sábado, 28 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


II.10 - Psicanálise da Criação

II.10.1 - Da reprodução à autêntica criação

Em "São Marcos", narrativa do corpus de Sagarana, o Artista pré-anuncia as descobertas das perspectivas dialética e maravilhada, perspectivas estas que serão devidamente recriada nas páginas de Grande Sertão: Veredas. Em "São Marcos", o narrador, sob a orientação mágica da feitiçaria (plano mítico-substancial) e da desautomatização da linguagem, e além disso, procurando reorganizar esteticamente o real sertanejo, passa a ressaltar as belezas das serras e grotas, quase entrevendo o mundo fechado e de formas vagas do imaginário criativo.

"São Marcos" é uma narrativa que mistura o gênero ensaístico (o narrador como repórter de um lugar primitivo, mostrando as ideologias e superstições de um povo) com a capacidade de desautomatizar a linguagem, ou seja, utiliza-se de um linguajar insólito para descrever a natureza, portanto, já entrevendo a sua imaginação criadora, que está a caminho. No entanto, sob o simples comando da descrição, a poética da água145 já começa a se destacar, assim como o verde das folhas em meio ao colorido intenso e exterior de um mundo desconhecido e mítico.

Do lado da encosta e do lado do vale, temos a mata: marmelinho, canela, jacarandá, jequitibá-rosa; a barriguda, armada de espinhos, de copa redonda; a mamica-de-porca — também de coluna bojuda, com outros espinhos; o sangue-de-andrade, que é "pau dereito"; o esqueleto de um deixa-falar, sem uma folha, guardada apenas a grade resseca; e os jacarés novos, absurdos, de folhinhas finas, em espiguilha, que nem folhas de sensitiva, enquanto a casca se eriça em tarjas, cristas, listéis e caneluras, como a crista do dorso de um caimão.(...) E nas ramas, rindo, cheirosos epidendros, com longos labelos marchetados de cores, com pétalas desconformes, franzidas, todas inimigas, encrespadas, torturadas, que lembram bichos do mar róseo-maculados, e roxos, e ambarinos — ou máscaras careteantes, esticando línguas de ametista.(...) Mas, as imbaúbas! As queridas imbaúbas jovens, que são toda uma paisagem!... Depuradas, esguias, femininas, sempre suportando o cipó-braçadeira, que lhes galga o corpo com espirais contrictas. De perto, na tectura sóbria — só três ou quatro galhos — as folhas são estrelas verdes, mãos verdes espalmadas; mais longe, levantam-se das grotas, como chaminés alvacentas; longe-longe, porém, pelo morro, estão moças cor de madrugada, encantadas, presas, no labirinto do mato. (...) Pelas frinchas, entre festões e franças, descortino, lá em baixo, as águas das Três-Águas. Três? Muito mais! A lagoa grande, oval, tira do seu pólo rombo dois córregos, enquanto entremete o fino da cauda na floresta. Mas, ao redor, há o brejo, imensa esponja onde tudo se confunde: trabéculas de canais, pontilhado de poços e uma finlândia de lagoazinhas sem tampa. (...) E as superfícies cintilam, como raros jogos de espelho, com raios de sol, espirrando asterismos. E, nas ilhas, penínsulas, istmos e cabos, multicrescem taboqueiras, tabúas, taquaris, taquaras, taquariúbas, taquaratingas e taquarassus. Outras imbuíbas mui tupis. E o buritizal: renques, aléias, arruados de buritis, que avançam pelo atoleiro, frondosos, flexuosos, abanando flabelos, espontando espiques; de todas as alturas e de todas as idades, famílias inteiras, muito unidas; buritis velhuscos, de palmas contorcionadas, buritis-senhoras, e, tocando ventarolas, buritis-meninos.146

Por enquanto, o sonhador do sertão reproduz os sonhos retorcidos de sua meia-noite psíquica, imita o reflexo da paisagem sertaneja, saído das águas mágicas das lembranças. Ele reproduz linearmente as cores e as formas de uma natureza que sempre o encantou (aqui, o verbo encantar no seu sentido etimológico), pois a paisagem revisitada no decurso das lembranças (o reflexo da superfície da lagoa oval do brejo) "determina o devaneio que antecede a criação artística"147.

A grande obra, saída dos devaneios da vontade (Grande Sertão: Veredas), está por ora no porvir e reclama ser apreendida.

A narrativa "São Marcos" ressalta, além da descrição da natureza em seus aspectos míticos (matéria mítica), os cultos secretos oriundos dos escravos africanos e as antiquadas práticas de feitiçaria comuns no sertão. O narrador (citadino) reavalia a distância entre o pensamento do homem culto e o do homem inculto, descobrindo que os medos e superstições são inerentes a qualquer indivíduo, independentes de cor e casta. A mandinga do preto Mangolô é a via de acesso para que o branco letrado possa penetrar temporariamente (no ápice da narrativa) na caverna mágica da criação literária, local de iniciação, pois no Calango Frito, "até os meninos faziam feitiço"148. Desta forma, apesar dos avisos de Sa Nhá Rita Preta, a cozinheira, o narrador engeriza o Mangolô, pois só por meio da provocação conseguirá romper os limites da realidade e alcançar as imagens intermediárias da gruta (característica de narrativa mítico-substancial), que o levarão ao labirinto, subterrâneo e criativo, de Grande Sertão: Veredas.

As imagens da gruta pertencem à imaginação do repouso, enquanto as do labirinto pertencem à imaginação do movimento difícil, do movimento angustiante.149

O narrador de "São Marcos" retirou-se para o aconchego da gruta/sertão sob o comando das lembranças e, comodamente instalado nesse espaço, visita os pequenos detalhes que a compõem. Se no início sentiu medo, aos poucos acomodou-se à idéia de novamente conviver com uma realidade conhecida na infância, mas temporalmente perdida no passado e esquecida na maturidade. O retorno ficcional ao sertão, em seu aspecto diegético, é o retorno à gruta, ao útero, ao primitivo, qualquer que seja o termo que simbolize a recuperação de uma vivência primeira. Por isto, as imagens são naturais, verossímeis. O Artista reproduz aquilo que foi visto e sentido inúmeras vezes. Por isto, ele ainda não recria o Sertão, apenas aceita a perfeita criação da natureza. Engerizando o preto Mangolô, ele se obriga a penetrar no cerne da gruta/sertão, uma adesão que o faz sonhar interminavelmente, repousadamente, depois dos primeiros sintomas de medo, obrigatoriamente sintomas iniciais das futuras incursões em cavernas desconhecidas.

Bastam uns poucos minutos de permanência para que a imaginação comece a ajeitar a casa. (...) (O sonhador vê tudo) o recanto para o leito de samambaias, a guirlanda das lianas e das flores que decora e esconde a janela contra o céu azul. Essa função de cortina natural aparece com regularidade em muitas grutas literárias.150

O sonhador/narrador vê tudo: a mata e suas árvores, as ramas de epidendros e seus contornos poéticos, as imbaúbas jovens, tão femininas, tão verdes, tão moças cor de madrugada, encantadas; mas, é "pelas frinchas" (janelas?), "entre festões e franças" (cortinas?), que o narrador descortina, "lá em baixo, as águas das Três Águas".

