sexta-feira, 19 de junho de 2020

A PANTERA REESCRITO

(FOTO ALBERTO CESAR ARAUJO)

A PANTERA - ROGEL SAMUEL

Não, não há nada; não sei mesmo há quanto tempo estou aqui, perdi a consciência do tempo, da vida, do espaço, e nessa rede em que vivo, nessa letargia em que vivo, nessa calma apática e tristeza, no meio dessas imensas árvores, no entrecortar dos gritos de estranhos pássaros silvestres que silvam fortemente em minha frente o lago verde se abre, se estende, se alarga, sinistro, sem nome, imóvel, enorme, trágico, no ar, naquele silêncio morno, naquele calor úmido, naquele mormaço tardio, mortal, à espera da morte, a espera da minha morte.

Na minha frente vejo a Jara, silenciosa, misteriosa, amante, possível inimiga. Não sei por que os guerreiros indígenas ordenaram que ficasse aqui. 

Depois voltaram e ela conversou com eles, que se foram, desapareceram sem olhar para mim. Eu vejo Jara na minha frente, pescando com uma lança. Por que está aqui? Talvez para alertar-me da aproximação do exército inimigo. Mas para que aqueles índios? E eu já não penso, espero a morte, estou fraco. Será que virão os inimigos que espero? Talvez aqueles mesmos índios estejam planejando matar-me. Talvez sejam eles o inimigo. Mas minha falta de reação, a apatia, a indiferença, Jara permanece em paz. E calma. Nem fala comigo.

A PANTERA (2) - ROGEL SAMUEL

Eu não sei há quantos anos estou nesta casa. Chovia dentro, Jara a reforçou. Uma árvore agora a cobre, como numa rede de ramagem ampla. À noite, entretanto, sentimo-nos ameaçados. Os animais noturnos nos espiam. O cântico da mãe da lua nos aterroriza. É o urutau, que canta três oitavas lamentosas. Mas eu consigo dormir, na minha rede bem alta. O silêncio é amplo negro enorme. As estrelas são vivas. Felizmente não há mosquitos nesse rio. Mas um frio intenso vem dentro do calor da noite. Ventos sinistros vêm do alto dos Andes. O vento vem sobre o leito do rio, sob as estrelas.

Esta noite, experimentamos novamente a sinistra visita noturna da mesma pantera negra.  Sinto que dormimos sobre assombrosas minas do Eldorado. Ouço gritos noturnos. Miracã-uera,  o cemitério. Sinto que moro em cima de um grande cemitério. Mas o Eldorado nos assusta, no escuro e no miúdo. Por aqui, a floresta é um grande mapa. Nunca ninguém, nenhum ser humano, nenhum civilizado pisou aqui. Jara não fala, é uma companhia de nada, silenciosa. Não sei de onde veio, nem quem é. Às vezes, temo que ela pode matar-me, enquanto durmo. Às vezes fazemos amor. Ela compreende o meu estado, a minha depressão. É quando acende uma espécie de cachimbo de ipadu, uma espécie de coca, e sopra na minha face. Me obriga a mascar, pondo na minha boca algumas folhas amargas, misturadas com a cinza de seu cachimbo. São cinzas da palmeira motaçu, e um cipó amargo, que chama de Tchamaru. Essa mistura me revigora, e eu sinto uma embriaguez deleitosa, e às vezes adormeço em seus braços.

- Ipadu! Ipadu! – diz ela. Ipadu, motaçu, Tchamaru!

E eu me reconheço, me recupero.

Mas ela é a desconhecida. Como aqui não há ninguém mais, nenhuma censura, aqui eu a amo. E ela canta uma sua canção selvagem. Canção de guerra, de morte. Ela pressente o perigo. O incompreensível perigo.

A PANTERA (3) - ROGEL SAMUEL

Porque Jara me impeliu como queria não sei o que, saímos dali e pelo caminho entramos alto e selvagem, naquele ar sem estrelas, naquele mundo sem nome e sem traço, na morte acreditando que eu colhia de um largo rio à margem dirigindo, e Jara me fez parar e então, baixando os olhos fui vendo uma flexa especada, mas dela, serena, o gesto me fazia, sem vozes, sem blasfêmia, arco em punho:

- Por aqui, Jara dizia, e enquanto assim dizia a terra estremeu num único solavanco e foi tão forte o movimento que do medo da terra lacrimosa rompeu um vento e um clarão avermelhado, que como de um sono profundo fui tirado por aquele hórrido estampido.

Mas a Jara perscrutou por saber onde se achava e a tudo no lugar sinistro atenta.

- Temos de partir, nos afastar, - me disse ela, na sua linguagem selvagem, da força daquele vale tenebroso:

- Eia! – disse ela, nos afastemos da treva do mundo – ela me disse enfiando-se por uma descida: “Eu descerei primeiro, tu segundo”. Tornei-lhe, a palidez sua notando:

- “Como hei-de ir, se és de espanto dominada, quando segurança e conforto estou de ti esperando”?

- “Vamos, - disse-me ela, sem se deter – essa jornada exige pressa, porque o abismo a estreitar-se já começa -  e escutei, vibrando no ar, do espaço inteiro os murmúrios longínquos de bombas que estrugiam, e eu vi que no meio da selvagem terra nós fugíamos da guerra, sem parar, pela selva penetravamos e longe ainda divisando o hemisfério das trevas que clarões alumiavam, dali distante de onde nos achávamos, mas não tanto que não discerníssemos o céu súbito brilhante e o rumor que nos chegavam, como que saíssemos de um fúlgido castelo de aspecto majestoso cujos altos muros eram cercados por sombras inimigas e malévolas.

Nenhum comentário: