sexta-feira, 31 de maio de 2013

O BANCO DO MILLÔR


O escritor realizado

O escritor realizado



O escritor realizado

Rogel Samuel



Uma amiga me faz uma pergunta basilar:

- O que faltou para você ser um escritor realizado?

A questão está posta de modo errado, por isso ela é irrespondível.

Pois, o que será um escritor realizado?

Será ser um best-seller?

Benjamim Costallat, autor de “Mademoiselle Cinema”, foi um dos autores mais lidos na década de 20 e hoje ninguém nem conhece.

Mesmo Coelho Neto, Humberto de Campos, glórias de seu tempo, quem hoje os lê? Só são lembrados como nomes de rua.

Alguns Prêmios Nobel de Literatura jazem hoje no sepulcro das bibliotecas onde ninguém mais os lê nem sabe deles, como Maurice Maeterlinck, Gerhart Hauptmann, ou Karl Adolph Gjellerup.


Escritor plenamente realizado é aquele que escreveu todos os textos que quis ou pôde escrever, e isso eu o fiz com os meus romances, minhas novelas, meus contos, crônicas e poemas.


Se minha amiga X. não os leu nem sabe deles é porque não quer ou não quis. Todos estão publicados e disponíveis e acessíveis em livro e principalmente na Internet.
 




quarta-feira, 29 de maio de 2013

terça-feira, 28 de maio de 2013

PARIS




Paris

Rogel Samuel


Havia uma chuva fina que molha o chão das ruas e põe as folhas das árvores pensativas. Nas três vezes anteriores que estive em Paris chovia sempre. Como todo amazonense, adoro Paris. Sonho morar em Paris, como os amazonenses da época de meu avô. Manaus, réplica, miniatura de Paris. Existia a Casa Louvre, A la ville de Paris, Café da Paz, Au bon marché, Livraria Palais Royal, Casa Sorbonne, Bijou . "Manaus, pequena Paris". Boulevar Amazonas, Boulevard Álvaro Maia. "A samaritana". Manaus, toda francesa. Na "Praça da Polícia", uma réplica do "Temple d'amour", de Versailles. Quando a borracha faliu, os comerciantes quebraram, mudaram-se para Paris, Lisboa. Os jornais da época marcam anúncios, despedida. Bela maneira de ir à falência: Iam para Paris. Onde já estudavam seus filhos. Um amigo reacionário me diz, com indignação: "A filha do Lula estuda em Paris". Meu pai estudou em Paris, no entre-guerras. Na realidade, ele era francês, ainda que tivesse nascido a bordo do navio Adamastor, em Remate de Males, que eu só sei onde fica devido a um livro de Mário de Andrade. Antes que a malária matasse todas as crianças nascidas ali, meu avô, que era alsaciano, transbordou sua mulher e filho para um navio inglês que passava. O menino ficou em Estrasburgo, a bela cidade, a Catedral mais bela do mundo. Aliás, ele morava perto da Catedral. Acordava ao som de seus sinos. A catedral é maior do que a própria cidade. Um dia, estando em Frankfurt, em casa de Karl Joseph, eu disse: "Vou ver Estraburgo". E ele respondeu: "Eu levo você". Fomos, que era domingo, eu, ele e sua esposa brasileira. De Estrasburgo, mandei um cartão para meu pai, ainda vivo. Lá, depois do almoço, quiseram voltar. No dia seguinte trabalhavam. Eu disse: "Não volto sem ver e ouvir o relógio da Catedral". Passei a infância ouvindo falar daquele relógio. Karl Joseph e a mulher foram descansar num hotel, na estrada, eu esperei dar 6 horas da tarde dentro da Catedral. A primeira coisa que aconteceu foi abrir-se uma portinhola e dali sair um boneco mecânico, um esqueleto vestido de Morte, bateu com um martelinho num sininho. Aquilo ecoou por toda a nave. Ao que o grande sino da Igreja respondeu, solene. Grave. Chove sempre que estou em Paris. Com Annie Gerault, que não tem medo de chuva, cortamos o Bois de Vincennes, pelas margens do lago "des Minimes", sob chuva forte, à noite. Annie mora na Rue Fondary, não longe da Torre Eiffel. Um dia fomos ver a nova iluminação da Torre. Depois, já bem tarde, Annie quis passear pela noite, no Jardin du Luxembourg. Como carioca, logo pensei em assalto. O jardim estava deserto, mas a sensação era de calma. Lembrei-me então: não estávamos no Rio.
Annie já não está entre nós, faleceu há poucos anos.

DESPEDIDA


segunda-feira, 27 de maio de 2013

O MENINO QUE ESCREVIA VERSOS

O menino que escrevia versos

Mia Couto

De que vale ter voz
se só quando não falo é que me entendem?
De que vale acordar
se o que vivo é menos do que o que sonhei?

(VERSOS DO MENINO QUE FAZIA VERSOS)
 

— Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
— Há antecedentes na família?

— Desculpe doutor?
O médico destrocou-se em tintins. Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava bem, nunca lhe batera, mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
— Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação: perfume de igual qualidade qual outra mulher ousa sequer sonhar? Pobres que fossem esses dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, não fora senão período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas  confissões de amor.


Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e para a escola do miúdo. Mas eis que começaram a aparecer, pelos recantos da casa, papéis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
— São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas, se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?

Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
— O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões e, sobretudo, lhe  espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era pôr cobro àquela vergonha familiar.

Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
— Dói-te alguma coisa?

