sábado, 31 de maio de 2014

OS NUMAS

Entretanto, de acordo com esta narrativa histórico-mítico-ficcional, especialmente, os Numas “não ficavam visíveis, às claras”. Seriam eles os míticos Numes de passados relatos simbólicos, aquelas aéreas divindades mitológicas que se elevavam no ar por meio de influição divinizadora? Seriam eles os antigos gênios alados, só perceptíveis por meio de espiritualíssima intuição? Ou foram germinados e multiplicados, simbolicamente e criativamente, a partir da deusa suméria Inanna, protetora da guerra e do prazer sexual, associada ao vento, enquanto divindade mítica? Se por vezes penso nas genealogias dos diversos arcabouços míticos-religiosos da humanidade, percebo sempre uma espécie de confluência aproximando os relatos.“Não ficavam visíveis”: repenso a informação reflexivamente, porque esta fase do romance se desenvolverá por intermédio do patrocínio de reminiscências caprichosas do imaginário mítico-familiar, todas interligadas aos diversos narrares tradicionais da realidade mítico-indígena-e-social brasileira. Tais narrativas, indiscutivelmente poderosas, heroicamente/simbolicamente personificadas por criaturas aladas extraordinárias, foram, são e sempre serão representativas das potências da natureza e das incríveis incomuns qualidades do ser humano. Em outras palavras, os Numas ascendem, ficcionalmente e miticamente, por intermédio do poderoso tronco familiar, primitivo e ímpar, do índio amazonense, oriundo das altas e inóspitas regiões andinas. O mencionado tronco, certamente, no meio dos infindáveis inter-relacionamentos sócio-culturais, foi realçado como fundamento sanguíneo intercambiável, digno de ser aceito como altamente proveitoso no âmbito da real miscigenação da sociedade manauara e brasileira, altiva e historicamente preconceituosa, uma vez que o glorioso mito do ativo exercício do poder estará sempre e indissoluvelmente interligado às grandes alturas, pouco hospitaleiras.Contudo, são os mítico-ficcionais Numas que estão aqui, nas páginas deste meu artigo teórico-interpretativo, como assunto de comentários reflexivos. E se, como diz o narrador-personagem, o Ribamar de Sousa, “a vida é um caminho que de repente se bifurca”, observo a seguir outras informações estimáveis.“Nessa matéria nada é absoluto” (ou seja, pela via do dicionário português-brasileiro, “não tem limites”, “não sofre restrição de espécie alguma”, “não enuncia um sentido completo”, “não é narrativa autoritária”, “não é um narrar despótico, imperioso, soberano, incondicional, incontestável”, qualquer que seja a definição do termo “absoluto”), diz o narrador, reafirmando, por via ficcional, o que, reflexiva e teoricamente, procuro assegurar, pela diretriz do conhecimento fenomenológico, como narrativa pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração. “Nada é absoluto”, porque, para criar um texto narrativo, diferenciado das narrativas exemplares, lineares e absolutas, e para interagir com o arcabouço mítico-indígena da realidade sócio-mítica amazonense (que diligencia elevar a figura do índio de sexo masculino, forte, destemido, possuidor de “grosso falo” como símbolo de “dinâmica sexualidade”), o escritor, de origem manauara, obrigou-se criativamente e ficcionalmente a recuperar os traços do conhecimento coletivo e abrangente (formal e impositivo) de seu (do autor) anterior meio social citadino, por questões substanciais ainda relacionados com a história primitiva do homem brasileiro civilizado.
Se nada, ao longo desta fase da narrativa rogeliana, poderá ser interpretado como “absoluto”, começo eu, a intérprete teórico-reflexiva destas páginas não-absolutas, a refletir fenomenologicamente o fato de que a cena do rio onde nadam as duas indiazinhas Numas poderá ser interpretada, sublinearmente, partindo-se do princípio lendário de que os Numas eram/são seres mitológicos e aéreos (aparições voláteis), por conseguinte, passíveis de tomarem a forma conceitual que quiserem, mesmo que seja em matéria teórico-crítica não-absoluta. As divindades míticas, desde o princípio de suas modelações conceituais, lá pelos idos da pré-fase do conhecimento humano, apresentaram formas incomuns (humanas, animalescas, imaginárias, etc.), inclusive, formas andróginas (mítico/cristão). Então, ainda apoiando-me na afirmação ficcional, penso que o olhar do narrador-personagem Ribamar de Sousa, naquele momento, estava ativado pela aparição mental (volátil) do mito das gregas amazonas guerreiras, belas, sensuais e andróginas, ou seja, possuidoras das características dos dois sexos. Seria possível então um engano, quanto a incomum sexualidade das duas indiazinhas? São elas, diz o narrador, “duas índias Numas, inconfundivelmente Numas”.
Sim. São inconfundivelmente Numas e oriundas do mito das amazonas guerreiras, andróginas e espontaneamente sensuais. Por este aspecto, penso que o narrador-personagem Ribamar ter-se-ia enganado quanto ao sexo das duas indiazinhas, “vistas de longe”, assim como os exploradores antigos se enganaram, quando da aparição das/dos anteriores amazonas, as/os quais, segundo, outras fontes histórico-míticas, eram em verdade homens guerreiros ao invés de mulheres guerreiras. O equívoco histórico-mítico se propagou, no decorrer da formação cultural brasileira, graças aos longos cabelos desses índios audazes e suas faces imberbes. Ainda por este prisma interpretativo, empenho-me em resguardar e defender aqui o propósito de observar algumas pistas que favorecem ao meu pensar diferenciado sobre a sexualidade das personagens Numas.