Quando o Artista se deixa flagrar olhando a gruta, ele está olhando através da imagem da janela, que propicia "ver sem ser visto"151. O que ele deseja é registrar sua curiosidade, seu desejo de conhecer o segredo da procriação. O sertão, na narrativa analisada, é momentaneamente o espaço do recato, e a floresta é a virgem, que ali se refugia. O narrador, alter ego do Artista citadino do século XX, mas de origem sertaneja, é o invasor, que vai macular aquele espaço de pureza. O narrador registra despudoradamente esta intimidade, há séculos guardada a sete chaves. Pelas frinchas, entre festões e franças, ele se apodera da intimidade de uma família de buritis: buritis velhuscos, de palmas contorcionadas, buritis-senhoras e buritis-meninos.

Por esta perspectiva anulada (o termo perspectiva anulada, aqui, não possui caráter depreciativo), mas extremamente pitoresca e sedutora, seria possível analisar todas as narrativas de Sagarana anteriores a A hora e vez de Augusto Matraga. A partir de “O burrinho pedrês”, "A volta do marido pródigo", "Sarapalha" (em que o narrador experiente reproduz os sintomas da malária), "Duelo" (a estória de Turíbio Todo, seleiro, papudo, traído e vingativo, mas, além de tudo, vítima da própria vingança), "Minha gente" (retorno simbólico à terra natal), "Corpo fechado" (a estória das façanhas de Manuel Fulô, com certeza muito amigo do Doutor João Rosa, natural de Cordisburgo, pequena cidade incrustada nas Gerais, sertão de Minas152) e "Conversa de bois" (graciosa fábula sertaneja), haveria possibilidade de reunir e apresentar argumentos comprovadores, tais como realçar a reunião de árvores e animais, flores coloridas, conhecimentos variados; todas estas focalizações da perspectiva assinalada ansiando ultrapassar os limites do sensivelmente dado, como por exemplo a "finlândia de lagoazinhas sem tampa" (que lembra o espaço geográfico da Finlândia) e os "festões" (que lembram a França, em plena mata), e, enfim, seria possível provar, com o apoio da filosofia bachelardiana evidentemente, que a samambaia cresce em todos os cantos do mundo, e que as reminiscências da Europa permanecem vivas em um povo terceiromundista ainda ligado à metrópole européia que o concebeu.

Não seria demais repensar a afirmativa de Rosa:

Sabe também que uma parte de minha família é, pelo sobrenome, de origem portuguesa, mas na realidade é um sobrenome suevo que na época das migrações era Guimaranes, nome que também designava a capital de um estado suevo na Lusitânia? Portanto, pela minha origem, estou voltado para o remoto, o estranho. Você certamente conhece a história dos suevos. Foi um povo que, como os celtas, emigrou para todos os lugares sem poder lançar raízes em nenhum. Este destino, que foi tão intensamente transmitido a Portugal, talvez tenha sido o culpado por meus antepassados se apegarem com tanto desespero àquele pedaço de terra que se chama o sertão. E eu também estou apegado a ele...153

O Artista Ficcional do sertão está voltado para o remoto, para o estranho, porque sua origem antiqüíssima o atrai. Reencontrar seu início histórico, aventureiro, é algo impossível em meio à agitação da modernidade. A elaboração de uma ficção experiente produz bem estar, fá-lo recuperar o calor da antiga intimidade perdida e para-sempre desejada. O sertão do passado é o símbolo desse desejo de aconchego, é o refúgio para o abrigo de sua própria solidão modernizada. As imagens da gruta são repousantes, fazem parte de um território secreto, só acessível aos iniciados em rituais primitivos ou descendentes de raças antigas. O olhar está repousado e os encantos da natureza enfeitam sua propriedade particular, enfeitam as suas imagens fundamentais.

Para ficarmos bem sozinhos, é preciso que não tenhamos demasiada luz. Uma atividade subterrânea beneficia-se de uma mana imaginária. É preciso conservar um pouco de sombra ao nosso redor. É mister saber entrar na sombra para ter força de escutar a nossa obra.154

As imagens fundamentais do sertão da infância não poderiam jamais sair das mandingas do preto Mangolô. Este é apenas o indutor, o ponto de partida para a viagem retomada. O narrador, repousado, recupera a natureza, os cultos secretos, as superstições; reavalia a distância entre o pensamento do homem culto e o do homem inculto; descobre aproximações que independem de cor e casta; mas isto ainda é pouco para quem deseja recolher-se à própria solidão. Sob a luz intensa, os sonhos não podem ser concentrados, o narrador não poderá ouvir os sons de sua própria obra em germinação. Zombar do feiticeiro Mangolô, no momento, é seu único trunfo para alcançar o âmago de um espaço primitivo.

E eu abusava, todos os domingos, porque, para ir domingar no mato das Três Águas, o melhor atalho renteava o terreirinho de frente da cafua do Mangolô, de quem eu zombava já por prática. Com isso eu me crescia, mais mandando, e o preto até que se ria, acho que achando mesmo graça em mim.155

O ato de zombar do sagrado exige castigo. O narrador, submetido ao plano mítico-substancial, zomba do feiticeiro, para ser castigado e, com isto, sentir e desvendar os segredos de um espaço que ainda conserva formas anti-diluvianas.

Bem, ainda na data do que vai vir, e já eu de chapéu posto, Sa Nhá Rita Preta minha cozinheira, enquanto me costurava um rasgado na manga do paletó ("cozo a roupa e não cozo o corpo, cozo um molambo que está roto..."), recomendou-me que não engerizasse o Mangolô. Bobagem! No céu e na terra a manhã era espaçosa: alto azul, glácio, emborcado, só na barra azul do horizonte estacionavam cúmulos, esfiapando sorvete de côco; e a leste subia o sol, crescido, oferecido — um massa-mel amarelo, com favos brilhantes no meio a mexer.156

A claridade da manhã impede o acesso visual às coisas secretas; o Artista Literário experiente ainda não possui poder para alcançar o além dos limites conceituais; necessita perder a visão, ouvir o inaudível; carece ser castigado com a cegueira, e o Calango-Frito (povoado sertanejo), com seus feiticeiros, simboliza um dos últimos redutos de magia no avançado mundo tecnológico. O Artista se traveste de caçador e incrédulo, para desafiar as leis do desconhecido; traveste-se de caçador, porque não quer dividir com o povo (com a massa, com os cegos adeptos do cogito(1)) suas futuras descobertas.

Eu levava boa matalotagem na capanga, e também o binóculo. Somente o trambolho da espingarda pesava e empalhava. Mas cumpria com a lista, porque eu não podia deixar o povo saber que eu entrava no mato, e lá passava o dia inteiro, só para ver uma mudinha de cambuí a medrar da terra de-dentro de um buraco no tronco de um camboatã; para assistir à carga frontal das formigas-cabaças contra a pelugem farpada e eletrificada de uma tatarana lança-chamas; para namorar o namoro dos guaxes, pousados nos ramos compridos da aroeira; para saber ao certo se o meu xará joão-de-barro fecharia mesmo a sua olaria, guardando o descanso domingueiro; para apostar sozinho no concurso de salto-a-vara entre os gafanhotos verdes e os gafanhões cinzentos; para estudar o treino de concentração do jaburu acromegálico; e para rir-me, à glória das aranhas-d'água, que vão corre-correndo, pernilongando sobre a casca de água do poço, pensando que aquilo é mesmo chão para se andar em cima.157

A ultrapassagem do sensivelmente dado o guiará para um plano de autêntica solidão. No momento, o caminhante só visualiza uma saída: a adesão aos valores do Maravilhoso, ou seja, a submissão ao castigo do Mangolô, que o tornará momentaneamente cego. Para ficar sozinho no meio do mato (da gruta), é necessário abster-se da luz, o que proporcionará o ato de ouvir com atenção o rumor inicial da criação literária. A gruta selvagem é o reduto da pura intuição. O Artista Literário começa a intuir suas futuras formas de criação ficcional. A intuição provém de um Mundo ainda não-conceituado. E o xará do joão-de-barro, em sua caminhada para os cogitos superiores, procura zombar de João Mangolô, partícula das mil faces do Artista brasileiro: um somatório de raças, de crenças e de idades temporais.


sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

CARNAVAL 2015


CARNAVAL 2015

ROGEL SAMUEL

Nesse carnaval perdi a minha fantasia
caiu-me a máscara, fiquei nu
no meio da avenida
mas a festa continuou
e ninguém me via

o mundo todo rodou
e eu, bêbado de amizades,
me apareci, glorioso, na cidade

cobriam-me mil lantejoulas de estrelas
e o baticum profundo das grandezas

mato-me de enfarte nessa minha idade
aos 72 anos de felicidades!