—Dói-me a vida, doutor.

O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: Está a ver, doutor? Está ver? O médico voltou a erguer os olhos e a enfrentar o miúdo:
— E o que fazes quando te assaltam essas dores?

— O que melhor sei fazer, excelência.
— E o que é?

— É sonhar.
Serafina voltou à carga e desferiu uma chapada na nuca do filho. Não lembrava o que o pai lhe dissera sobre os sonhos? Que fosse sonhar longe! Mas o filho reagiu: longe, porquê? Perto, o sonho aleijaria alguém? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.

O médico estranhou o miúdo. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
— Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clinica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.

Na semana seguinte, foram os últimos a ser atendi dos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos? O menino não entendeu.
— Não continuas a escrever?
— Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho este pedaço de vida — disse, apontando um novo caderninho — quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
— Não temos dinheiro — fungou a mãe entre soluços.

— Não importa — respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica, que o menino seria sujeito a devido tratamento. E assim se procedeu.

Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto onde está internado o menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração. E o médico, abreviando silêncios:

— Não pare, meu filho. Continue lendo...

Mia Couto vence o Prêmio Camões 2013

Mia Couto vence o Prêmio Camões 2013

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O escritor e biólogo moçambicano Mia Couto é o vencedor do Prêmio Camões de 2013, o mais importante da literatura em língua portuguesa. Ele vai receber 100 mil euros.
O júri, formado escritores, críticos e jornalistas lusófonos, foi composto pelos brasileiros Alberto da Costa e Silva e Alcir Pécora, pelos portugueses João Paulo Borges Coelho, José Carlos Vasconcelos e Clara Crabbé Rocha e pelo angolano José Eduardo Agualusa.
Criado por Portugal e Brasil em 1989, o prêmio é o maior de língua portuguesa e é concedido ao escritor cuja obra contribua para sua projeção e reconhecimento.
Nas 24 edições anteriores da premiação, Portugal e Brasil foram vencedores por dez vezes cada. Angola teve dois escritores ganhadores: Pepetela, em 1997, e José Luandino Vieira, que, em 2006, recusou o prêmio. De Moçambique, já havia sido premiado José Craveirinha, em 1991, e, de Cabo Verde, Arménio Vieira, em 2009.
Veja a lista completa dos vencedores:
2013 – Mia Couto (romancista moçambicano)
2012 – Dalton Trevisan (contista brasileiro)
2011- Manuel António Pina (poeta, cronista, dramaturgo e romancista português)
2010 – Ferreira Gullar (poeta brasileiro)
2009 – Armênio Vieira (escritor de Cabo Verde)
2008 – João Ubaldo Ribeiro (romancista brasileiro)
2007 – António Lobo Antunes (romancista português)
2006 – José Luandino Vieira (escritor angolano; recusou o Prêmio Camões)
2005 – Lygia Fagundes Telles (romancista brasileira)
2004 – Agustina Bessa Luís (romancista portuguesa)
2003 – Rubem Fonseca (romancista brasileiro)
2002 – Maria Velho da Costa (romancista portuguesa)
2001 – Eugénio de Andrade (poeta português)
2000 – Autran Dourado (romancista brasileiro)
1999 – Sophia de Mello Breyner Andresen (poeta portuguesa)
1998 – Antonio Candido (crítico literário e ensaísta brasileiro)
1997 – Pepetela (romancista angolano)
1996 – Eduardo Lourenço (crítico literário e ensaísta português)
1995 – José Saramago (romancista português)
1994 – Jorge Amado (romancista brasileiro)
1993 – Rachel de Queiroz (romancista brasileira)
1992 – Vergílio Ferreira (romancista português)
1991 – José Craveirinha (poeta moçambicano)
1990 – João Cabral de Melo Neto (poeta brasileiro)
1989 – Miguel Torga (poeta e romancista português)

domingo, 26 de maio de 2013

VIVER ATRAVÉS DO ZEN

 
VIVER ATRAVÉS DO ZEN

D. T. SUZUKI
 
O que significa "viver através do Zen"? Não estamos todos vivendo através do Zen, no Zen e com o Zen? Podemos escapar disso? Embora muito nos esforcemos para escapar dele, somos como aqueles pequenos peixes apanhados em quantidade; a luta não tem proveito algum, e termina por nos ferir gravemente.
SUZUKI
 
 
 
Visto de outro modo, "viver através do Zen" é como pôr outra cabeça sobre a que nós já tínhamos antes mesmo de nosso nascimento. Qual a utilidade, então, de falar sobre isso?
SUZUKI
 
 
Mas é da natureza humana perguntar sobre questões evidentes por si mesmas e, freqüentemente, nós nos encontramos inextricavelmente envolvidos nelas. Não há dúvida alguma sobre o tamanho da estupidez, mas é essa própria estupidez que abre um domínio de cuja existência nunca tínhamos suspeitado até agora. A estupidez é, em outras palavras, a curiosidade, e a curiosidade é aquilo que Deus implantou no espírito humano.
SUZUKI
 
 
 
Provavelmente, o próprio Deus estava curioso por conhecer a si mesmo e criou o homem, e está tentando satisfazer sua curiosidade através do homem.
SUZUKI
 
Embora possa ser assim, aqui está o título deste livro, Viver através do Zen, e vamos ver o que significa. Para fazer isso, descendemos de Deus, da Vida Divina, e fazemos uso do intelecto ou da consciência humana como se desenvolveu em nós, pois essa é a única coisa que distingue, essencial e caracteristicamente, a nós humanos do resto da criação. O intelecto revela-se, por várias formas.
SUZUKI
 