A BOLSA AZUL

A BOLSA AZUL


Rogel Samuel





Quando entrou no táxi, pisou naquilo.



Vinha do teatro, com a mulher.



Casal de aposentados. Teria 76. Ela mais velha, uns 80.



Era tarde.



O táxi rodou nas silenciosas ruas a solidão da noite perigosa.



A mulher, cansada e sonolenta, nada dizia.



Chegando em casa, pagou e saiu do táxi.



A bolsa estava na mão.



A mulher só percebeu aquilo no elevador:



- O que é isso, José? perguntou, espantada.



- Calma, disse ele, escondendo a bolsa atrás de si. Estava no táxi. Está trancada. Vou devolver.



Ao chegar em casa, a mulher foi para o quarto e ele rapidamente entrou no escritório com a bolsa na mão.



- Vou ao banheiro, disse ele. Sempre usava o banheiro do escritório.



No banheiro do escritório, sozinho, examinou.



A bolsa estava na pia.



Era uma bolsa térmica, azul, de plástico, meio gasta.



Aquilo abriu sem dificuldade.



A bolsa estava quase toda cheia de dinheiro.



Havia notas de cem, cinqüenta, a maioria de vinte e de dez.



Cédulas usadas.



Maços de dinheiro, nenhuma identificação.



A bolsa fedia a peixe.



Ele pensou rapidamente: teria de esconder aquilo da mulher, levou para o escritório e esvaziou a bolsa no arquivo de ferro, que fechou à chave, junto com os documentos.



Agora a bolsa estava vazia.



- A bolsa estava vazia, disse ele, para a mulher. Mas acho que era de traficante.



- Por quê? perguntou ela, já aterrorizada.



- Tem cheiro de maconha.



A mulher se apavorou (era o que ele queria).



- Vou desfazer-me dela amanhã, concluiu. Vamos dormir.



Mas não conseguiu dormir. Cabeça a mil.



A mulher roncava ao lado.



Ele pensava em gastar aquilo, via-se com garotas de programa em hotéis de luxo. Lembrou-se de deputados, mensalão. Malas de dinheiro. Aquilo devia ser do Mensalão.



«Mensalão... mensalão...», pensava ele. Se era roubado NÃO precisava devolver.



«Dinheiro roubado!», criticava ele. «Roubado!».



Devia haver uma fortuna. Não ia contar as cédulas agora. Quando se levantava a mulher logo acordava. «Aonde vai?», perguntava ela. «Ao banheiro», ele respondia.



*   *   *



Pouco depois o telefone toca.



Do outro lado o cunhado urrava que estava falido, perdera a confecção, vendera o apartamento para pagar dívidas, ia ter de entregar o apartamento que um feirante comprou e exigiu pagar em dinheiro vivo, mas ao voltar pra casa com o dinheiro foi seqüestrado roubado agredido abandonado na linha do trem. «Perdi tudo!», finalizou. «TUDO!»



- A polícia pegou alguns bandidos, houve tiroteio, mas meu dinheiro sumiu, disse ele.



- De que cor era bolsa? perguntou ele ao cunhado.



- A bolsa era azul.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Alberto da Costa e Silva vence Prêmio Camões

  • Diplomata e historiador brasileiro é um dos principais conhecedores da história e da cultura africana.

O GLOBO
 
Alberto da Costa e Silva é o 11º brasileiro a receber a distinção Guito Moreto / Guito Moreto/11-12-2012


