quarta-feira, 30 de novembro de 2016

A LUZ IRROMPE ONDE NENHUM SOL BRILHA



A LUZ IRROMPE ONDE NENHUM SOL BRILHA

DYLAN THOMAS

A luz irrompe onde nenhum sol brilha;
onde não se agita qualquer mar, as águas do coração
impelem as suas marés;
e, destruídos fantasmas com o fulgor dos vermes nos cabelos,
os objectos da luz
atravessam a carne onde nenhuma carne reveste os ossos.

Nas coxas, uma candeia
aquece as sementes da juventude e queima as da velhice;
onde não vibra qualquer semente,
arredonda-se com o seu esplendor e junto das estrelas
o fruto do homem;
onde a cera já não existe, apenas vemos o pavio de uma candeia.

A manhã irrompe atrás dos olhos;
e da cabeça aos pés desliza tempestuoso o sangue
como se fosse um mar;
sem ter defesa ou protecção, as nascentes do céu
ultrapassam os seus limites
ao pressagiar num sorriso o óleo das lágrimas.

A noite, como uma lua de asfalto,
cerca na sua órbita os limites dos mundos;
o dia brilha nos ossos;
onde não existe o frio, vem a tempestade desoladora abrir
as vestes do inverno;
a teia da primavera desprende-se nas pálpebras.

A luz irrompe em lugares estranhos,
nos espinhos do pensamento onde o seu aroma paira sob a chuva;
quando a lógica morre,
o segredo da terra cresce em cada olhar
e o sangue precipita-se no sol;
sobre os campos mais desolados, detém-se o amanhecer.

( tradução: Fernando Guimarães)

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terça-feira, 29 de novembro de 2016

COMO FOI

(foto de R. SAMUEL)


COMO FOI
  

Rogel Samuel


Eu o conheci em Katmandhu, Nepal, no dia 2 de Janeiro de 1994. 
Não esqueci a data, que é meu aniversário. Eu tinha chegado do Brasil para encontrar o Lama Lobsang Tenpa, que tinha estado conosco por dois anos e meio. Lobsang Tenpa morava no mosteiro de Kopan, nas montanhas. 
Minha viagem tinha sido um inferno. Era a primeira vez que eu ia ao Oriente.  Trazia três pesadas malas: a minha, a outra, cheia de oferecimentos para os Lamas  (tinha até quilos de pedras coloridas) e a terceira, dos livros do lama tibetano, que era a mais pesada. Saí do Rio e cheguei em Amsterdan no dia do natal. 
Uma confusão no aeroporto, pois era de noite, eu queria colocar as malas num porta-malas para não levá-las para o hotel. Triste idéia, pois o aeroporto é uma cidade, levei uma hora para descobrir onde era e arranjar as moedas pra poder abrir o armário. Cometi outro erro: meu sobretudo ficou ali. Quando cheguei do lado de fora a temperatura estava 
vários graus abaixo de zero. 
No dia seguinte fui taxado com uma grande multa de excesso de bagagem e viajei para New Delhi. Ali novos problemas: atravessei a "fronteira" do Aeroporto, pois tinha visto da Índia, e a polícia não me deixou voltar, já  que meu vôo para Katmandhu era no dia seguinte. Acontece que eu pretendia  ficar no Aeroporto, pois tinha pouco tempo para um hotel e o 
tráfego ali é terrível. Vi-me na rua, cercado de mendigos que pediam e de meninos que puxavam minhas malas e roupas, oferecendo-se para carregá-las (ou talvez sair correndo com elas, um para cada lado). 
Enfim descobri um canto no Aeroporto onde ficar. Tinha mendigos ali também. Trauma de quem mora no Rio (pois a Índia é muito mais segura). 
Outro problema: como ir ao banheiro, abandonando as malas? Não havia carrinho. Enfim descobri duas jovens americanas com quem deixei as malas. O Aeroporto de Nova Delhi melhorou muito, depois. 
A chegada em Katmandhu foi outra odisséia. Mas não conto. 
Naquele mesmo dia falei do meu hotel com o Lama Lobsang Tenpa pelo telefone, tomei um táxi e fui levar seus livros pela pior estrada que vi. Fiquei ali umas horas, o táxi esperando (era barato), e no dia seguinte mudei-me para o mosteiro de Kopan. 
Ali quase morri de frio. Muito abaixo de zero era a cabana onde me alojaram, sem calefação. Uma noite acendi todas as velas que pude, perto de mim. Mas algo me dizia que não era aquilo. Tive sonhos estranhos. Eu tinha de sair dali. 
Um dia o Geshe (Lama) disse para mim: vá, veja os lugares importantes lá fora. O abade me perguntou: "Você pensa em ficar aqui?" Enfim, eu era gentilmente expulso do primeiro mosteiro budista onde pretendia permanecer em retiro. 
Assim, no dia 2 de janeiro, abandonando minhas complicadas  malas  (se você  for ao Oriente não leve nada, apenas uma bolsinha ou mochila), desci a montanha num caminhão cheios de monginhos que iam a um pic-nic e faziam grande algazarra. Desci em Boudanath, perto da grande estupa de Gerukansor. Aluguei um quarto no famoso Lotus Guest House. Entrei numa loja, disposto a bisbilhotar. Era uma loja de artigos de Dharma: estátuas de Bhuddhas etc. Ali conheci o dono, que ficou meu amigo e que sempre reencontro quando volto lá. Ele me disse: "You must see the King of Sakyas!". ("Você tem de ver o Rei dos Sakyas!"). 
Eu não tinha a menor idéia de quem era aquele "Rei". Já que por ali há vários Reis,  pensei tratar-se de um deles. Subi a rua indicada pelo meu amigo. No mosteiro Tharlan, mil monges estavam do lado de fora, ao redor. 
Era um espetáculo muito bonito de ver. A  Gompa estava fechada, mas às vezes  a grande porta se entreabria e os monges se prosternavam, em reverência. Eu sentia que lá dentro estava alguém da máxima importância. 
Eu comecei a tirar fotos. Sempre gostei. Já ganhei até um prêmio nacional de  fotografia. Já tive laboratório em casa. Comecei a clicar, pra todos os lados. Havia uma portinha lateral aberta. Me deu uma curiosidade de ver lá dentro. Entrei devagar. Parei. Ninguém me dizia nada. Atravessei e... eis que me vejo dentro do grande mosteiro vazio e no seu centro, sentado em  meditação, na minha frente, Sua Santidade 
Sakya Trizin que se estava preparando para conceder a primeira iniciação da "Coleção de todas as sadhanas" (Dun Tab Kun Tub). 
Foi um choque. Fiquei estarrecido, imóvel. Olhou para mim, e me cumprimentou, com a cabeça. Naquele momento eu soube que aquele era o meu mestre, em pessoa. 
Fiquei dois meses ali, com ele, de manhã à noite, recebendo a Coleção das sadhanas, que estava começando. 
Foi assim. 
  