        Um mestre disse: "O Zen é como um pote de óleo fervendo" .
SUZUKI
 
        Outro mestre disse: "Os macacos sobem na árvore e, com suas        caudas, segurando um ao outro, penduram-se do topo".
SUZUKI
 
        E outro mestre: "É um pedaço de tijolo quebrado".
        Outro ainda: "Eu levanto minhas sobrancelhas, movo meus olhos".
Um monge jardineiro aproximou-se certa vez do mestre e manifestou-lhe o desejo de ser iluminado no Zen. O mestre disse: "Venha novamente quando não houver ninguém por perto, e eu lhe direi o que ele é". No dia seguinte, o monge chegou outra vez, observou que não havia ninguém perto e implorou-lhe para revelar o segredo. Disse o mestre: "Aproxime-se mais de mim", e o monge chegou mais perto dele. Disse então o mestre: "O Zen é algo que não pode ser transmitido por palavras".
SUZUKI
 
 
 
 
Conta-se uma história semelhante de Suibi. Certa vez ele foi abordado por Reijun (d.C. 875-919) de Seiei-san que desejava saber sobre o segredo do Zen, como fora levado para a China por Bodi-Darma. Disse-lhe Suibi que o segredo lhe seria transmitido quando não houvesse ninguém nas proximidades. Quando ele voltou, Suibi desceu de sua cadeira e levou o ansioso indagador para debaixo da alameda de bambus onde tudo estava quieto. Suibi disse, apontando os bambus: "Veja como estes são compridos e estes são curtos".
Estranhas definições essas, e não há concordância, nem ao menos como tentativa, entre elas. De fato, há tantas definições como há mestres, desde o início do Zen. E sobre o Buda, então, que é considerado como o primeiro mestre? Têm elas nutrido o único e o mesmo Buda?
Quando perguntaram a um mestre a respeito de quem era o Buda, ele respondeu: "O gato sobe no poste". O discípulo confessou sua inabilidade em compreender o sentido dessas palavras e o mestre disse: "Se você não compreende, pergunte ao poste".
Um monge perguntou: "O que é o Buda"?
Reikwan de Useki-san pôs a língua de fora e mostrou-a a ele.
        O monge fez uma reverência.
        O mestre disse: "Para com isso; o que você viu ao fazer sua reverência"?
Replicou o monge: "Tudo isso deve-se à bondade de seu coração, pois mostrou-me o Buda por intermédio de sua língua".
        Disse o mestre: "Ultimamente tenho uma fenda na ponta de minha língua".
        Um monge perguntou a Keitsu de Kwaku-san: "Quem é o Buda"?
        O mestre esbofeteou-o e o monge o mestre.
        Disse o mestre: "Há uma razão para você me esbofetear, mas não há tal razão para eu tê-lo esbofeteado".
O monge não soube responder, conseqüentemente o mestre esbofeteou-o novamente e correu-o para fora da sala.
Yero perguntou a Sekito (700-790) : "Quem é o Buda"? Sekito disse: "Você não tem a natureza do Buda". "E sobre aquelas criaturas serpeantes, então"?
"Elas possuem a natureza de Buda".
"Se é assim, como é que eu, conhecido como Yero, não possuo a natureza do Buda"?
        "O mestre disse: "Justamente porque você não reconheceu" .
Um monge perguntou a Gi-an de Tanka-san: "Quem é o Buda"?
"Quem é você"? Perguntou o mestre.
"Se é assim, não há nenhuma diferença"?
"Quem lhe disse isso"?
O poste ou o pilar freqüentemente aparecem no mondo [ Forma de perguntas e respostas do Zen] do Zen, pois é um dos objetos comuns à vista no mosteiro. Um monge perguntou a Sekito: "Qual é a idéia da visita de Bodi-Darma a este país"? Disse o mestre. "Pergunte ao poste". O monge confessou que não comprendera. O mestre disse: "Estou em pior situação quanto a isso".
Das respostas dadas às perguntas "O que é o Zen"? e "Quem é o Buda"? podemos avaliar qual a espécie de ensino do Zen. A forma em que o Zen concebe o Buda não permite nenhuma uniformidade da parte de seus seguidores, e o método adotado por cada mestre para fazer com que seus indagantes compreendam o que ou quem ele é tende a um absurdo que vai além da inteligência humana. Embora o Zen possa afirmar ser uma forma, ou mesmo a essência, do Budismo, isto não parece levar à mais leve indicação do que realmente seja.
Se formos julgar o Zen do ponto de vista do nosso senso comum, sentiremos o chão desaparecer sob nossos pés. O nosso assim chamado modo racionalista de pensar aparentemente não tem uso para avaliar a verdade ou a falsidade do Zen. Ele está inteiramente além da percepção da compreensão humana. Portanto, tudo que podemos declarar sobre o Zen é que sua singularidade está na sua irracionalidade ou no seu ultrapassar da nossa compreensão lógica. Na verdade, a religião geralmente tem algo que não pode ser entendido apenas pela lógica e recorre a uma revelação ou aceitação pela fé. Por exemplo, a existência de Deus, que criou o mundo do nada, não é plausível logicamente ou demonstrável experimentalmente só podendo ser aceita pela fé. Mas a irracionalidade do Zen não parece ser da mesma ordem da chamada irracionalidade religiosa.
O que possui o Zen, perguntamos, que afirma ser a quintessência do Budismo, para tratar da subida dos macacos na árvore ou na escalada dos gatos no poste? O que tem ele para tratar do elevar das sobrancelhas de alguém ou do abrir e fechar dos olhos? Se pedimos ao poste para explicar o que significa o subir nele, deseja ou pode o poste explicar-nos isso? O que realmente ganhamos dessas declarações feitas por mestres do Zen?
É verdade que todos eles falam a respeito do Buda e da verdade do Zen, mas, evidentemente, seus Budas não vão além do gato e do poste, e nada há neles que nos faça pensar em santidade ou algo sagrado, ou santificado, idéias que naturalmente associamos ao estado do Buda, ou o objeto de culto religioso. O gato não está envolvido em um halo, o poste não tem semelhança alguma com a Cruz.