LISBOA — O poeta, diplomata e historiador brasileiro Alberto da Costa e Silva recebeu, hoje, o Prêmio Camões, o mais importante destinado a um autor de língua portuguesa pelo conjunto da sua obra. O anúncio foi feito esta sexta-feira, em Lisboa, pelo júri, composto por Rita Marnoto, professora universitária, José Carlos Vasconcelos, jornalista, e os escritores Affonso Romano de Sant'Anna, António Carlos Secchin, José Eduardo Agualusa e Mia Couto, vencedor em 2013.
— Foi um prêmio inesperado, não estava em minhas cogitações — disse o autor, que fez questão de destacar sua “constância e presença” em Portugal e na África. — É um prêmio que engrandece a história de um escritor. Já foi atribuído para os nomes mais expressivos da língua portuguesa. A notícia me deu grande alegria, embora eu ainda não esteja totalmente convencido de que sou merecedor.
Formado pelo Instituto Rio Branco em 1957 e membro da Academia Brasileira de Letras, Alberto da Costa e Silva serviu como diplomata em Lisboa, Caracas, Washington, Madrid e Roma, antes de ser embaixador na África. Participou de missões em Angola, Etiópia, Costa do Marfim, Camarões, Togo, Gabão, Guiné, Senegal, Libéria, entre outros países. Aproveitando sua longa passagem pela África, tornou-se um dos principais especialistas na cultura e na história do continente, com obras como “A enxada e a lança: a África antes dos portugueses” (1992) e “A manilha e o libambo: a África e a escravidão” (2002). Seu último livro, “Imagens da África” (2013), reúne fragmentos de textos de viajantes estrangeiros que passaram pela região, da Antiguidade ao século XIX
O escritor moçambicano Mia Couto, um dos membros do júri, lembrou a “arte e elegância” com que o historiador e poeta desmembrou a memória da África. Já o angolano José Eduardo Agualusa, também do júri, afirmou que a atribuição à Costa e Silva “também para a África”.
— Não creio que prêmios sejam para países ou continentes, mas sim para a ação e a reflexão de um escritor — avalia Costa e Silva, nascido em 1931. — Porém, fico muito feliz que me considerem um autor de interesse africano e emotivamente africano.
Com a atribuição, o Brasil se torna o país com mais vencedores do Camões. Já são 11 premiados, incluindo nomes como Dalton Trevisan, Ferreira Gullar, Autran Dourado, João Cabral de Melo Neto e João Ubaldo Ribeiro.

O ENCONTRO


Estamos unidos ao mundo, e aos mistérios do universo, por laços subtis. O teu encontro com os outros tem por objetivo a tua própria harmonia. DUGPA RINPOCHE

quinta-feira, 29 de maio de 2014

PELÉ


Para fazer um soneto

CARLOS PENA FILHO 

Para fazer um soneto

 
 
Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local, 
não use mais que o sol de sua cara 
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza 
das lembranças da infância, e não se apresse, 
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece 
dentro da escuridão a vã certeza, 
ponha tudo de lado e então comece.


quarta-feira, 28 de maio de 2014

Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor? 



CAMÕES

O FIM

Lopes esperou que o poema chegasse ao fim. Benito esquecia versos, confundia estrofes.
Quando o Mestre acabou, o poeta Lopes falou:

- Sou portador de uma triste notícia

Silêncio.

- Sabem quem acaba de morrer?

O gato pulou do balcão.

- Frei Lothar.

 

 

PISCANDO, sobranceiro, enevoado, pesado de álcool, olhos fechados, Benito ergueu-se da cadeira e ficou um instante assim, de pé, sem ver ninguém, imóvel.

Depois abriu os olhos parados e disse, apoiando-se na mesa:

- Senhores... Meus senhores... Acaba de falecer um dos maiores homens que esta terra conheceu... Frei Lothar consumiu toda sua longa vida no árduo trabalho de lutar contra a miséria, contra as doenças, contra a ignorância amazonense...

Não continuou, pois caiu sobre a mesa, rebentando em pedaços um copo de aguardente no chão. Morreu cinco dias depois e está sepultado sob uma lápide de cimento sem nome no cemitério da Major Gabriel. Alguns anos depois Ribamar de Souza e Diana Dartigues estavam separados. Mas nesse ponto me falta o fôlego enquanto eu chego ao fim dessa minha estória, pois o dia se anuncia e ressurge e é tempo de você partir, meu amigo, que eu fico aqui e tudo já vimos do que deveria ser visto a despeito desse vosso Narrador fingido que está no fim, permanecendo vivo ainda até esta hora e o assunto está terminado. Não mais, que foi assim que falei, e assim a estória se fez e falou por mim, e se cumpriram as coisas conforme o disse eu, o Narrador. Adeus, meu filho: lembre-se desse vosso Narrador que já não estará vivo e não se esqueça dessa estória tão bonita do amante das amazonas. A Amazônia é um certo lugar fantástico que também está no fim, mas quando sonhar sonhe com o Igarapé do Inferno se indo por dentro daquele pântano, passando pelo Palácio Manixi de grande memória, com o jovem Zequinha Bataillon. Lembre-se de Maria Caxinauá, do bugre Paxiúba, de Benito Botelho, de Pierre Bataillon ao piano e de sua Ifigênia Vellarde. Não se esqueça de Antônio Ferreira, da maacu Ivete, da Conchita dei Carmen, de Juca das Neves e D. Constança, sua mulher, e do Comendador Gabriel Gonçalves da Cunha. Mais de Frei Lothar e de Ribamar de Souza, que assim se vai nesse vosso Narrador que desaparece, neste ponto.

terça-feira, 27 de maio de 2014

O PALÁCIO VAZIO

 
(FOTO DE RIBAMAR MITOSO)
ATRÁS daquela mulher congelada estava - magnífico, supremo, inominável, majestoso - o Palácio Manixi!
 

 

TINHAM chegado ao Manixi.

O choque era alucinante e belo.