A PANTERA

A PANTERA

ROGEL SAMUEL

1.

Eu não sei há quanto tempo já que estou aqui, perdi a consciência da minha vida e de espaço, nessa letargia com que espero, de uma felicidade calma, e apática tristeza. Não sei mesmo nem onde estou, no meio dessas imensas árvores, por onde os verdes pássaros passam com seus gritos, e os silvestres silvam fortemente.
Em minha frente o lago verde se estende, largo e sinistro, sem nome, onde minha companheira pesca, imóvel.
Ela é uma estátua imóvel. de lança parada, no ar parado, no silêncio morno, no calor úmido, no mormaço da tarde.
Talvez eu esteja aqui há muitos anos.

Talvez não.

O mundo desapareceu, e se mudou, e se fechou. O tempo é morto, as lembranças mortas, o espaço morto, o verde incompreensivel.
Por que de nada me lembro? - Por que de nada me não quero lembrar? Digo. Ouço a espera do porvir, a espera da guerra final.

Nesse momento o som de arco perfura a água, eu nem me volto para vê-la, pois sei que quando atira raramente erra. 

Jara é jovem.
Está comigo desde cedo. Silenciosa, atenta, misteriosa, meiga. Como protetora, amiga, amante. Ou inimiga. Não sei por que os mestres permitiram que ela ficasse aqui. Ela apareceu, e ficou. Vieram alguns guerreiros, dias depois, à sua procura. Jara os mandou retornar, com uma única frase e um gesto. Seus irmãos desapareceram. Não olharam para mim.
Eu vejo Jara como uma sentinela, aqui para alertar sobre aproximação do exército inimigo. Mas por que me aceitaram? Será mesmo que virão os inimigos? Talvez estejam planejando matar-me. Talvez eu seja o inimigo. Mas minha falta de reação agressiva, minha apatia com tudo, minha indiferença fez Jara permanecer em paz.

E calma.


quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


I.9 -  O Sonho do Artista: Elo de Ligação com o Cogito(4)

O sonho do personagem Nhô Augusto é a passagem do tempo horizontal para o tempo vertical, ambos reais, mas esta passagem, em verdade, está ligada ao Artista Literário, enquanto personalidade ativa do mundo vital. Sob o predomínio do ficcional e servindo-se do sonho do personagem, o Artista, direcionando o narrador, quebra o eixo temporal, linear, que o mantinha preso à História, encaminhando-se verticalmente em direção ao Desconhecido. O sonho do personagem é a libertação do Artista, porque quem comanda o sonho, dentro do espaço da criação, é o Artista. O sonho significa a liberdade criativa do Artista Literário. Nesse estado de espírito, recontando o sonho do Nhô Augusto valendo-se da fala do narrador, ele alcança o tempo instantâneo, lacunar, criando um espaço além da realidade histórica. O sonho prolonga seu instante de raciocínio, induzindo-o a uma sensação de parada no tempo e favorecendo a entrada do narrador no plano da criação, plano que, no caso, é seu território particular. Com a quebra do ritmo normal da narrativa, o próprio ficcionista (não o narrador) passou a desenvolver uma atividade nova, reformalizando pensamentos, reflexões, meditações, enfim, repensando verticalmente.

Bachelard discrimina três níveis de pensamento, nomeando-os como cogito(1), cogito(2) e cogito(3). O penso, logo existo cartesiano, de acordo com Bachelard, estaria ligado ao cogito(1), aspecto prático do pensamento. Ao colocar esta assertiva no cogito(1), Bachelard não pretende desmerecer as idéias de Descartes, apenas tem consciência de que o filósofo do século XVII ainda estava vivenciando o início de um novo ciclo na história do pensamento ocidental.

No plano do cogito(1), o sujeito não precisa pensar, simplesmente repete o que já foi pensado antes por alguém mais esclarecido. O cogito(1) estaria portanto ligado às três dimensões do mundo visível (altura, comprimento e largura), repetindo apenas a realidade. Na repetição, ainda segundo Bachelard, a realidade se mantém, não há quebras, só preenchimentos, que reforçam o linear. Há uma história seqüencial que permite segurança, estabilidade e acomodação.

Falando de uma segunda etapa do pensamento, ou o penso que penso, Bachelard caracteriza um segundo cogito, prevendo ou antecipando ou planejando um pensamento, que vai gerar uma ação inédita, ação esta que se está desenvolvendo e vai chegar a uma evidência posteriormente. O cogito(2) liga-se também ao tempo linear, mas já permite um avanço no tempo vertical, formalizando uma complexidade inicial de pensamento. Com o cogito(2), mesmo ligado às paixões, ao tempo linear, já se começa a verticalizar o pensamento com dúvidas e argumentações.

Imaginando que o plano horizontal esteja ligado à vivência, enquanto realidade, e o plano vertical, ligado à existência, enquanto formalização do ser, e descobrindo com Bachelard um terceiro estágio do pensamento, deduz-se que este pensamento superior concentraria por sua vez os três planos (o que Bachelard denomina como cogito ao cubo) e seria o limite do poder formalizante. Este terceiro estágio do pensamento, ou o penso que penso que penso, ou cogito(3), além de liberar o pensamento da descrição fenomênica, enquanto Doutrina específica, possibilita o indivíduo a nomear as "existências consecutivas"140, ligadas às superposições temporais, baseado apenas na intuição.

Bachelard esclarece que seu objetivo é esboçar suas idéias sobre o tempo vertical, desenvolvendo passo a passo o caminho que leva ao tempo infinito, tempo espiritual, o qual só pode ser captado pela intuição. Seu raciocínio se desenvolve com base em uma descrição intuitiva ao nível da inspiração, e, exercitando-a, descobre que esta descrição é perfeitamente adaptável ao tempo presente. Impulsionado por este exercício, procura tornar acessível a sabedoria do espiritual, adaptada ao tempo do pensamento.

Auxiliada por Bachelard, chego a um entendimento dos vários graus temporais inseridos na narrativa A hora e vez de Augusto Matraga de Guimarães Rosa.

Se, nas duas primeiras seqüências, o narrador roseano se ligou ao ato de pensar cronológico, rememorando o passado, imitando e dando continuidade ao passado, reforçando as experiências que lhe foram legadas pela sua condição de herdeiro de valores sertanejos, a partir das últimas seqüências da narrativa, ou melhor, especificamente a partir do sonho de Nhô Augusto141, passa a "pensar como alguém que pensa"142 o próprio destino da narrativa (e quem pensa é o Artista), introduzindo uma determinada vontade de Poder no âmbito da narração, definindo a sua própria pessoa, nova pessoa, ser demiúrgico, como único gerador de pensamentos e ações. Por isto, afirmei em minha PROPOSIÇÃO anterior (O NARRADOR TOMA A VEZ) que o narrador do século XX tomou a vez do personagem Augusto Matraga, porque houve uma brecha na estória, no momento em que ficcionista do século XX fez o narrador se aproximar do nível extra-linear da narrativa. No decurso da evolução de seu próprio pensamento, fez evoluir o narrador, transformou-o em um novo personagem, fazendo evoluir também o personagem Nhô Augusto, ambos refletores de sua ação pensante.