Quanto ao oferecimento do mestre em divulgar o segredo do Zen a seus discípulos logo que estivessem a sós. pode uma verdade espiritual ser comunicada privativamente de uma pessoa para outra? Quando o discípulo apresentou-se ao mestre, foi-lhe pedido que se chegasse mais para perto, como se o segredo devesse ser sussurrado pelo mestre.
Mas nenhum segredo chegou aos ouvidos dos discípulos, exceto que não devia ser comunicado pela fala humana. Na realidade foi assim? Havia um segredo além desse? O mestre não enganou a si próprio quando afirmou que não havia segredo algum no Zen que pudesse ser comunicado por palavras? E o discípulo não se contradisse quando se comportou como se ignorasse a verdade do Zen? O episódio todo parece ser apenas uma farsa. Mas será mesmo? Não há nada profundamente espiritual que, na verdade, esteja escondido do intelecto, mas revelado no comportamento do discípulo, assim como o que não foi falado pelo mestre?
No segundo caso, onde o segredo do Zen é novamente o assunto, o mestre não disse que não poderia expressá-lo por meio da linguagem humana. Simplesmente apontou para os bambus e deu sua apreciação quanto ao seu comprimento; ele não disse uma palavra acerca da mensagem secreta que supostamente teria vindo para o Reino do Meio por intermédio de Bodi-Darma. Algum segredo foi aqui revelado? Os bambus aparentemente não transmitem nada para Suibi ou para Reijun. Mas, de acordo com O Registro, Reijun disse ter sido um lampejo da verdade do Zen. O que foi isso, então? Os bambus menores são curtos, os bambus maiores são compridos, e permanecem verdes durante todo o ano e ficam eretos, balançando-se suavemente quando uma brisa passa sobre eles.
Baso (-788), um dos maiores mestres do Zen, da dinastia T'ang, foi certa vez interpelado por um monge que lhe perguntou: "Deixando de lado as quatro proposições e indo além de uma centena de negações, Mestre, por favor diga-me qual é o significado da vinda de Bodi-Darma para a nossa terra".
Bodi-Darma ( -528) tradicionalmente é considerado como o primeiro patriarca do Zen na China; isso significa que ele é considerado como aquele que primeiro trouxe a idéia do Zen da índia para a China, na primeira parte do século VI. A pergunta: "Qual é o significado de sua vinda para a China"? vem a ser o mesmo que perguntar: "Qual é a verdade do Zen-Budismo"? Ora, o monge que fez a pergunta desejava saber se havia alguma coisa que fosse especificamente conhecida como a verdade do Zen, o que está absolutamente além do entendimento humano. As quatro proposições são: (1) afirmativa, (2) negativa, (3) nem afirmativa nem negativa, (4) tanto afirmativa. como negativa, "centena de negações", que na realidade se refere a cento e seis declarações negativas no Lankavatara sutra, significa uma negação por atacado de toda declaração que possa ser feita sobre qualquer coisa.
A pergunta do monge, portanto, equivale a perguntar sobre uma verdade absolutamente última, se poderia haver alguma assim, quando é categórica e consistentemente negado. O Zen está, na realidade, na posse de tal coisa? Se é assim, o monge procurava obter isso do mestre. Na. terminologia cristã, tal verdade última é Deus ou a Divindade. Quando alguém vê um ou outra, uma busca espiritual ou religiosa chega a um fim; uma alma inquieta encontra seu lugar de repouso final. A pergunta do monge não é realmente uma pergunta infundada; ela brota dos recessos mais profundos de seu coração que busca a verdade. Qual foi a resposta de Baso? Foi esta:
"Estou cansado hoje e não posso contar-lhe. Fale com Chizo (Chihtsang) e pergunte". O monge foi até Chizo, um dos discípulos chefes de Baso, e repetiu a pergunta. Disse Chizo: "Por que não pergunta ao próprio mestre'?"
O monge replicou: "Foi o próprio mestre que disse para vir aqui e lhe perguntar sobre isso." Chizo disse: "Estou com dor de cabeça hoje e não lhe posso contar nada a nesse respeito. Vá ao Irmão Kai (Hai) e pergunte." O
monge dirigiu-se a Kai e repetiu a pergunta. Disse Kai: "Realmente, não compreendo nada disso." O monge finalmente voltou a Baso e relatou tudo o que acontecera. Baso observou d seguinte: "Chizo tem a cabeça branca, enquanto que a de Kai é preta."
O que podemos deduzir deste "incidente" ou desta "história" (Yin-Yuan) do Zen, aparentemente, é apenas o sentimento de cansaço do mestre, sendo que um dos dois discípulos tinha uma dor de cabeça e o outro não compreendia, e, finalmente o comentário displicente do mestre sobre os cabelos grisalhos de um e o pretume dos do outro. Todos estes são incidentes comuns de nossa experiência diária, que parecem não ter muito a ver com objetos tão profundas como a verdade, Deus ou a realidade. E se eles todos concordam que o Zen poderia dar-se ou se daria ao que busca fervorosamente a verdade, depois de muitos anos de sérias investigações, valeria a pena realmente estudar o Zen? A mensagem secreta do Bodi-Darma que veio para a China no século VI pondo em risco sua vida sobre as ondas violentas dos mares do sul - ela não vai algo além disso?
O que quer que seja, vemos que a singularidade do Zen não consiste apenas na sua óbvia irracionalidade, mas também em seus métodos, na maioria incomuns, de demonstrar a verdade. A respeito da irracionalidade, na sua maioria, podem as classificar as proposições religiosas. Por exemplo, tomemos a afirmação cristã de que Deus enviou seu filho único para salvar a humanidade da condenação final. Para dizer o mínimo, isto é irracional. Supõe-se que Deus seja onisciente e onipotente e devia estar completamente cônscio do destino do homem ao criá-lo, se assim é, por que se deu ou teve de se dar ao trabalho de sacrificar seu único filho gerado para salvar