Das janelas abertas saíam grossos e longos galhos de árvores frondosas, nascidas por dentro, e assim parecia que o Palácio tinha criado asas e ia começar a voar.

O Palácio se cobrira de uma pátina de beleza extraordinária, de uma vitalidade monumental - estava ali, vivo, lavado, enlouquecido marco de seu tempo.

Era um santuário, dominava o ambiente, um templo antigo, perdido no meio da floresta, de uma outra era. Toda a luz ao redor irradiava dele, de uma civilização de um outro século, de um outro mundo desconhecido, limite vivo do luxo e do esplendor da borracha do fim do Império.

A floresta avançava contra ele, construindo um estranho cerco sobre a moldura e irisação de sua arquitetura antiga coberta de cipós e de galhos de uma folhagem abundante que vinham de dentro dos salões requintados e criavam a aura de um extasiante espetáculo.

 

 

A lancha aportou e Benito desceu e se aproximou da escadaria de mármore. Uma cascavel se recolheu por baixo das pedras soltas da guarnição.

Ali estava todo o passado da Amazônia, sobre os degraus cobertos de folhas secas, sobre o fino e florido gradeado de ferro carcomido e enferrujado.

A porta estava aberta. Do pórtico, Benito viu, no meio do amplo salão, sobre o chão de tábuas corridas cobertas de plantas e a ruir, intacto, nobre, faústico, o reduzido piano de cauda Pleyel de Pierre Bataillon. Era a única peça do aposento, o único móvel que ficara e ali estava, abandonado, fechado, reprimido, sufocado, em silêncio, como após um concerto, quando se apagam as luzes e o teatro fica vazio e despovoado.

 

 

MAS todos os suntuosos fantasmas exsurgiam dali. Toda a História desfiava o seu curso. O tempo ali se congelava, inerme, no meio dos amplos salões, desaparecendo ao longo daqueles mesmos corredores, escorrendo ao longo das paredes pesadas de estuque, lúgubres, de uma decoração barroca. Eram seres invisíveis que despontavam, uma vez mais, arrastando longos e pesados vestidos de veludo verde, envergando reluzentes casacas, esquálidos, saídos daquele sepulcro do luxo daquele tempo, através daqueles amplos espaços povoados de símbolos, dentro daquela enorme construção de um outro mundo, do fim de um mundo de onde todos tinham fugido, povoado de demônios, culpados, expiando suas culpas mortas.

E à noite desfilavam, ao longo daqueles corredores, através da seriação de janelas e portas, refletindo suas sucessivas silhuetas nos espelhos apagados, misturando-se com figuras pintadas nas paredes, e famintos, gélidos, sem ousar sair ao jardim abandonado, aquém do porto as ornadas figuras de fino e feroz olhar que não permitiam a ninguém penetrar naquele santuário do desperdício da riqueza antiga e condenada, ninguém pudesse subir aquela escadaria e atravessar aquelas salas além daqueles mármores trazidos há incontáveis anos para ladear-se com o cinzento e o estilizado. Era como se dissessem: “Desaparecei!”. Ou como se ameaçassem: “Afastai-vos!”.

E à noite a figura do antigo e descamado dono poderia ser vista, através das janelas, como se o iluminasse uma catedral, mostrando-lhe a face horrível e desesperada, os olhos mergulhados no escuro, à procura de algo, à procura do tempo, à procura de si - e passando sem que ninguém o visse na sua infinita miséria. E todo o esplendor daquele luxo antigo era uma torturação sinistramente mergulhada na destruição de um império ali por fim silenciado.