No início, repetindo o que já foi dito, Nhô Augusto destacou-se por sua personalidade substancial, e o narrador experiente, à moda tradicional, reproduziu uma "realidade embaraçada pelo peso das paixões e dos instintos, entregue ao impulso do tempo transitivo"143.

Posteriormente, o narrador, ainda experiente, ainda tradicional, mas propenso a uma mudança temporal, foi levado, intencionalmente ou não, a quebrar o tempo linear da história, fazendo o personagem se espiritualizar (sob o comando de dogmas religiosos), fazendo-o tomar consciência de uma nova forma de ser. Na verdade, quem se conscientiza de uma nova atividade formal, pensante, é o Artista do século XX, porque é ele que conduz o narrador, eleva-o ao expoente três, libera-o pelo pensamento complexo, concentra-o em si mesmo. Sob esta nova atitude pensante, o tempo vertical passa a predominar na narrativa, permitindo ao narrador (nesta última seqüência, já modificado) descrever a realidade sertaneja de Minas Gerais, baseando-se nos pensamentos do Artista sobre o sertão mineiro. O narrador do século XX (agora alter ego do Artista, agora distanciado dos valores da experiência comunitária) pensa ele mesmo, ou seja, o sertão é ele, o sertão é o que ele pensa intuitivamente.

O sertão, poetizado, em certos trechos da narrativa, emerge instantâneo, oferecendo ao analista ou ao intérprete uma visão completa e essencial de suas minúcias, visão esta que só poderá ser entendida, se houver comunhão anímica entre Artista e Leitor. O narrador roseano, nos trechos poetizados, imobiliza o sertão do passado, recordando transmutativamente, questionadoramente, dialeticamente, um tempo que ficou indelevelmente suspenso em seu mundo imaginário.

Entretanto, para que fique claro o meu pensamento sobre a narrativa assinalada, é preciso dizer que estou analisando o raciocínio de um narrador, induzido evidentemente pelo Artista Literário do século XX, situado em um plano de obra intermediário entre o antes e o depois. A hora e vez de Augusto Matraga faz parte de uma coletânea de contos (Sagarana) da primeira fase literária de Guimarães Rosa, ligada à narrativa linear, de contos reprodutores de experiências fenomênicas. Esta última narrativa de Sagarana, aqui verificada, antecede a obra máxima do autor, Grande Sertão: Veredas. Depois do narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, quase todos os narradores roseanos passaram a pensar de acordo com as características do cogito(3), sob a ação pensante do próprio Artista/Criador. Além de Grande Sertão: Veredas, as narrativas seguintes, como "A terceira margem do rio", “Darandina” e outros contos complexos de Guimarães Rosa, por exemplo, os contos de Tutaméia, enquadram-se perfeitamente às idéias de Bachelard, sobre o tempo ou instantes de tempo suspensos entre o antes e o depois.

No tempo vertical ocorre uma eclosão de formas que nada têm a ver com a sucessão de formas do tempo linear. Essa eclosão de formas do tempo vertical se encontra no limite do tempo vital contínuo (sempre pensando verticalmente), sobrepondo-se ao tempo vivido, participando também de todos os instantes. Esse tempo pode adquirir também muita qualidade por ser um acúmulo de forças, que se insere a seguir numa sucessão ordenada e que estaria no limiar de um outro plano (do espírito) fora do vital.

No que se refere ao fator subjetivo de formalização, a verdade do sujeito geralmente se encontra fora do alcance do conhecimento objetivo. Só subjetivamente se consegue a formalização, a definição, a concretização de uma idéia superior.


Bachelard, mesmo querendo alcançar o plano do cogito(4), mesmo querendo formalizar o descontínuo, alerta para o fato de que "a verdadeira região do repouso formal, onde ficaríamos contentes de nos manter"144 é o cogito(3). Isto quer dizer que apesar de estar acima do mundo fenomênico, pela inteligência, pela percepção intuitiva, pelo desprendimento das paixões, pelo desenvolvimento de seu novo ser, o filósofo opta pelo permanência consciente no referido cogito, primeiro estágio de evolução do indivíduo superior, mas que, mesmo assim, ainda é um estágio ligado à realidade física.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Coluna quinzenal de Rogel Samuel

 Leia Coluna quinzenal de Rogel Samuel: capítulo 14 de A Pantera em


 

terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


Por intermédio dos novos pensamentos de seu Criador, o narrador assume o caminho individual, que leva à auto-reflexão, qualidade essencial para se chegar ao objetivo da consciência singular, que caracteriza o indivíduo inteligente. A inteligência é engrandecida por Bachelard e a inteligência é uma qualidade no Artista Guimarães Rosa. Aqueles que se encontram no cogito(1) não valorizam a inteligência, preferem seguir modismos que massificam, que transformam alguns grupos sociais em uma só massa pensante. A função da inteligência é questionar, argumentar, refletir sobre a validade da direção do impulso massificador. Essa função especulativa, segundo Bachelard, "cria lazeres e os fortalece"135, ou seja, cria prazeres (coisas boas), que fortalecem e aperfeiçoam tal função. A consciência pura produz a capacidade de escolha lúcida, agencia o livre-arbítrio.

A consciência pura, de acordo com Bachelard, se localiza no cogito(3) da autêntica individualidade, acima dos cogitos um e dois e próxima do cogito(4), cogito este já fora da linha vital. Seria, assim, o eu singular, consciente, lucidamente equilibrado, repleto de força e capacidade de escolha. A consciência pura pode ficar em estado de vigilância, pode esperar que alguma coisa se manifeste, como por exemplo as intuições espirituais, pode esperar alguma oportunidade para agir, pode aguardar e guardar (baú de memórias), pode vigiar para que não entre em seu mundo interior (plano do eu profundo) qualquer conhecimento nocivo. Esta consciência singular, por estar muito próxima do tempo espiritual, estará sempre em estado de liberdade, porque não estará totalmente submetida às pressões do mundo vital; não será suscetível ao julgamento do mundo, às cobranças sociais, porque estará no plano que, para os que não a entendem, aparecerá como uma vontade de nada fazer, já que não vai fazer nada, enquanto não for o seu momento de bem fazer alguma coisa.

Foi a consciência argumentativa do cogito(2) que fez o escritor de estórias sertanejas Guimarães Rosa mudar a face/fase de seu narrador em A hora e vez de Augusto Matraga, colocando nele seus próprios objetivos individuais de homem prestes a alcançar um plano elevado dentro dos vários patamares que compõem o pensamento individual. Seu narrador deixou de agir impulsionado pelo elan vital, apropriando-se da inteligência de quem o criou e lhe deu forma ficcional. Assim, o narrador assume os pensamentos dialetizados do Artista, questionando, argumentando, refletindo sobre a direção que pretende dar à narrativa, direcionando seus impulsos criadores. Por isto, Nhô Augusto, retornando ao Arraial do Murici, subjugado à nova forma de pensar do Artista, pôde se encantar com as minúcias da natureza, enquanto o narrador poetizava o sertão. O narrador, apropriando-se da função especulativa do Artista, criou um mundo diferente, embalado pelo prazer de estar ancorado numa dimensão quase particular (cogito(2)), já propenso a se desligar das opiniões externas. Esta última etapa da narrativa marca a nova decisão do Artista: de ora em diante, ele criará um sertão muito particular, suspenso num momento onde o antes não conta, e o que virá em termos históricos também não.