a humanidade pecadora? Deixando de lado sua onisciência, não poderia ele provar sua onipotência por outros meios que não o de dar seu filho único para ser sacrificado na Cruz? Se Deus fosse racional como o são os humanos, ele não precisaria ser tão irracional a ponto de se transformar em um de nós para provar seu infinito amor de pai para conosco. Estas e muitas outras interrogações irracionais podem ser levantadas contra a concepção cristã de Deus e seu plano de salvação.
Pode-se dizer que as irracionalidades do Zen são de ordem diferente das do cristianismo, porém são tão irracionais apenas quanto ao que se refere à ilogicidade. Diz o Zen: "Seguro uma espada em minhas mãos e fico com as mãos vazias. Monto em cima de um boi e estou caminhando a pé." Isto não é tão ilógico e contra a experiência humana como quando os cristãos afirmam que Cristo levantou-se de sua tumba três dias depois da crucificação?
Não há dúvida alguma de que o método do Zen de tratar seus assuntos é único na história do pensamento. Não usa idéias ou conceitos; apela diretamente para a experiência concreta. Se o monge não consegue despertar em si próprio a consciência da verdade assim transmitida da maneira mais viva, pessoal e prática, ele tem de esperar por outra oportunidade. Enquanto isso, pode ir percorrendo a imensidão do pensamento abstrato.
Todas as outras religiões ou ensinamentos espirituais tentam provar a verdade de suas irracionalidades por meio, de dedução ou indução, através de abstração, racionalização e postulação; mas os mestres do Zen se recusam a fazer isso. Eles apenas põem em liberdade sua "ação direta" e dão suas lições da forma mais efetivamente pessoal. Se o monge não pode captá-la no momento, o mestre espera pela próxima ocasião, quando o próprio monge sente um anseio interno de abordar o mestre, desta vez, provavelmente, com outra forma de. pergunta.
Quando Suiryo abordou Baso com a pergunta: "Qual é a verdade do Zen assim convertida por Bodi-Darma?" o mestre golpeou-o, derrubando-o. Esse tratamento rude despertou-o para a verdade do Zen. Quando ele restabeleceu seu equilíbrio, bateu as mãos, rindo alto e disse:
"Que estranho! Todos os samadis, toda a profundidade inesgotável que aparece nos sutras são, de uma só vez reveladas no ponto de um único fio de cabelo!" Então, ele faz uma reverência para o mestre e retira-se. Posteriormente, ele costumava dizer: "Desde que experimentei o pontapé de Baso, não pude parar de rir." Quando lhe perguntavam qual era a verdade última do budismo, ele simplesmente esfregava as mãos e ria alto.
Há no Zen uma grande quantidade de atos violentos, bofetadas e golpes com a vara. Quando um monge é tratado de maneira tão inesperavelmente sem-cerimônia, muitas vezes ele abre os olhos para a verdade do Zen. Mas, freqüentemente, ele segue sem dizer, o golpe não é proveitoso e deixa o indagante ainda num dilema.
Tokusan (780-866), um grande monge da última disnatia T'ang, destacou-se por balançar seu bastão. Seu dito predileto era: "Não importa o que você diga, seja 'sim' ou 'não', você obterá somente as mesmas trinta reverências." Certa vez, ele fez um sermão em que dizia: "Se você pergunta, é culpado; se não pergunta, também está errado." Um monge dirigiu-se a ele preparado para fazer sua reverência, quando Tokusan bateu-lhe com o bastão. O monge protestou:
        "Eu estava justamente indo fazer-lhe minha reverência, por que esse golpe?"
        "Se eu esperasse que você abrisse a boca, o golpe não teria, absolutamente, serventia alguma", disse Tokusan.
Kotei foi um discípulo do Kisu Chijo de Kosan. Um monge de Kassan veio até ele e, quando ele estava fazendo suas reverências cerimoniais, o mestre bateu-lhe. O monge falou: "Estou aqui para receber sua instrução específica, por que esse golpe, Mestre?" Assim dizendo, ele se curvou
novamente.. O mestre aplicou-lhe outro golpe e levou-o' para fora do mosteiro.
O monge voltou a Kassan, a quem fez um relato completo de sua entrevista com Kotei. Disse-lhe Kassan: "Você entendeu Kotei?" "Não, Mestre", respondeu o mongei Logo após, Kassan observou: "Foi sorte que você não tenha entendido; se isso tivesse acontecido, eu ficaria mudo."
Quando Chosa estava apreciando a lua com um de seus irmãos monge, Kyosan do século IX, este último observou: "Cada um possui isto, e é uma pena que não saibam utilizá-lo de modo completo." Chosa falou: "Posso fazer com que você utilize isto?" Replicou Kyosan: "Tente, ó monge irmão." Em conseqüência disso, Chosa deu um forte pontapé em Kyosan, derrubando-o. Levantando-se do chão, disse Kyosan: "ó meu Irmão monge, você não é realmente como um tigre selvagem."
A literatura Zen narra um grande número de tais relatos que podem assustar, afastando-os, alguns dos não-iniciados. Eles podem pensar que o Zen é apenas uma forma de disciplina cheia de rudeza e de irracionalidade e, provavelmente, muito daquilo é puro contra-senso. A afirmação do Zen de que é a essência do ensinamento budista pode ser mera fanfarronice. Essa crítica talvez estivesse certa se a percepção do crítico não pudesse ir além da superficialidade. Mas o fato histórico é que o Zen tem florescido desde o seu estabelecimento na China, há mais de mil anos, e que ele ainda é, no Japão, uma ativa força. espiritual na formação de sua cultura. É possível concluir, depois disso, que pode haver algo vital no Zen que apele diretamente para as nossas mais profundas experiências espirituais.
II
 