ROGEL SAMUEL. O AMANTE DAS AMAZONAS
 

Breve apresentação de Memorial do Ouro

Breve apresentação de Memorial do Ouro


DILSON LAGES MONTEIRO


Senhores e senhoras,
Peço permissão para ser breve, a fim de que se sobreponham neste espaço a informalidade e a conversa, e este momento seja para  todos o mais agradável possível.
Esta obra foi escrita e reescrita em outro centro urbano, em obstinado processo.. Nesse processo, representações da história propriamente dita foram reelaboradas por linguagem literária; com a clara intenção de investigar no fundo, o próprio significado do Brasil.
Embora  o autor, Gilberto de Abreu Sodré Carvalho, tenha, pois, construído o mundo de Memorial do Ouro, em São Paulo  escolheu, porém, Teresina – movido pelo afeto às suas origens, sobretudo  -  como lugar para que ela se materializasse em forma de livro impresso – aqui tanto se editou esta ficção, como também, a partir de agora, esta ficção se torna definitivamente de conhecimento  público.
Revela-se, por essa razão, em particular, de um sentido especial, para nós que acompanhamos pequena parte do processo de construção do livro – processo sempre encantador, mas, no caso deste livro, mais especial, pela responsabilidade e confiança depositados em nós; mais encantador e especial, pelo afeto do escritor com esta Terra e porque, ainda,  fortalece o sistema literário do Piauí - reforça uma nova cultura que vem se reinventando e se consolidando aqui,  a cultura da edição de livros, fortemente alavancada  nos últimos anos com o surgimento de pequenas editoras e com a  intensificação de publicações independentes de todos os matizes.
Começo estas palavras com duas breves divagações, que se impõem como indispensáveis para  comentar resumidamente  o tema do romance.  A primeira dessas divagações, a ligação do autor com o Piauí. A segunda, as reservas literárias que conduziram o escritor a construir um novo e apaixonado percurso como profissional da linguagem.
Saibamos, a princípio, mais sobre o autor de Memorial do ouro. Gilberto de Abreu Sodré Carvalho nasceu no Rio de Janeiro, em 1947. É casado com uma educadora musical e pai de três filhos. Reconhecido como consultor experiente em modelagem organizacional a partir do enfoque jurídico-gerencial. Por 40 anos, foi advogado interno e consultor de grandes corporações, e membro de colegiados de planejamento estratégico e relações com governo, em holdings. Além disso, é acadêmico e autor de diversos artigos e papers de direito empresarial e gestão.   É também Genealogista e historiador voltado para o início do século 18 brasileiro. Publicou dez livros, alguns deles por editoras como a Imago e a Fundação Getúlio Vargas.
A ligação de Gilberto Sodré com o Piauí é antiga, apesar de somente nesta semana, em função das contingências profissionais e da distância física de seu assentamento, ter efetivamente dividido com os piauienses, presencilamente, parte de sua experiência como pesquisador e ficcionista. Suas raízes familiares estão na Barras do Marataoã antiga, onde nasceram os seus avôs e bisavôs pelo lado paterno. Ter em seu DNA um pedaço da gente piauiense o fez sempre um curioso por este Estado, tanto que chegou a escrever livro de genealogia – Os Carvalho de Almeida do Piauí - para buscar o elo afetivo que nutriu ao longo de décadas, pela força do imaginário, com a paisagem humana e social de todos nós.
Esse elo, aliás, refletiu-se inclusive em Memorial do ouro, posto que um dos personagens, apesar de não apresentar relevo principal na obra é Antônio Carvalho de Almeida, português que recebeu sesmaria na localidade Taboca, no hoje município de Esperantina, e de quem descende. Suas pesquisas sobre o Piauí e sua gente reforçaram o seu entendimento sobre o processo de conquista e devassamento do Brasil colonial, com seus valores, métodos e arbirtrariedades. 
A busca de suas raízes no Sudeste também o conduziu a entender, analogamente, a interposição dos interesses econômicos e patrimonialistas anulando quaisquer noções de justiça social. Nesse particular, mergulhando em sua origem familiar pelo lado materno, nasceu o seu interesse em pesquisar sobre a Santa Inquisição, a produzir estudos e palestras sobre o tema e, agora, em converter essa história para a ficção.
Essa busca por suas raízes, no Piauí e no Sudeste, formaram parte das reservas literárias que fundamentaram o argumento para Memorial do Ouro. Do contato com documentos, com relatos da memorial oral e do imaginário coletivo, foi-se o autor deixando seduzir pelo tema da Inquisição e pelas nuances que o momento histórico em que se situa o tema fez brotar, a tal ponto que  somente a história já não era mais suficiente para que sua inquietação de escritor se contivesse.
 Assim, nascia, também, uma de suas marcas mais evidentes como ficcionista, também um de seus maiores méritos: a utilização dos recursos literários, para subjetivamente, desemborcar em uma escrita que é também ensaio, testemunho e metaficção, sobre os quais me debruçarei com o vagar e o tempo necessário em breve.
Por meio de João Aveleda, cada um de vocês, encontrará um narrador inquieto em perguntar o sentido de Deus e do Rei, em questionar o sentido do medo, do fingimento e da verdade, da submissão e das artimanhas para se manter imune as cruezas do poder; enfim, dos interesse e valores do Rio de Janeiro e do Piauí, de Minas Gerais,enfim, do Brasil e de Portugal dos séculos XVII e XVIII.
Finalizo essas breves palavras, com trecho de entrevista de Gilberto Sodré, a fim de   caracterizar a atmosfera de “medo de fingimento”  e resumir  o sentido de toda a obra:
“Esse é o reino em que todos vivemos. Todos nós, nas nossas mentes, nos nossos pensamentos, somos cruéis, preconceituosos. Ao agirmos, somos, por muitas vezes, dissimulados. Nós nos editamos como pessoas aceitáveis, todo o tempo, fazendo maior ou menor força para tanto. Queremos ser vistos como bons, centrados, leais e merecedores; mas só nós sabemos da nossa verdade. Muitas vezes, nem nós mesmos sabemos da nosso verdade, tal a mistura que fazemos entre o que cremos e o que cremos para constar para os outros”.
Conforme já havia mencionado, que este espaço e momento sejam da informalidade e da conversa. Muito Obrigado!

Dílson Lages Monteiro - editor de Entretextos.