No âmbito da consciência argumentativa, intuiu o momento da manifestação do narrador moderno, suplantando o narrador experiente das comunidades antigas. Esperou, enquanto se posicionava como contador de estórias sertanejas, a oportunidade de se libertar das pressões do mundo. No plano da consciência argumentativa, depois da libertação, passa a vivenciar o impacto do juízo de descoberta. O sertão, nascido do eu questionador, estará assim propenso às críticas da sociedade, mas promoverá também uma futura conscientização de seus valores por esta mesma sociedade. Um espaço que nunca foi apreciado pelas elites vem à luz sob a égide de uma consciência que já se desprendeu do cogito(1) e que já não se incomoda mais em se dizer sertaneja (rústica), mesmo que já tenha alcançado outros graus no plano das exigências sociais.

Bachelard esclarece, quando teoriza sobre "as superposições temporais"136, que os vários graus de instantes formam um acontecimento, e o acontecimento é o fato, ou seja, está também contido no tempo absoluto. A qualidade desse tempo (tempo do pensamento) é que é diferente, mesmo se manifestando no tempo vital, considerado absoluto, mas, em verdade, já é um tempo vertical. É um tempo que aparenta ser contínuo e, por isto, ainda dentro dos limites existenciais. Esse tempo, entendido pela Física, cientificamente, ainda não foi suplantado, apesar das tentativas filosóficas para se provar a existência de outras dimensões paralelas de tempo, além dos limites vitais. As dimensões temporais, vistas em suas formas aparentes, limitadas ao plano experimental, só podem realmente ser captadas no plano de interseção entre aparência e essência, plano este pouco avaliado, desenvolvendo-se assim idéias verticais no nível filosófico. Este plano de interseção pode levar a um entendimento vertical (o instante) ou a um entendimento relativo (correlações de instantes), que estão contidos potencialmente no entendimento do todo (para Bachelard, os três cogitos do pensamento estão dentro do plano vital).

O entendimento teórico-mental do tempo relativo (um estágio acima do tempo absoluto) está baseado no estudo do movimento, enquanto característica da continuidade das seqüências dos instantes temporais. A qualidade no tempo relativo é mutável, de acordo com os pontos de referência, por isto, ela é plural. Esses pontos de referência correlacionam-se, conservam ordens objetivas de transcurso. Por estas razões, os pontos de referência do tempo relativo têm continuidade, porque, mesmo sendo constituídos de instantes destacados, que não guardam durações absolutas, como no tempo contínuo, transitivo, esses mesmos instantes não são considerados, mas sim o que os une. Assim, a seqüência pode ser quebrada, no tempo relativo (correlações de instantes), se os pontos de vista não forem harmônicos. Isto gera uma mudança, característica da descontinuidade, que evidencia a existência de instantes separados, qualidade do instante vertical.

O instante vertical pertence ao tempo quântico, qualitativo, centrado na mudança de qualidade. Cada instante desse tempo quântico é feito dentro de um contexto, que, ao ser observado destacadamente, apresenta uma qualidade diferente.

Para a teoria da descontinuidade, cada movimento pode ter uma qualidade, um sentimento, uma imagem, um pensamento que esteja predominando naquele instante, diferente da qualidade do movimento anterior e diferente também da qualidade registrada na teoria da continuidade.

Sob a orientação bergsoniana, os tempos, qualitativos, ocorrem paralelamente/ simultaneamente. Em outras palavras, holisticamente (organizadamente) um tempo está potencialmente contido no outro; a preponderância de um vai depender do ponto de vista escolhido; porém, para Bachelard, que não desmerece em absoluto os pontos de vista de Bergson, apenas rejeita a idéia da continuidade temporal, a intuição pura permite perceber os tempos destacados, suspensos entre o antes e o depois, anulando definitivamente as prováveis uniões entre eles. O filósofo, a partir da intuição, obriga-se a criticar o ponto de vista holístico (organizado) do tempo, admitindo um novo conceito de tempo. O tempo feito de acidentes de Bachelard se deve às várias dimensões que existem, superpostas e simultâneas, e que, por um ponto de vista macroscópico, podem parecer holísticas.

O tempo feito de acidentes está perto das inconseqüências quânticas, mais do que das coerências racionais ou das consistências reais (tempo absoluto) e mais do que das correlações de pontos harmônicos (tempo relativo), porque a cada instante há uma mudança na qualidade do evento que não tem conseqüência na qualidade do mesmo evento de um instante antes. Esse instante é único, porque há uma integração instantânea e completa das imagens, pensamentos e sentimentos, mas isso não quer dizer que um instante seja conseqüência do anterior. O evento está fora do ser aparente, está no pensamento. No instante em que o evento assume uma qualidade, o observador participa desta qualidade, como se ele também tivesse esta qualidade, e de fato ele tem, porque, nesse momento fervilhante, fica óbvio que tudo faz parte de um instante irreproduzível. Por isto, Bachelard fala de intuição, da captação da qualidade de um evento pela intuição, acrisolada no repouso fervilhante. Não haveria tempo também para fazer essa captação pela racionalização (esta só aparecerá depois do repouso fervilhante, na forma de um novo pensamento); é difícil manter uma meditação vital, porque esta dificuldade para meditar é que comprova o tempo feito de acidentes, que muito se aproxima das inconseqüências quânticas, tão voláteis, como foi dito antes.

Foi a dificuldade para a meditação que permitiu ao filósofo descobrir as incoerências e as inconsistências do descontínuo temporal. Por isto, procurou demonstrar que, reduzindo os tempos lineares a tempos instantâneos, a única qualidade evidente, completa e eficaz seria a qualidade espiritual, captada pela intuição. "O tempo espiritual não seria uma simples abstração do tempo vital"137, seria a própria origem do tempo vital. Valendo-se de um novo raciocínio transmutativo, depois do repouso fervilhante, chega-se à conscientização desse tempo instantâneo. Esse tempo instantâneo se liga ao vital pelas aquisições espirituais, já conceituadas, obtidas antes do repouso ativo; mas também surge revigorado, graças à nova formalização do novamente intuído e que se encontra à deriva, fora do plano vital. O tempo do pensamento (instantes de tempo) é portanto superior ao tempo vital, porque, por meio dele, há como comandar o repouso e a ação, além de ser pelo pensamento que nascem as atitudes que revolucionam o mundo. Mas só a intuição do espiritual permite ver as inconsistências do vital e do mental, dentro de um conjunto coerente.

O tempo espiritual atua em seu próprio plano instantâneo, mas, como ele compõe os tempos vital e mental, a ação dele, num instante, se reflete nos outros planos temporais, atuando profundamente nesses mesmos planos, que não são os de seu próprio transcurso. O reflexo desse mundo espiritual, que só a intuição capta, pode ficar só dentro de seu próprio plano ou dentro do plano das idéias abstratas, ou se encaminhar para um plano mais exterior, que é o físico, que envolve os planos emocional e mental. Assim, o Tempo tem várias dimensões, várias espessuras, porque essas dimensões e espessuras tem de ver com os inúmeros aspectos do Universo.