Outro fator singular no método Zen de ensinar é o que é conhecido como mondo. O discípulo faz uma pergunta (mon) e o mestre responde (to ou do), mas às vezes é ao contrário, e a resposta não se dá sempre em palavras. Pois esse perguntar e responder dá-se na região do pensamento concreto, e não da abstração e do raciocínio. Não há nenhuma troca extensa de palavras entre o mestre e o discípulo, nenhuma argumentação discursiva. O mondo geralmente pára com a sentença do mestre, declaração epigramática, ou sua exibição de força física, e nada leva a um sério desenvolvimento de sutilezas lógicas. Se o discípulo não compreender o mestre imediatamente, ele bate em retirada, e esse é o fim da entrevista pessoal.
O Zen nunca se encarrega da conceitualização. Ele vive numa percepção intuitiva ou estética e sua verdade sempre é demonstrada por meio de contato pessoal, o que é a significação do mondo. O golpear derrubando, ou esbofetear a face, ou vários outros atos de "rudeza" ou violência são o resultado natural de contato pessoal. Pode parecer estranho que o entendimento do Zen surja desses feitos, mas, visto que o Zen não se baseia num raciocínio lógico e numa persuasão conceitual, seu entendimento deve vir da própria experiência pessoal. E deve ser compreendido que a experiência pessoal significa não apenas a experiência do mundo dos sentidos, mas também a daquele dos acontecimentos que tomam lugar no domínio psicológico de uma pessoa.
Rinzai (-867) fez certa vez um sermão para o efeito seguinte: "Há um homem verdadeiro sem um título na massa de sangue vermelho; ele sai e vai através dos portões dos sentidos. Se você ainda não o testemunhou, olhe, olhe!"
        Um .monge dirigiu-se a ele perguntando: "Quem é esse homem verdadeiro sem um título?"
        Rinzai desceu de sua cadeira e agarrou seu cofre ordenando: "Fale, fale!"
O monge hesitou e depois disso exclamou: "Que espécie de avarento sujo é esse homem verdadeiro sem um título!" Assim dizendo, Rinzai voltou para seu quarto.
        A idéia de um "homem verdadeiro sem um título" é bastante clara, bastante geral; mas quando um testemunho de sua presença em cada um de nós é reclamado, Rinzai lança mão não da verbosidade, mas de um encontro pessoal direto. É dada ao indagante a tarefa de testemunhar sua existência tal como se apresenta. Não há dialética abstrata aqui, e sim um fato de experiência viva, repleta de carne e sangue. Quando não podia tê-lo do monge cuja mente estava trabalhando no plano da elaboração intelectual, ele empurrava-o para fora e chamava-o de velho avarento sujo. "O único homem verdadeiro sem nenhum título" virou do avesso para ser um desprezível pedaço de madeira. Este é o destino do racionalista. E é somente nas mãos do mestre do Zen que a "folha insignificante da grama na estrada passa a brilhar na cor dourada do Buda de dezesseis pés de altura." Rinzai, isto é,
o Zen exige isso de cada um de nós.       .
A esse respeito, pode-se dizer que Cristo pertence à. escola do Zen-Budismo, quando ele declara que "A não ser que vós comais comigo a carne do filho do homem o bebais seu sangue, vós não tereis vida em vós" (João, VI, 53). O que quer que o filósofo ou o espiritualista possam
dizer sobre nossa existência corporal, nós temos fome quando não comemos, sede quando não há o. bastante para beber - esses são fatos concretos da experiência humana. Todos nós somos feitos de carne e sangue, e é nisso que a verdade do Zen vê a luz.
Por esse motivo, o mestre do Zen descreve-o como sendo um pote de óleo fervendo. Esta é a autêntica experiência de cada estudante do Zen, pois ele tem de mergulhar seus dedos nele, prová-lo na essência do seu coração. Novamente descreve-se o Zen como a vida de "sete jornadas e oito tombos" o que significa um estado de confusão indescritível; a idéia é que se alcança o Zen somente depois de atravessar uma série de crises mentais e espirituais. Aprender a verdade do Zen não é uma ginástica espiritual fácil. Tem-se de comer a própria carne e beber o próprio sangue.
A propósito desse comentário, acrescentarei algumas palavras. Quando se diz que a vida espiritual surge do fato de se comer a carne de Cristo e de beber seu sangue, isso pode soar grosseiramente materialista, mas, do ponto de vista do Zen, é um grande engano fazer distinção entre a mente e o corpo, e considerá-los irrevogavelmente diferenciados um do outro. Esse ponto de vista dualístico da realidade tem sido um grande bloco vacilante para o nosso
'Correto entendimento da verdade espiritual.
As observações seguintes podem ajudar o leitor a esclarecer o ponto de vista do Zen em relação a uma concepção advaitística [não-dualistica] da realidade.
        Quando perguntaram a Chosa, um disCípulo de Nansen (748-834): "O que é o Buda?" ele replicou: "Ele não é outro se não este corpo físico nosso." É significativo que Chosa tenha falado do corpo físico (rupakaya) que se identifica com o Buda, e não a mente, ou a alma, ou o espírito que popularmente apresentamos para identificação nesses casos. Não se associa, em geral, a condição do Buda à corporalidade; é algo um tanto à parte de nossa presença material que comumente relegamos a uma ordem mais baixa da existência. Chosa colocou seu dedo no ponto mais vulnerável do nosso racionalismo de senso comum. Um dos objetos do treinamento do Zen é esmagar a idéia dualística da mente e corpo. O mestre é enfático a esse respeito. O seguinte trecho é citado na Transmissão da Lâmpada (fasc. X) :
 
