalidade e beleza.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE

MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE


Rogel Samuel


De minha cara amiga Graça Carvalho recebi um precioso presente, a “Cartilha do bem sofrer com lições de bem amar”, do seu pai, o super-poeta amazonense Farias de Carvalho, publicada em 1967 e desde então esgotada.
            Lá re-encontro o poema “Ocaso”, que não lia desde que Farias de Carvalho foi meu professor, no noturno do Colégio Estadual, onde ele lecionava literatura e eu tanto aprendia com ele: “Meus mortos hão de vir no fim da tarde”.
            Só dá para ler este belo texto quem o situa na Manaus da década de 50, ou início de 60, quando foi ele escrito.
            Aquela era uma cidade sem iluminação, ilhada no meio da maior floresta tropical do mundo. Ao cair da tarde, as perigosas trevas da floresta invadiam, a nostalgia da escuridão e da morte ameaçava, aquele Rio Negro ficava realmente Negro. Negro como a Morte Negra. Negro da morte de vinte e oito mil índios vitimados em 1729, numa hecatombe nunca esquecida por aquelas margens, de tal sorte que perto dali há um rio, chamado Rio Urubu, “rio doente para sempre, / desde o município de Silves”, como certa vez escrevi; rio onde um dia meu pai não me deixou mergulhar, “como se ali o rio pudesse /  para sempre me tragar”.
            Naquelas águas estão sepultados nossos antepassados e o grande guerreiro Ajuricaba, o herói que está em toda a parte ao mesmo tempo [Aiuricaua], rio de sangue Negro, de  espinhos venenosos, de cadáveres históricos. Há demônios nas margens e eu me lembro da impressão trágica, da depressão que nos assaltava, ao cair da tarde, quando a cidade invadida por nuvens de moscas besouros, piuns, carapanãs sanguessugas, corujas, e aranhas peludas que saíam de seus esconderijos, e escorpiões de ébano que procuravam caça, a floresta ameaçada agora ameaçava, retomava e reconquistava o seu lugar em São João da Barra, nos expulsando para sempre, tudo debaixo da gloriosa chuva do ouro do mais esplendoroso por-de-sol do mundo, algo como explosão de bomba atômica terminal, final, de fim de mundo, finnisterra, que se expandia em coloridas nuvens para todos os lados, junto com misteriosas aves do entardecer.
            Ajuricaba veio do rio Hiiaá, na margem esquerda do Negro, entre o Padauari e o Aujurá, no distrito de Lamalonga. Para salvar seu filho caiu em emboscada e foi prisioneiro da Coroa Portuguesa, em 1729, a Coroa o queria vivo para o supliciar com castigo e morte. No caminho, Ajuricaba, que era homem fortíssimo, arrancou do poste o grampo que o prendia e, com as correntes nas mãos algemadas, faz a matança dos soldados portugueses antes de se precipitar nas águas escuras do Rio Negro, onde morreu, não sem antes as amaldiçoar, e diz a lenda que é por isso que aquelas águas são estéreis, e não têm peixe. Logo depois, em vingança, o capitão Belchior Mendes de Moraes dizimou 300 malocas, matando em sacrifício mais de 28 mil índios das margens do rio que passou a se chamar Rio Urubu devido à montanha de cadáveres. E mais tarde balesteiros, sob o comando de um padre de nome piedoso, Frei José dos Inocentes, depois nome de rua de puta em Manaus, espalharam roupas contaminadas com varíola que disseminaram uma gigantesca epidemia que infectou 40 mil índios, arruinados de varíola, que é uma doença infecto-contagiosa, virulenta, que apodrece o corpo ainda vivo com erupções de pus e raquialgia, pápulas, pústulas, cegueira e agonia de uma morte bacteriológica lenta, os cadáveres semi-vivos sendo devorados por moscas, piuns, carapanãs, mutucas, cabo-verdes, potós, catuquis, marimbondos, suvelas, besouros e formigas. A saúva antropófaga devora um corpo em 20 minutos. Na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 1908, os mortos largados no caminho para serem enterrados na volta (30.430 operários foram internados no Hospital da Candelária, entre 1908 e 1912) e quando a locomotiva voltava só encontrava ossos brancos e limpos, comidos pelas saúvas. E também a formiga-de-fogo, a saca-saia, a lava-pés, a manhura, a cabeçuda, a taioca, a carregadeira, a táxi, a tracuá, a tocandira, peluda, enorme, venenosa, uma única picada basta para abater um homem, com fortes dores e febre, usada pelos índios na iniciação masculina dos garotos, que tinham de enfiar o braço numa cumbuca de tocandiras para provar que eram machos. E a formiga roceira, e a cortadeira, e a guerreira, a correição. Von Martius descreveu populações inteiras fugindo das formigas. As açucareiras eram capazes de fazer recuar um inteiro exército!
            Por isso os mortos vinham no fim da tarde, “molhados da ferrugem líquida do rio”, diz o poeta,  “que banha as margens dêste ...  silêncio lúcido e sonoro / que embala na praia ao fim das tardes / os olhos de éter dos defuntos tortos / que lambem com o olhar a praia longe”.
            Além disso, o trágico planger dos sinos da Matriz, construída por índios, da Igreja de São Sebastião, da Igreja dos Remédios, que se ouviam na inteira cidade, graves, ameaçadores, profundos, lembravam a Morte, e as rádios todas tocavam umas Avemarias, a Rádio Baré, a Difusora, a Rio-Mar, rádios de meu tempo, e misteriosas velhas beatas vestidas de negro, veladas, engolfadas, balbuciantes de preces, que se dirigiam às missas, entrando ainda sob a saraivada de toques dos imensos sinos magistrais.
            É claro que, para nós, jovens poetas, devassos e boêmios, era a hora de nos preparar para as aulas e depois beber no Bacurau, no início da João Coelho, junto com catraieiros, prostitutas, mendigos e bandidos alcoólatras, provando aqueles peixes fritos, o pacu, a sardinha, o matrinchão, entre goles de cachaça barata; ou íamos para o Bar Bolero, que ficava na Cachoeirinha, na Rua Belém (creio eu, pois a memória já me falha), onde ouvíamos Nelson Gonçalves cantar os maiores sucessos em serenata, como os “Lábios que beijei”, e isso ia até ao raiar do dia, quando voltávamos, bêbados, felizes, para nossas casas, a pé, sob o latido generalizado dos cachorros dentro dos muros das casas, cães que não compreendiam por que tão tarde (e tão cedo) passávamos nós por ali, no deserto das ruas que um dia inspirou o poeta L. Ruas a escrever:

Ah!
Esta lua
Neste fim de rua


quarta-feira, 19 de abril de 2017

SER BUDISTA - Rogel Samuel

SER BUDISTA - Rogel Samuel
Quando o queriam reprovar, diziam que ele era budista. Aquilo significava na década de 60 uma espécie de religião esotérica misticismo maluco de hippie. Outros, vendo que ele não era nem melhor nem pior que todo mundo, perguntavam: "Que espécie de budista é você?" Para muitos ele não era budista porque comia carne. Para outros, porque gostava de um chopinho e praia. Os intelectuais riam dele no passado, porque era budista. Anos depois perguntavam: "você ainda é budista?" Uma confusão, classificá-lo, pois agora viam que ele era ou sempre tinha sido de um marxismo radical, fora de moda. As pessoas que faziam análise, diziam: "se isso te faz bem..." - o que queria dizer: "coitado... que asno!" (sem saber que ele tinha feito análise freudiana dez anos). Mas aos poucos a coisa foi mudando. Foram aparecendo budistas famosos. Richard Gere, por exemplo, discípulo do Dalai Lama, como ele. O próprio Dalai Lama veio duas vezes ao Brasil, fez sucesso. Virou best-seller. Discurso para os estudantes. No meio aparece gente como Caetano. Começaram a achar quer ser budista não era tão mal assim. Estava na moda. Ele, de repente, estava na moda. Mas, depois de ser budista de carteirinha por mais de quarenta anos, ele não sabia dizer se ser budista era ser alguma coisa, ou se há algum ser budista. Não havia nada de diferente! Talvez se podia afirmar: você "pratica" duas horas por dia - e aí, a diferença. Mas ele praticava sozinho, escondido (sua prática era secreta). Em casa. Onde ninguém via. Nem contava pra ninguém. Ou talvez alguém poderia "acusá-lo": Você tem um guru! Sim, sim. Era verdade! Ser budista era isso: Ter um guru. O que é ter guru? Complicado. Ainda que o guru more na Índia, do outro lado do orbe terrestre, ele acordava pensando no Guru, no Sagrado Guru. Passava o dia a lembrá-lo, a todo momento. Ao dormir, seu último pensamento, seus sonhos - era o Guru. Sim! O guru dominava sua vida. Mas ninguém via, ninguém sabia. Isso era ser budista, a diferença. Poucas pessoas, poucos budistas mesmos, tinham realmente guru. Poucos podiam bater secretamente no peito, dizendo para consigo: "Eu tenho um Guru". Além disso tinha de haver recebido, é claro, Annutara Yoga Tantra da boca do Guru de carne e osso. O Guru tinha de ter colocado o vaso sobre sua cabeça. Mas isso é outra estória. O difícil era saber prosternar-se para outra pessoa, de carne e osso como ele, bater a testa no chão aos pés do Guru. Até diante da fotografia do Guru. A maioria das pessoas, orgulhosas, nunca faziam isso. Era demais. Sim, o verdadeiro budista não lastimava a destruição das estátuas famosas de Buda, porque, para ele, o problema não era perder estátuas, mas perder o Ensino, perder o Buda que era o Guru. Para ele, o Guru era o Buda em pessoa. Coisa muito complicada para explicar para as outras pessoas. Pois, o que é ser budista? Nada. O budista não existe. Não existe ser budista. Tudo é vacuidade e vaidade dos homens.