O aspecto contínuo (tempo absoluto físico) existe no plano externo-físico, mas é, na verdade, a soma de muitos tempos independentes. Assim, há lacunas que podem ser ou não percebidas e só serão captadas por um raciocínio argumentador. Esse raciocínio, a cada instante, sofre modificações, porque não se submete aos pensamentos já definidos. As novas idéias surgem impulsionadas pelos questionamentos do repouso fervilhante, que são respondidos no mesmo instante pela intuição, de acordo com a qualidade do questionamento.

Ainda no plano do transcurso das coisas (plano vital), desenvolve-se a relatividade física (tempo da física), que, apesar do pluralismo temporal, ainda "aceita a continuidade como característica evidente"138. Esse pluralismo é muito diferente do que existe nas coincidências espirituais. No plano do transcurso das coisas, há a necessidade do preenchimento das lacunas do tempo, algo não necessário no plano do espírito. Alguns privilegiados, apesar de viverem no plano físico, necessitam de uma expansão racional, de um aprofundamento que os leve ao cogito(3), no qual se individualizam. Este cogito é o invólucro da inteligência pura, no qual se originam as idéias elevadas e singulares.


segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


Mas não é o aspecto linear e metódico do tempo que motiva Bachelard a dialetizar a temática da duração. Ele prefere aproveitar apenas "a época feliz em que o homem se vê entregue a si mesmo, em que a reflexão se ocupa mais de organizar a inação do que servir a exigências externas e sociais"125. Então, aqui, poderei explorar o forçado repouso (vital) de Nhô Augusto, já fundamentando o início do repouso fervilhante do Artista. Não falarei, por ora, como direciona-me Bachelard, do Artista distanciado do mundo, retirado do mundo, fortalecido pela solidão moral (e isto já se pré-anuncia a partir da segunda seqüência da narrativa); falarei páginas adiante sobre o Artista a partir da terceira seqüência, na qual se destaca o aspecto impessoal do narrador (a partir daí seu indiscutível alter ego), descobrindo as "zonas de repouso", as "razões de repouso"126, sistematizando o próprio repouso e o repouso de seu personagem.

Por ora, o Artista, ainda preso ao aspecto metódico do tempo, organizou a inação vital de seu personagem, planejou para ele uma nova forma de vida, conscientizou-o do fracasso de sua vida passada, prenunciando a sua própria futura inação fervilhante. Mas, nessa segunda etapa da narrativa, seu narrador ainda se recupera linearmente, submetendo-se a exigências externas e sociais; e Nhô Augusto passa a ter novamente, como personagem carismático, uma vida estruturada, amparada pela personalidade. Nhô Augusto continua poderoso (poder carismático amparado pela divindade), portanto estrutura-se ainda dentro do tempo linear. Mas o escritor já se encontra no início da sistematização de seu próprio repouso fervilhante, ligado ao tempo do pensamento, e assim começa a mudar o sentido da narrativa, transformando, gradativamente, o narrador memorialista (terminologia de Walter Benjamim) em narrador moderno.

Ao elaborar a face carismática do personagem, ainda sob as normas da narrativa linear, o narrador penetrou em uma zona dogmática, que é a zona espiritual no sentido cristão, inserida na própria pessoa por intermédio da iniciação religiosa ou moral. Quando um ser entra na zona espiritual, sob a orientação cristã, deixa de ser pessoa e passa a fazer parte de um grupo, porque a personalização é incompatível com a divindade comum a todos os seres humanos, e assim assume uma postura de representante do divino com poderes, mas sem autoridade pessoal. Nessa dimensão (espiritualidade cristã) todos são iguais, não há individualidade. Não é sem razão que o personagem passa a trabalhar para os pretos que o salvaram antes; ele está submetido às leis lineares da ideologia cristã. A narrativa, destacando o herói carismático (segundo segmento), ainda é linear, porque se encontra no plano da ideologia religiosa. O narrador recupera as origens de vida do personagem, a sua religiosidade dos tempos de criança.

Enquanto durou a sua condição de homem poderoso, no aspecto mítico-social, Nhô Augusto — o rompente, o matador —, induzido por seu narrador memorialista, negou as coisas do espírito, no aspecto místico-cristão. O seu cotidiano de Todo-Poderoso distraiu sua mente das diretrizes dogmáticas da religião. Na segunda fase, antigas orientações espirituais vêm à tona, transformando-o num homem religioso.

De acordo com Bachelard, só o espírito (e o espírito, segundo Bachelard, não possui o sentido dado pela orientação cristã) promoveria o refluir do tempo vivido, permitindo novas formas conceituais do ser; e a máxima forma do Ser no ser, sob o domínio do conceito de divindade, é a carismática.

Assim, houve a separação, nas seqüências iniciais, entre vida e espírito, já à moda bachelardiana. Na primeira seqüência, antes da queda, o personagem não possui espiritualidade, porque, como o mesmo Bachelard reconhece, "o espírito poderia chocar-se com a vida, opor-se a hábitos inveterados"127. E, como esclarece o filósofo, quando isto acontece, ou seja, quando há o choque entre matéria e espírito, e o espírito sai vencedor, o espírito faz "o tempo refluir sobre si mesmo", suscitando "renovações do ser, retornos a condições iniciais"128. E é assim que Nhô Augusto, direcionado ainda pelo narrador memorialista, retorna no tempo em busca do passado, renovando seu ser, recuperando-se assim dos ferimentos. Retornando à religiosidade, plantada na infância pela avó religiosa, o personagem reconforta-se e recupera um novo tipo de poder. Nesta segunda seqüência, ouso inferir que o espírito é o vencedor (orientado pelos dogmas cristãos).

Bachelard diz que é pela reflexão fervilhante que o ser se liberta do elan vital. O elan vital induz o indivíduo a se afastar dos objetivos individuais, impulsiona-o no sentido de aceitar o já instituído socialmente sem questionamentos.

A inteligência, entregue à sua função especulativa, irá aparecer-nos como uma função que cria lazeres e os fortalece. A consciência pura irá aparecer-nos como uma potência de espera e de guarda, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer.129

O narrador, nesta narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, está em vias de se liberar do elan vital, e isto promove também a libertação do Artista. Ele contou as peripécias de vida do personagem, refez sua trajetória existencial, mas a partir da página 26 (op.cit.), o discurso narrativo muda. Há estranhamentos, conflitos, e o personagem Nhô Augusto se transforma. Nesse momento narrativo, aparece um personagem providencial, o Tião da Teresa, que permitirá ao narrador mudanças discursivas, reveladoras de um novo estágio de pensamento do Artista brasileiro. O narrador se apodera do discurso do personagem Tião, dando todas as notícias do passado em apenas um parágrafo. Depois da entrada e retirada de Tião (personagem ocasional), o narrador muda o enredo narrativo. O discurso passa a ser complexo e estranho. Ao invés da narrativa concentrada em um tempo linear, pleno, substancial, visualiza-se uma narrativa transcendental, já propensa a algumas lacunas, características estas ligadas ao cogito(2), ou seja, ao pensamento transmutativo.

Bachelard, no capítulo "As superposições temporais"130, mostra a diferença entre um tempo múltiplo e relativo e um tempo de qualidade essencial e instantânea, em outras palavras, procura diferenciar o tempo linear histórico do tempo instantâneo, que se encontra suspenso entre o antes e o depois.

Para alcançar o entendimento dessa diferença, exercitou-se pela meditação; procurou esvaziar o tempo linear, retirando os excessos; ordenou os diversos planos de fenômenos temporais. A partir da meditação, percebeu que "os fenômenos não duravam todos do mesmo modo"; percebeu que a idéia de tempo único era uma idéia resumida e imperfeita; percebeu a inexistência do sincronismo entre a passagem das coisas e a fuga abstrata do tempo; percebeu "que era necessário estudar os fenômenos temporais, cada qual segundo um ritmo apropriado, um ponto de vista particular"131.