Não há aqui nenhum muro de obstrução que resista a seu modo de fazer,
Não há nenhum vácuo que permita livremente sua passagem:
Quando seu entendimento alcançar este ponto,
A mente e o corpo recuperam sua identidade primária própria.
A natureza do Buda manifesta-se de um modo muito conspícuo.
Somente aquele que se demora com a natureza é que não a vê:
Ao estarmos iluminados quanto à individualidade de todos os seres,
Que diferença há entre minha face e a face do Buda?
Alguém perguntou a Chosa: "Como podemos transformar a montanhas, rios e a grande terra, e reduzi-los em sua Individualidade?"
Retrucou o mestre: "Como transformar essa individualidade e fazer com que volte a ser montanhas, rios e a grande terra?"
 
 
 
 
 

sexta-feira, 24 de maio de 2013

NAVIO ADAMASTOR


"Em 1854, o Visconde de Mauá bloqueava as nações estrangeiras de navegarem o Amazonas e resistiu até sua falência. O Santa Maria de la Mar Dulce cruzava com o Adamastor poucos meses depois de ter nascido José e para onde, a fim de salvá-lo da malária, que dizimava as crianças da região, foi ele trasladado e transbordado com sua mãe, seguindo para Inglaterra, e de lá para Estrasburgo, onde foi deixada a criança com o tio Levy, com quem morou os anos de sua infância, primeiro na Praça Kleber n0 9, depois em cima da Pharmacie du Dome, até que, em 1894, é trazido de volta ao Manixi, onde fica mais 3 anos até partir de vez, em 97, para Paris, onde morou no Boulevard Saint Germain, e de onde só retomou com 15 anos de idade, em 1905, pouco antes do ataque dos Numas, que foi em meados de novembro. Em 1906 foi de regresso para Paris, para os estudos" O AMANTE DAS AMAZONAS.

UM CORAL DE LIRAS

Um coral de liras










(Foto de M. Furtado)

Um coral de liras


Rogel Samuel


Começa pela música de Mahler, a quinta sinfonia, que nos faz sonhar, que nos mergulha nas profundezas de uma sonoridade não sei por que azul, para mim azul, e Mahler nos conduz aos melhores poemas de V. Solteiro, aos seus encantos sonoros e imagísticos, como nessa "Escrevedeira...", onde um pássaro toca o seu "lírico canto, sulca a sua rejubilante melopéia", doce como o néctar das maduras amoras, toca com seu bico afinado e agudo, pontiagudo como um flautim "revolteando o vazio" do ar, as vibrações do ar, cordas da sua fuga, da suas partituras, o poema de V. Solteiro ensombra as grades que aprisionam os homens e os faz livres, como livre é o seu pássaro, como livre são os acordes daquela sinfonia de Mahler... sinfonia que lembra Solti, que lembra "Morte em Veneza"... onde morremos de felicidade...





Tecelã das velas do lírico
canto
a escrevedeira
sulca
na sua rejubilante melopeia
um coral de liras


O seu fino e pontiagudo bico
flautim revolteando o vazio
vibra no ar
as cordas da fuga


Doce como o néctar
das maduras amoras
a frutuosa harpa que tanje
esculpe no xisto
um umbral
de deslumbramento


Prelúdio de novas partituras
o brilho do seu trinado
ensombra as grades
que agrilhoam
o peito dos homens


Poema de V. Solteiro
http://aarquitecturadaspalavras.blogspot.com/

quinta-feira, 23 de maio de 2013

DESFAMILIARES - de Leila Miccolis

Convite para o lançamento do "Desfamiliares" de Leila Miccolis (obra completa de 1965 a 2012), na Livraria da Travessa de Ipanema, (R. Visconde de Pirajá, 572 - tel.: 3205-9002), às 19 horas, dia 7 de junho.