terça-feira, 18 de abril de 2017

POR QUE KAFKA ESCREVIA EM ALEMÃO?



POR QUE KAFKA ESCREVIA EM ALEMÃO?

ROGEL SAMUEL



Artigo publicou Nuria Amat, a consagrada autora de “Todos somos Kafka” (Madrid, Anaya & Mario Muchnik, 1993), em “El País”.

Antes, em outro lugar, disse ela que Kafka foi o primeiro que “pôs em crise a família, o casamento, o trabalho”. E tudo. “Ele foi o precursor, o profeta”.

Nuria Amat nasceu em Barcelona, em 1950.

Filho mais velho de abastado comerciante judeu, Kafka cresceu sob as influências de três culturas: a judaica, a checa e a alemã. Mas era um estranho a todas elas.

Ele aprendeu alemão como sua segunda língua, mas só falava tcheco em casa. Nunca foi reconhecido em vida e seus livros, na maioria, se editaram postumamente, pelo amigo Max Brod. E antes de morrer, deixou escrito o pedido de que seus livros fossem queimados. Não foram. Vinte anos depois de sua morte estava ele mundialmente famoso.

Mas Kafka não era escritor alemão. Era tcheco. Porém escrevia em alemão.

Outros dizem que era “judeu”. Mas parece que a tradição judaica não aparece em sua obra. Conforme se lê em Carpeaux.

Assim, nem alemão, nem tcheco, nem judeu, Kafka era um exilado. Em qualquer parte do mundo. E transformou-se num símbolo da literatura moderna. Literatura exilada.

Em vida suas obras não despertaram nenhum interesse. Otto Maria Carpeaux, em “Vinte e cinco anos de literatura” (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967), conta que conheceu Kafka durante uma reunião literária em Berlim em 1920. Lá, Carpeaux foi apresentado a um “rapaz magro, pálido e taciturno” que despertou o seu interesse por seu olhar misterioso e perscrutador. Ao indagar de quem se tratava, recebeu a seguinte resposta: “É de Praga. Publicou uns contos que ninguém entende. Não tem nenhuma importância!...”

Nuria Amat disse que: “el escritor vive en una constante contradicción. Por un lado, un escritor en este sentido, tiene que ser muy ambicioso, claro, porque cada vez que uno se pone a escribir seriamente, en realidad lo que está diciendo es: «Voy a competir con Cervantes»… por otro lado es necesario vivir esto con cierta ironía… ¿Para qué escribir? Para sobrevivir...”

Como Kafka, Nuria Amat escreve em castellano, sendo catalã.

Segundo Borges, “Kafka renovou o paradoxo de Zenão de Eléia: uma flecha não pode chegar a sua meta porque antes tem que passar por um ponto intermediário, antes por outro ponto intermediário, e assim sucessivamente temos um número infinito de pontos onde a flecha em cada momento está imóvel no ar, e somando imobilidades não se chega nunca ao movimento. No caso de Kafka, podemos pensar que um de seus temas é a infinita postergação”.

Tudo isso a propósito do artigo de Nuria Amat “Kafka en Francfort”, publicado em “El País” de 16 de outubro de 2006.

Ela mostrou como Kafka foi questionado, ignorado ou mesmo repudiado em seu país de origem.

Em Praga ele não era, até sete anos atrás, considerado tcheco (porque era judeu e escrevia em alemão), disse Marta Zelezna, da Sociedade Franz Kafka. Na edição tcheca do “Quem é quem” Kafka não aparece. E somente agora, em 2006, se publica pela primeira vez a obra completa do escritor em tcheco.

Escreve Amat que “Kafka não se sentia bem em Praga”.

Assim como Praga o rejeitou até bem pouco tempo.

E conclui Amat que Kafka era um escritor sem pátria nem língua própria.

Mas era Kafka o maior escritor de Praga.

CONFLUÊNCIA - Rogel Samuel

CONFLUÊNCIA - Rogel Samuel
Escrevo da rodoviária. Ao meu lado, um sertanejo idoso lê vagarosíssimo uma carta de cinco folhas de caderno escritas em tinta azul. Distingo ler algumas linhas: "...o lindo lenço que ganhou...", "...a terrível crise que estamos passando...", "...a mãezinha e nosso irmão..." Há vários viajantes apressados. Ouço música sertaneja. Na minha frente um jovem alto, branco e sólido, vestido de bermuda curta azul e camiseta clara. Parece um atleta. Vejo de repente passar um conhecido. Não tem bagagem nas mãos, deve estar esperando alguém que chega. Saio, vou ver os jornais. Não os compro. Só os leio pela Internet. Nas capas de revista os esquecidos... Tudo passa. Mesmo os arrogante romanos passaram. Na Idade Média, uma rã coaxava com tranquilidade sobre a pedra de onde Cícero discursava. Há uma jovem que chora, sozinha. Aproximo-me, sento perto. Por que chora? É muito jovem, magrinha, saía da adolescência. Chora. Tenho vontade de
chegar mais perto, abraçá-la. Perguntar, "por que chora?" Mas não ouso. Não é um pranto alto, convulso, mas interno, para dentro de si, lá onde a dor é mais secreta, mais funda. Quase não há lágrima. Está desolada e só, nesta cidade terrível, com seus cadáveres, seus bandidos, seus fracassos, seus jardins e praias e mágoas. Volto-me e vejo que o velho continua a ler sua carta de cinco folhas. Seus lábios tremem.

domingo, 16 de abril de 2017

Auto de Natal em Copacabana

Auto de Natal em Copacabana

Rogel Samuel

(Madrugada. Calçadão, perto do Copacabana Pálace):
- Venham, irmãs! Acorrei com suas glórias! O Filho do Senhor acaba de nascer!
(E logo, múltiplas Graças vestidas de bruma se reúnem em festa ao redor de  adolescente negra, moradora de rua, que acaba de dar à luz na calçada. É uma garota negra, sorridente e feliz, chamada Maria. O Pai, um desempregado cearense alcoólatra, de nome José, sujo e sem nada entender, achando que vai ter confusão e polícia, atravessa a rua e some na praia escura, com uma garrafinha de plástico branca nas mãos. As Graças, que se sabem ser oniscientes, tornam-se invisíveis para não chamar atenção, mas não há quase ninguém por perto, além de raros porteiros e seguranças com celulares nas mãos.
Das varandas luminosas dos prédios de luxo vem forte som de música de suas festas de Natal. Dançam. Um grupo animado de jovens bêbados passa gritando num carro. O vento interior vem do mais longínquo mar com sua ressonância salgada e boa, para homenagear o Filho do Homem. Maria, a jovem parturiente, agasalha-o nos trapos de que dispõe, mas vêm surgindo de algumas portas os próprios Reis Magos que lhe trazem ofertas de sedas, além de presentes diversos: doces, frutas, pães, vinho. Uma grande estrela está imóvel no céu, mas ninguém a vê e pensam que é um balão atmosférico. Anjos, Espíritos e Santos de diversas seitas e Igrejas cercam o Menino e sua Mãe, invisíveis aos mortais. Um silêncio luminoso invade os céus de Copacabana, sim, porque o Filho de Deus acaba de nascer, trazendo bênçãos e esperança para todos. Nos morros, o batuque de Pais e Mães de Santo celebram a sua Glória. Nas Igrejas, padres liberam hinos elevados em sua homenagens. Taças de champanhe circulam nas mãos das madames ricas em festas particulares e brindam o pequeno. As crianças, já dormindo, sonham com ele vestido de Papai Noel, com ricos presentes de Natal. Os namorados se amam e se beijam nos becos e apartamentos, e exultam a sua gloriosa chegada.
Uma patrulha da polícia passa e olha para aquela estranha reunião e resolve investigar. Mas os anjos do Senhor espalham uma névoa nos olhos dos policiais e eles resolvem ir embora.
Porque no chão da Avenida Atlântica o filho de Deus acaba de nascer, agora cercado de uma população noturna que veio homenageá-lo e participar de sua ceia.