BELKIS, AO PIANO






BELKIS, AO PIANO

JORGE TUFIC


O som
do som
me
cristaliza
de humano
e bom

BILAC

Ao coração que sofre, separado
Do teu, no exílio em que a chorar me vejo,
Não basta o afeto simples e sagrado
Com que das desventuras me protejo.

Não me basta saber que sou amado,
Nem só desejo o teu amor: desejo
Ter nos braços teu corpo delicado,
Ter na boca a doçura de teu beijo.

E as justas ambições que me consomem
Não me envergonham: pois maior baixeza
Não há que a terra pelo céu trocar;

E mais eleva o coração de um homem
Ser de homem sempre e, na maior pureza,
Ficar na terra e humanamente amar.
 
 
Olavo Bilac

segunda-feira, 26 de maio de 2014

O CANTO DA TERRA

" Dedicatória "
                             
   (1944)

Dedico  este  livro  aos  irmãos  da   América   e  do   Mundo,
não importa que cruzem as pernas nos "pagodes" exóticos
ou sigam a palavra de Confúcio no templo de papel e de bambu;
que subam aos minaretes, se curvem beijando a terra,
ou simplesmente se ajoelhem no palácio de vitrais e incensos;
que dispam a palavra de Cristo de púrpuras e de ouros,
ou que sigam sem Deus, a procurá-lo nos livros...

Dedico este meu livro a todos os irmãos da América e do Mundo,
negros  ou  brancos,  amarelos  ou  vermelhos,  azuis   ou  roxos,
altos ou baixos, gordos ou magros, louros ou castanhos;
nos que ainda não morreram e aos que ainda poderão vir;
aos das planícies e dos campos, aos das florestas e das montanhas,
aos dos gelos e dos desertos,
aos das aldeias e das cidades,
aos dos faróis e aos da solidão,
aos dos navios, dos aviões ou dos subterrâneos,
a todos os homens, sem a menor distinção,
basta que creiam ainda na Vida e em nós mesmos.

Por isso escrevi este livro
como se abrisse uma veia, para o sangue aliviar o coração;
como se colhesse um fruto para o desejo inábil;
como se trouxesse água na mão, para a boca sedenta e empoeirada;
como se escrevesse sem palavras, e pudesse chegar a todos os ouvidos
e a todas as consciências
sem tradução...
Por isso escrevi este livro. Como quem acende uma lanterna
para descobrir que não está perdido...

Não se admirem irmãos, se as suas letras tiverem a cor do meu sangue,
porque elas são o meu sangue que vos ofereço,
são uma doação que faço aos que ainda crêem que vivem,
mesmo aos que não poderão se refazer,
porque nunca sabemos os que resistirão...
              
Que este livro, pois, possa ao menos ser útil como o sangue,
como o ar, ou como o pão,
e possa prolongar algumas esperanças
confortar alguns momentos finais
e salvar alguns desesperos...

Que ao menos, chegue a tempo, para alguns...

( Poema de JG de Araujo Jorge - do livro
" O Canto da Terra " 1a edição - 1945 )


domingo, 25 de maio de 2014

Pessoas que vivem em altas altitudes tem mais força respirando menos oxigênio

 



Hoje em dia, existem algo em torno de 7,2 bilhões de pessoas vivas, sendo que delas, cerca de 140 milhões vivem em uma altitude de 2.500 metros ou superior. E essas pessoas poderia muito bem ser de uma outra espécie. Isso porque, para a maioria dos seres humanos, a exposição prolongada à alta altitude leva a uma série de sintomas desagradáveis​​, como náuseas, doenças do coração, delírios e, em alguns casos mais severos, morte. Porém, com o tempo, se você começar a evoluir, pode acabar se tornando mais forte.
A população tibetana é um exemplo disso. Há mais de 2.750 anos, quando se separaram da China continental, decidiram viver nas montanhas. Lá, o ar é mais fino e contém 40% menos oxigênio do que o ar que respiramos a nível do mar. Claro, isso não significa que o Tibete seja uma espaço vazio inabitável e totalmente mortal para os seres humanos. Principalmente porque, depois de milênios, o organismo da população do Tibete está adaptado a essas condições, o que lhes confere altos níveis de resistência. Essa capacidade, que é uma habilidade incrível, é resultado de uma mutação no gene EPAS1, que normalmente passa a produzir mais glóbulos vermelhos quando o corpo é privado de oxigênio. Só que em tibetanos, esse gene não funciona bem assim. Ele cria um menor número de células em ambientes de baixo de oxigênio.
Também há pessoas no Quênia, da tribo Kalenjin, com essa habilidade. Seus antepassados ​​pertenciam às tribos do Nilo e viveram ao nível do mar há milhares e milhares de anos. Apenas recentemente o povo Kalenjin se mudou para sua localização atual, no Grande Vale do Rift – a aproximadamente 7.000 metros acima do nível do mar. Isso significa que, ao contrário dos tibetanos, cuja superpotência genética impede uma superpopulacão de células vermelhas do sangue, o corpo de um Kalenjin pode funcionar como se estivesse em constante adaptação à altitude mais elevada, produzindo uma quantidade enorme de células vermelhas do sangue. Quando eles descem a uma altitude mais baixa, mais próxima do nível do mar, o oxigênio extra pode muito bem se manifestar em seu atributo mais famoso: fôlego para corrida. Não é à toa que os quenianos estão sempre no podium de competições como a São Silvestre!
Todo mundo fala sobre o sucesso insano de corredores quenianos em competições de longa distância, mas a verdade é que a maioria dos quenianos não têm melhor resistência do que o resto de nós. Os Kalenjin, que compõem algo em torno de um décimo da população do Quênia, são a razão para a reputação do país. Para você ter uma ideia, para cada 10 medalhas olímpicas que o Quênia ganhou em uma prova de corrida, sete estão nas mãos de uma pessoa da tribo Kalenjin. De todos os recordes mundiais de corredores quenianos, apenas um não foi realizado por um Kalenjin. Em toda a história registrada, enquanto apenas 17 americanos conseguiram correr uma maratona em menos de duas horas e 10 minutos, 32 Kalenjin já conquistaram esse feito.
  