Observando as várias etapas do pensamento de Bachelard, conscientizei-me de que o narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, amparado pelo pensamento renovado do Artista Literário, sofreu o mesmo processo de raciocínio metafísico. Enquanto durou o repouso vital de Nhô Augusto, o escritor pôde repousar também sob o predomínio do repouso fervilhante; pôde refletir sobre vida e espírito; pôde buscar uma solução vertical para sua narrativa, que a partir dali não teria como se manter plena e linear. Ele meditou, esvaziou o tempo vivido das durações malfeitas e desenvolveu um novo raciocínio por meio do narrador. Por estas razões, a narrativa prossegue, mas de forma diferente. Há estranhamentos, insolidez, lacunas, total falta de sincronia na recuperação temporal. O narrador roseano deixa seu personagem

(...) no escuro e sozinho (...), sem padre nenhum com quem falar. E essa era a conseqüência de um estouro de boiada na vastidão do planalto, por motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruaz bravio, combinada com a existência, neste mundo, do Tião da Teresa. E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi.132

A partir deste trecho, já se observa a duração como a quer Bachelard, onde o tempo decorrido "fervilha de lacunas"133, tempo muito próximo das inconseqüências quânticas, e na qual não há a continuidade do tempo histórico. Agora, a narrativa recupera os instantes fervilhantes, que produzem a idéia de tempo, importando mais destacar o que se encontra entre o repouso e a ação. O narrador sai da objetividade histórica, a história pessoal de Nhô Augusto, Senhor absoluto das Pindaíbas e do Saco-da-embira, Senhor absoluto do Retiro do Morro Azul, além de ser Senhor absoluto do povoado do Murici, e se enreda em seus próprios circunlóquios, ou seja, tenta trazer à luz o que pressentiu, em termos de narrativa, a partir de seu próprio repouso fervilhante. A narrativa passa a ser poética e ritmada; passa a ser construída por um grupo de princípios relacionados entre si, mas que visa unicamente detectar os instantes do pensamento dialetizado.

As recordações da infância no sertão, certamente marcaram o escritor Guimarães Rosa. As histórias de Senhores-de-terra poderosos e valentes encontraram ressonâncias em seu espírito, marcaram-no vivamente. Mas essas recordações só foram realmente recuperadas mediante o repouso ligado ao tempo do pensamento e dos posteriores questionamentos sobre o sertão. Só depois que seu narrador se desembaraçou do tempo linear, "das falsas permanências, das durações malfeitas"134, só depois que ele desorganizou temporalmente sua narrativa, só depois que ele dissociou-se da aparente realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu curar-se do tempo sintagmático, questionando-o e assumindo no final (nas narrativas finais) o cogito(3) da consciência individual.

Ele pensou, a partir de então, alucinatoriamente, o sertão de sua infância; buscou a síntese do ser na essência do vir a ser; sumariou, resumiu o sertão poeticamente e conseguiu chegar a um final discursivo, distante temporalmente dos valores substanciais.


Depois do repouso, novos pensamentos surgiram e seu narrador se libertou e libertou o personagem. A hora e vez fervilhante do narrador chegou (sob o aval dos pensamentos fervilhantes do Artista Literário do século XX), levando-o a assumir definitivamente um pensamento narrativo distante dos padrões temporais. O narrador se libertou dos arrebatamentos súbitos e efêmeros, elans, que o faziam gastar sua energia criativa em ações imitadas. Até o momento do repouso fervilhante do Artista, o narrador deixou-se levar pelo impulso do que recebeu no passado, ou seja, procurou transmitir as experiências de vida que caracterizam a matéria épica. Nas primeiras seqüências, não tem intuição própria (ou não se permite ter). Nessas duas primeiras seqüências, em que se destacam as fases/faces do poder (primeiramente social e depois carismático), afasta-se do caminho individual, para se colocar como porta-voz das experiências da burguesia sertaneja, edificada nos pequenos vilarejos do sertão e dominada por senhores-de-terra poderosos.

domingo, 22 de fevereiro de 2015

A prosa soberana

A prosa soberana




A prosa soberana

Rogel Samuel

Eu gosto dos escritores à moda antiga: Euclides da Cunha, Rui Barbosa. São textos fortes, camaleônicos, enrustidos, vulcânicos. O campeão é Antonio Vieira. O imperador da prosa. O monstro sagrado da escritura. Quem se mete a imitá-los, hoje, é rotulado de acadêmico, antiquado. Os escritores amazonenses do passado os imitavam, e até hoje prosadores como Saramago fazem uso dessa estética do texto retumbante, relâmpagos de sonoridades poéticas. De certo modo Guimarães Rosa. Ele também construía um palácio de assonâncias, como quando disse: “Sábio não é quem sempre ensina. Mas quem de repente aprende”.
São seis vezes o som de EM, que lembra o questionamento de “hein?”. Rosa constrói um romance em cima de sonoridades.
Alguns bons prosadores hoje estão esquecidos. Exemplo de Herberto Sales. Seu romance “Cascalho” tem uma “tessitura artística”, uma “arquitetura e a linguagem”, uma “densidade” estilística, no dizer de Adonias Filho.
São escritores de prosa soberana.

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL

NEUZA MACHADO - DO PENSAMENTO CONTÍNUO À TRANSCENDÊNCIA FORMAL


Mas não é o aspecto linear e metódico do tempo que motiva Bachelard a dialetizar a temática da duração. Ele prefere aproveitar apenas "a época feliz em que o homem se vê entregue a si mesmo, em que a reflexão se ocupa mais de organizar a inação do que servir a exigências externas e sociais"125. Então, aqui, poderei explorar o forçado repouso (vital) de Nhô Augusto, já fundamentando o início do repouso fervilhante do Artista. Não falarei, por ora, como direciona-me Bachelard, do Artista distanciado do mundo, retirado do mundo, fortalecido pela solidão moral (e isto já se pré-anuncia a partir da segunda seqüência da narrativa); falarei páginas adiante sobre o Artista a partir da terceira seqüência, na qual se destaca o aspecto impessoal do narrador (a partir daí seu indiscutível alter ego), descobrindo as "zonas de repouso", as "razões de repouso"126, sistematizando o próprio repouso e o repouso de seu personagem.

Por ora, o Artista, ainda preso ao aspecto metódico do tempo, organizou a inação vital de seu personagem, planejou para ele uma nova forma de vida, conscientizou-o do fracasso de sua vida passada, prenunciando a sua própria futura inação fervilhante. Mas, nessa segunda etapa da narrativa, seu narrador ainda se recupera linearmente, submetendo-se a exigências externas e sociais; e Nhô Augusto passa a ter novamente, como personagem carismático, uma vida estruturada, amparada pela personalidade. Nhô Augusto continua poderoso (poder carismático amparado pela divindade), portanto estrutura-se ainda dentro do tempo linear. Mas o escritor já se encontra no início da sistematização de seu próprio repouso fervilhante, ligado ao tempo do pensamento, e assim começa a mudar o sentido da narrativa, transformando, gradativamente, o narrador memorialista (terminologia de Walter Benjamim) em narrador moderno.