No ar, invisíveis, mas luminosos, os deuses celebram sua Glória e incensam o ar. E rezam para que o Menino se torne Homem e não seja crucificado, morto ou fuzilado a carpir a nossa culpa nos porões das masmorras de nossas prisões ou nos terrenos baldios e pantanosos das favelas!)

sábado, 15 de abril de 2017

A MÁSCARA DE CRISTO - ROGEL SAMUEL




A MÁSCARA DE CRISTO - ROGEL SAMUEL

            Era a máscara de Cristo.
            Não sofredora, no Gólgota.
            Mas bela, altiva e majestosa face de Cristo.
            Morava na Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro, entre prostitutas, michês, ladrões, travecos e policiais.
            Eu o assistia, todos os dias.
            Sempre ali estava, em qualquer canto.
            Às vezes via-o caminhando para algum lugar, do nada para nenhum lugar.
            Sem saber, sem olhar,  se movia. Flutuasse.
            Era belo, figura do Cristo de Fra Angelico.
            Quando andava um rastro fétido no ar. Mistura de sujeira, fezes, suor e urina ressecada.
            Impossível saber se era moreno como um palestino, ou se pintado de sujeira, cinza e fuligem sedimentada na pele escamosa.
            Cabelos barbas sujos, longos.
            Nos olhos escuros profundidade e loucura mística.
            Vestia calças sobrepostas, camisas de mangas muito compridas, farrapos, tinha pudor do corpo escondido.
            E eu o alimentava diariamente.
            Não aceitava dinheiro.
            Quando se lhe dava dinheiro, aquilo permanecia lá, sem valia, sem valor, sem serventia, abandonado, o vento espapalhava pelo chão.
            Bebia? Nunca pude saber.
            Quando lhe trazia comida, estendia ele ambas as trêmulas mãos, grunhia algo em desconhecida linguagem, talvez uma língua arcaica, aramaico.
            Mas de alguma forma me olhava com amizade.
            O que eu sempre desejei era sentar-me ali, com ele, conversar, partilhar de sua companhia.
            Mas nunca tive coragem, como em outra época fiz com menino de rua, que levei para casa. Agora os tempos eram outros. A Praça tinha grande movimento, principalmente agora, cercada pela grade que a protege de nós, pedestres.
            E todos os dias, quando passava para almoçar na Cooperativa dos Vegetarianos da Rua Pedro I, dava eu uma volta para vê-lo, e para que me visse. Era um pacto, entre nós.
            Outras vezes voltara eu para ver se ele já tinha almoçado.
           

           Na última vez que o vi estava transtornado.
            Era a máscara da morte, pálido.
            Devia ter sido agredido por uma matilha de cães.
            As roupas em frangalhos, deixava aparecer o corpo sangrando e ferido de estocadas.
            A cabeça e testa rasgada, unhada.
            Parecia mortalmente doente e se via que voltava apenas para a última ceia.
            Nada comeu.
            A marmita permaneceu no chão, ao lado, onde a coloquei.
            Súbito um relâmpago quebrou o céu por cima de nós em grandes estilhaços como se rasgasse uma cortina de um ser de vidro gigantesco e o abrisse de par em par.
            Abri o guarda-chuva.
            As pessoas começaram a correr, aflitas, fugindo da chuva.
           
           Então Ele se levantou.
            Irradiava luz.
            E, levantado, começou a andar, lento.
            A chuva escorria por suas vestes.
            Andava devagar, muito devagar, sob a chuva.
            No meio da praça, voltou-se para mim e, pela primeira vez, se despediu com um gesto de mão. E eu pude ver a ferida na palma de sua mão.
            Desapareceu para sempre na esquina.
            Chovia mansamente.