sábado, 24 de maio de 2014

Filme turco leva Palma de Ouro em Cannes

Filme turco leva Palma de Ouro em Cannes O filme turco "Winter Sleep", do diretor Nuri Bilge Ceylan, levou a Palma de Ouro do 67º Festival Internacional de Cinema de Cannes neste sábado; o prêmio de segundo lugar foi para a diretora italiana Alice Rohrwacher, com o filme "Le Meraviglie", enquanto o filme do diretor canadense Xavier Dolan, "Mommy", dividiu o prêmio de terceiro lugar com o diretor francês octogenário Jean-Luc Godard, com "Adieu au Langage"



" Poemeto Nº 3 "




" Poemeto 3 "

  
Não sei se é ciúme,
sei que às vezes me perguntas
a história de meus poemas,
estes poemas todos que encontraste
e que inventaram amor antes de ti.

Não te preocupes, não.
Hoje sei que não chegaram ao sonho.
Tudo vida que os sentidos imaginaram...

... Até os sentidos tem imaginação...

( Poema de JG de Araujo Jorge
do livro" A  Sós..." 1a ed. 1958 )

A torcida brasileira pede passagem

A torcida brasileira pede passagem



LEIA "EM BUSCA DA POÉTICA DE J. G. DE ARAUJO JORGE"




LEIA "EM BUSCA DA POÉTICA DE J. G. DE ARAUJO JORGE", MINHA COLUNA REFERENTE AO CENTENÁRIO DO POETA ACREANO. EM:
 
http://www.blocosonline.com.br/home/index.php
 
Faço ali uma breve tentativa de ensaio crítico sobre este grande poeta -  e como “ensaio”, algo provisório, limitado a alguns poemas de “Harpa submersa” (1952), para mim reveladores, indicadores daquela arte do poeta acreano, no centenário de seu nascimento."
Examino sua vida e sua ação política.
 (NA FOTO, O POETA COM 19/20 ANOS, QUANDEO PUBLICOU "MEU CÉU INTERIOR")