Ao elaborar a face carismática do personagem, ainda sob as normas da narrativa linear, o narrador penetrou em uma zona dogmática, que é a zona espiritual no sentido cristão, inserida na própria pessoa por intermédio da iniciação religiosa ou moral. Quando um ser entra na zona espiritual, sob a orientação cristã, deixa de ser pessoa e passa a fazer parte de um grupo, porque a personalização é incompatível com a divindade comum a todos os seres humanos, e assim assume uma postura de representante do divino com poderes, mas sem autoridade pessoal. Nessa dimensão (espiritualidade cristã) todos são iguais, não há individualidade. Não é sem razão que o personagem passa a trabalhar para os pretos que o salvaram antes; ele está submetido às leis lineares da ideologia cristã. A narrativa, destacando o herói carismático (segundo segmento), ainda é linear, porque se encontra no plano da ideologia religiosa. O narrador recupera as origens de vida do personagem, a sua religiosidade dos tempos de criança.

Enquanto durou a sua condição de homem poderoso, no aspecto mítico-social, Nhô Augusto — o rompente, o matador —, induzido por seu narrador memorialista, negou as coisas do espírito, no aspecto místico-cristão. O seu cotidiano de Todo-Poderoso distraiu sua mente das diretrizes dogmáticas da religião. Na segunda fase, antigas orientações espirituais vêm à tona, transformando-o num homem religioso.

De acordo com Bachelard, só o espírito (e o espírito, segundo Bachelard, não possui o sentido dado pela orientação cristã) promoveria o refluir do tempo vivido, permitindo novas formas conceituais do ser; e a máxima forma do Ser no ser, sob o domínio do conceito de divindade, é a carismática.

Assim, houve a separação, nas seqüências iniciais, entre vida e espírito, já à moda bachelardiana. Na primeira seqüência, antes da queda, o personagem não possui espiritualidade, porque, como o mesmo Bachelard reconhece, "o espírito poderia chocar-se com a vida, opor-se a hábitos inveterados"127. E, como esclarece o filósofo, quando isto acontece, ou seja, quando há o choque entre matéria e espírito, e o espírito sai vencedor, o espírito faz "o tempo refluir sobre si mesmo", suscitando "renovações do ser, retornos a condições iniciais"128. E é assim que Nhô Augusto, direcionado ainda pelo narrador memorialista, retorna no tempo em busca do passado, renovando seu ser, recuperando-se assim dos ferimentos. Retornando à religiosidade, plantada na infância pela avó religiosa, o personagem reconforta-se e recupera um novo tipo de poder. Nesta segunda seqüência, ouso inferir que o espírito é o vencedor (orientado pelos dogmas cristãos).

Bachelard diz que é pela reflexão fervilhante que o ser se liberta do elan vital. O elan vital induz o indivíduo a se afastar dos objetivos individuais, impulsiona-o no sentido de aceitar o já instituído socialmente sem questionamentos.

A inteligência, entregue à sua função especulativa, irá aparecer-nos como uma função que cria lazeres e os fortalece. A consciência pura irá aparecer-nos como uma potência de espera e de guarda, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer.129

O narrador, nesta narrativa A hora e vez de Augusto Matraga, está em vias de se liberar do elan vital, e isto promove também a libertação do Artista. Ele contou as peripécias de vida do personagem, refez sua trajetória existencial, mas a partir da página 26 (op.cit.), o discurso narrativo muda. Há estranhamentos, conflitos, e o personagem Nhô Augusto se transforma. Nesse momento narrativo, aparece um personagem providencial, o Tião da Teresa, que permitirá ao narrador mudanças discursivas, reveladoras de um novo estágio de pensamento do Artista brasileiro. O narrador se apodera do discurso do personagem Tião, dando todas as notícias do passado em apenas um parágrafo. Depois da entrada e retirada de Tião (personagem ocasional), o narrador muda o enredo narrativo. O discurso passa a ser complexo e estranho. Ao invés da narrativa concentrada em um tempo linear, pleno, substancial, visualiza-se uma narrativa transcendental, já propensa a algumas lacunas, características estas ligadas ao cogito(2), ou seja, ao pensamento transmutativo.

Bachelard, no capítulo "As superposições temporais"130, mostra a diferença entre um tempo múltiplo e relativo e um tempo de qualidade essencial e instantânea, em outras palavras, procura diferenciar o tempo linear histórico do tempo instantâneo, que se encontra suspenso entre o antes e o depois.

Para alcançar o entendimento dessa diferença, exercitou-se pela meditação; procurou esvaziar o tempo linear, retirando os excessos; ordenou os diversos planos de fenômenos temporais. A partir da meditação, percebeu que "os fenômenos não duravam todos do mesmo modo"; percebeu que a idéia de tempo único era uma idéia resumida e imperfeita; percebeu a inexistência do sincronismo entre a passagem das coisas e a fuga abstrata do tempo; percebeu "que era necessário estudar os fenômenos temporais, cada qual segundo um ritmo apropriado, um ponto de vista particular"131.

Observando as várias etapas do pensamento de Bachelard, conscientizei-me de que o narrador de A hora e vez de Augusto Matraga, amparado pelo pensamento renovado do Artista Literário, sofreu o mesmo processo de raciocínio metafísico. Enquanto durou o repouso vital de Nhô Augusto, o escritor pôde repousar também sob o predomínio do repouso fervilhante; pôde refletir sobre vida e espírito; pôde buscar uma solução vertical para sua narrativa, que a partir dali não teria como se manter plena e linear. Ele meditou, esvaziou o tempo vivido das durações malfeitas e desenvolveu um novo raciocínio por meio do narrador. Por estas razões, a narrativa prossegue, mas de forma diferente. Há estranhamentos, insolidez, lacunas, total falta de sincronia na recuperação temporal. O narrador roseano deixa seu personagem

(...) no escuro e sozinho (...), sem padre nenhum com quem falar. E essa era a conseqüência de um estouro de boiada na vastidão do planalto, por motivo de uma picada de vespa na orelha de um marruaz bravio, combinada com a existência, neste mundo, do Tião da Teresa. E tudo foi bem assim, porque tinha de ser, já que assim foi.132

A partir deste trecho, já se observa a duração como a quer Bachelard, onde o tempo decorrido "fervilha de lacunas"133, tempo muito próximo das inconseqüências quânticas, e na qual não há a continuidade do tempo histórico. Agora, a narrativa recupera os instantes fervilhantes, que produzem a idéia de tempo, importando mais destacar o que se encontra entre o repouso e a ação. O narrador sai da objetividade histórica, a história pessoal de Nhô Augusto, Senhor absoluto das Pindaíbas e do Saco-da-embira, Senhor absoluto do Retiro do Morro Azul, além de ser Senhor absoluto do povoado do Murici, e se enreda em seus próprios circunlóquios, ou seja, tenta trazer à luz o que pressentiu, em termos de narrativa, a partir de seu próprio repouso fervilhante. A narrativa passa a ser poética e ritmada; passa a ser construída por um grupo de princípios relacionados entre si, mas que visa unicamente detectar os instantes do pensamento dialetizado.

As recordações da infância no sertão, certamente marcaram o escritor Guimarães Rosa. As histórias de Senhores-de-terra poderosos e valentes encontraram ressonâncias em seu espírito, marcaram-no vivamente. Mas essas recordações só foram realmente recuperadas mediante o repouso ligado ao tempo do pensamento e dos posteriores questionamentos sobre o sertão. Só depois que seu narrador se desembaraçou do tempo linear, "das falsas permanências, das durações malfeitas"134, só depois que ele desorganizou temporalmente sua narrativa, só depois que ele dissociou-se da aparente realidade das lembranças (enquanto produto da memória), só então conseguiu curar-se do tempo sintagmático, questionando-o e assumindo no final (nas narrativas finais) o cogito(3) da consciência individual.