O ARCO DO AZUL INFINITO

O arco do azul infinito


Rogel Samuel




O arco do menino é de plástico, é de ouro, ferro, prata, e quem o sabe é de sonhos, de flores, de estrelas, de algas, de claridade do sol... mas não são de pássaros, nunca nunca, pois os pássaros pousam no ar do arco quando o menino dorme, no ar do arco das árvores como guerreiros cansados de azul, do azul silêncio do espaço infinito...




O MENINO E O ARCO

(Enviado por Amélia Pais)

O menino tem um arco.

É de plástico.

(Mas é de ouro
ou de ferro
ou de prata
- quem o sabe?)

E com ele
o menino colhe flores
e estrelas e algas
da funda claridade.
Nunca pássaros.


Esses, pousam no arco
enquanto o menino dorme
sob as árvores,
como um guerreiro cansado.

Glória de Sant'Anna, em Um Denso Azul Silêncio

* Nascida e falecida em Portugal, viveu longos anos em Moçambique

quarta-feira, 22 de maio de 2013

A VIDA TEM POUCOS PRAZERES

A VIDA TEM POUCOS PRAZERES

 
Rogel Samuel
 
         Sim, poucos prazeres tem a vida. Um é degustar o chá da tarde na companhia da Doutora X na Confeitaria Colombo. Pena que a Doutora seja mulher tão difícil, e ocupada. Iria eu todas as tardes lá, à Colombo, se pudesse ela ir comigo. Não pelo que ali se come: um frugal chá preto, com “torrada Petrópolis”. Chá com leite, à moda indiana e nepalesa. Mas pela conversa amena, os olhares vagos, a decoração da casa. Pelo que aquela Confeitaria Colombo é, desde 1894, com seus salões “art nouveau”, os grandes espelhos belgas, as vitrines e molduras de jacarandá, as bancadas de mármore italiano, o mobiliário. O chá servido em porcelana branca, com o logotipo brasonado “CC” e friso dourado. Os talheres antigos, há poucos anos ainda de prata. Tudo do que gosto, do luxo antigo, do ar aristocrático, do lugar onde, em 1920, houve um banquete para o Rei Alberto, da Bélgica, e em 1968 para a rainha Elizabeth II, da Inglaterra. Lugar freqüentado por Bilac, cujos poemas da “Tarde” me fazem sonhar. Ali estiveram Getúlio e Juscelino; Lacerda e Negrão de Lima, este tão elegante governador. E eu espero que meu querido Presidente Lula, um dia, venha ali tomar o seu chá das cinco, agora que está sete quilos mais magro, ele que deve ser, no futuro, reconhecido como o melhor presidente do Brasil. Sim, amo aquele lugar à moda antiga, amo aqueles salões de um requinte de luxo do passado, do decadente passado, o que me lembra Manaus, o que acende minhas ascendências, meu orgulho de brasileiro meio índio, pois todo índio é orgulhoso, altivo e nobre; da aristocracia indígena do Amazonas, onde os índios eram cavalheiros nobres. Sim, a vida tem poucas delícias, o paraíso não é aqui. Não. Mas na Colombo ainda estamos em paz, apesar da péssima acústica daquele enorme espaço. É muito barato. Gasto pouco mais de dez reais, e estou como um lorde, ou como um velho amazonense da Manaus da época de meu avô Maurice, ainda que não vestindo a casaca, o colete e o chapéu. Se quiser gastar e almoçar, peço o “Filet Mignon à Duchesse”, quem sabe o “Paillard Duque de Windsor”, ou os “Mignonnettes à Dijon”. Também existe o “Filet de frango à Cordon Bleu”. O “Peru à Bilac” tem úmidas fatias de peito de peru, acompanhadas por deliciosa farofa de frutas e risoto ao champagne. Como sobremesa podemos ter a “Bavaroise de Damasco”, a “Charlotte”, a “Pêra Belle Hélène”, ou umas “Gaufrettes”. Sou um ser deslocado, ali, à moda parnasiana, vivo naquele mundo construído e selado por um outro lado e modo, e, se tivesse talento lingüístico, pela imaginação poética, gostaria transformar o simples chá da Colombo numa especial página, como aquelas saídas da pena de Proust. Porque a Confeitaria ainda ostenta o seu deslumbramento, os seus múltiplos reflexos, as quinquilharias de seus espelhos de cristal, as suas janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de prata rutilante numa edificação de dois andares, de procedimento art-nouveau, cingida de finos gradis torneados em convulsionadas e violentas volutas de gavinhas elegantes de efeminado contorno, travestidas, descomedidas, decoradas pela curva da escadaria de mármore, torta e enfática, escura e em pleno gozo das réplicas vilas européias, de um poder surdo e solipsista, ágil e terrível, que se expressa nas paredes de estuque e pinturas com irisações de um falso ouro esverdeado e escuro, na entrançadura de seus ritmos de galhadas e folhagens de uma vegetação alucinada e japonesa subindo por aquelas formas até o teto multirefletido nos visotados espelhos e luminosos lustres, e nas flores estilizadas de modo a evocar a lembrança de algum exótico prazer. Por isso amo aquele lugar e os que ainda nos restam, poucos, como o Bar Luiz e o Lamas. Talvez seja a idade. Talvez a insanidade.