sexta-feira, 23 de maio de 2014

NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE

 
(NA FOTO, A ÚLTIMA LANCHA DE ALBERT SAMUEL)
O mito das amazonas guerreiras da América do Sul ativou o imaginário europeu, desde o início dos domínios coloniais, a partir do século XVI (domínios europeus estes diversificados: Espanha, Portugal, França, Inglaterra, Alemanha e Holanda), os quais movimentaram as viagens exploratórias desses diversos reinos da Europa Ocidental. Evidentemente, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, no início do século XIX, ansiosa por transformar o sub-reino em local de importância e em um patamar de grandeza, a lenda se tornou pertinente (não apenas esta, como também outras, incluindo a lenda do Eldorado, região desconhecida de infinitas riquezas, região jamais visualizada, pelo menos pelo ponto de vista da narrativa amplificada pelo imaginário coletivo da tradição oral), instigando os aventureiros europeus, de outros reinos vizinhos a Portugal, a saírem em busca da solução de tais mistérios. É quase certo que as expedições exploratórias, como as que revelaram-nos os nomes de Castelnau (1847) e Travestin (1854), não estavam aqui em busca da descoberta das lendárias mulheres, guerreiras, fossem elas homens ou mulheres, ou muito menos, a proposta era estudar a fauna e flora da região. Sob a missão de estudar a cultura material da Colônia, escondia-se o desejo de apropriação das localidades distanciadas do domínio português. Foi o que aconteceu com a região da Amazônia Ocidental, próxima ao Peru e Bolívia. Poucos aventureiros portugueses ali se instalaram nos anos finais do século XIX e iniciais do século XX. O descuido dos portugueses deveu-se à impossibilidade de locomoção e dificuldade de comunicação com a Casa Real (e, posteriormente, com a Casa Imperial) localizada no Rio de Janeiro. Os estudiosos da fauna e flora e aventureiros europeus, que para ali se dirigiram, os mais audazes, não eram exatamente portugueses. Historicamente, há a informação de que a Casa Imperial se preocupou com a parte isolada da região amazonense, inclusive fundando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838. Entretanto, a preocupação portuguesa limitou-se a se fixar na parte oriental do Amazonas, próxima ao Pará, onde as condições de navegação e comunicação com o Império eram mais facilitadas. Nesse ínterim, os mitos amazonenses, como o mito das amazonas guerreiras e do Eldorado, conhecidos desde a descoberta do Brasil, via domínio espanhol, foram se solidificando gradativamente. Enquanto alguns poucos portugueses procuraram se aventurar por ali, no decorrer da história da Colônia, os exploradores de outras partes da Europa foram se aclimatando àquela realidade indócil e, ao mesmo tempo, espalhando notícias sem confirmações sobre intrigantes relatos míticos. O que, na verdade, esses estrangeiros ─ franceses, alemães e de outros reinos europeus ─ pretendiam era descobrir as ricas jazidas de ouro e pedras preciosas, assinaladas pelo mito do Eldorado e, naturalmente, tomá-las para seus governantes reinóis. Esses viajantes-estudiosos estavam aqui em missão nitidamente especulativa.Pois se nada no romance poderá constar-se como “absoluto”, quem “arranca do corpo a substância e a transmite à vida da superfície” (do rio) não é absolutamente uma fêmea Numa, é um macho Numa. Se fosse uma fêmea, não arrancaria a substância sexual do próprio corpo, projetando-a em uma superfície. A substância sexual, advinda do orgasmo feminino, produz-se em espécie de interna umidade viscosa, e assim permanece. Percebo esta cena não-absoluta como uma questão a ser exaustivamente repensada. O verdadeiro narrador (o dono do ato de narrar) colocou o narrador-personagem Ribamar de Sousa em uma encruzilhada entrópica pós-moderna/pós-modernista. E graças a esta entropia narrativa, e aos enclaves do texto ficcional (espaços em branco, os quais não deverão ser desconsiderados futuramente, em outras edições do romance), os leitores poderão repensar o estigma do preconceito, neste atual momento histórico, seja ele de que natureza for.Entretanto, continuo submetendo-me aos riscos teórico-reflexivos. Reflito a cena: “Ato terminal. Calor, prazer. O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido. (...) excreção brusca, violenta, do humor que escorre. Espuma de sangue”. Busco os referentes estruturalistas/semiológicos basilares, propiciadores de meu repensar fenomenológico: “Excreção brusca”: função fisiológica que expulsa (no caso, bruscamente) para o exterior alguma matéria excrementícia, como, por exemplo, o sêmen. “Humor”: qualquer líquido que atue no corpo dos vertebrados, como, por exemplo, o sêmen. Estes, por acaso, não seriam índices de uma sexualidade masculina? O líquido viscoso sexual feminino é interiorizado e não se revela em “excreções bruscas”.Como já disse o sermonista barroco português-brasileiro Padre Antônio Vieira, as palavras têm mistérios. “Partes sólidas, estreitas”. As indiazinhas Numas rogelianas não possuem as partes exuberantes das vitalizadas e jovens mulheres índias. As índias joviais possuem formas arredondadas, sensuais, femininas. As indiazinhas Numas da ficção pós-modernista, assim como as lendárias amazonas guerreiras da antiguidade greco-romana, são masculinizadas. As indiazinhas do texto ficcional desta atualidade entrópica  “desaparecem uma na outra”. Penso que, se o ato fosse realmente lésbico, as indiazinhas Numas não desapareceriam uma na outra, pelo menos, por meio dos órgãos sexuais considerados tradicionalmente como normais. Em se tratando de relacionamento sexual entre duas mulheres, não há como uma se introduzir na outra, no ar. De sorte que, por interferência do alargadíssimo imaginário-em-aberto de quem realmente narra, o vento mítico (associado à água mítica, transformadora) encobre o narrador-personagem Ribamar de Sousa e faz “o morno rio [sexual-imaginário] [ressurgir], como látex do sangue aquecido”, sacralizando o ato sexual-amoroso (diferenciado) das duas divindades númicas.
“O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido”. “Rio”, “látex” e “sangue”. Recupero Bachelard. Encontro-me às voltas com a palavra “rio”, colocada comparativamente ao “sangue” e ao “látex”, indistintamente, neste parágrafo sobre o amor transcendental entre as duas indiazinhas Numas. A palavra “rio” associada ao “sangue” e ao “látex” está ali subentendida como um “sangue maldito”, à moda de Poe, ou como “um sangue valoroso”, à semelhança de Paul Claudel? Penso que este “rio” em especial possui as qualidades simbólicas referentes às três dimensões ─ sócio-substancial, mítico-substancial e ficcional ─ desta obra literária pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração, ou seja, a palavra “rio” tanto poderá ser avaliada pelo plano subjetivo quanto pelo plano objetivo ou pelo imaginário-em-aberto do narrador principal.