  

VIGIAR E PUNIR


(LIVRO ESSENCIAL PARA COMPREENDER O QUE SE PASSA NO BRASIL)

"O poder sobre o corpo, por outro lado, tampouco deixou de existir totalmente até meados do século XIX. Sem
dúvida, a pena não mais se centralizava no suplício como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perda de um bem
ou de um direito. Porém castigos como trabalhos forçados ou prisão - privação pura e simples da liberdade - nunca
funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física,
masmorra. Conseqüências não tencionadas mas inevitáveis da própria prisão? Na realidade, a prisão, nos seus dispositivos
mais explícitos, sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico. A crítica ao sistema penitenciário, na primeira
metade do século XIX (a prisão não é bastante punitiva: em suma, os detentos têm menos fome, menos frio e privações
que muitos pobres ou operários), indica um postulado que jamais foi efetivamente levantado: é justo que o condenado
sofra mais que os outros homens? A pena se dissocia totalmente de um complemento de dor física. Que seria então um
castigo incorporai?"

"Permanece, por conseguinte, um fundo "supliciante" nos modernos mecanismos da justiça criminal - fundo que não está inteiramente sob controle, mas envolvido, cada vez mais amplamente, por uma penalidade do incorporal.
......................
Essa dupla ambigüidade da confissão (elemento de prova e contrapartida da informação; efeito de coação e
transação semivoluntária) explica os dois grandes meios que o direito criminal clássico utiliza para obtê-la: o juramento
que se pede ao acusado antes do interrogatório (ameaça por conseguinte de ser perjuro diante da justiça dos homens e
diante da de Deus; e ao mesmo tempo, ato ritual de compromisso); a tortura (violência física para arrancar uma verdade
que, de qualquer maneira, para valer como prova, tem que ser em seguida repetida, diante dos juizes, a título de confissão
"espontânea"). No fim do século XVIII, a tortura será denunciada como resto das barbáries de uma outra época: marca de
uma selvageria denunciada como "gótica". É verdade que a prática da tortura remonta à Inquisição, é claro, e mais longe
ainda do que os suplícios dos escravos. Mas ela não figura no direito clássico como sua característica ou mancha. Ela tem
seu lugar estrito num mecanismo penal complexo em que o processo de tipo inquisitorial tem um lastro de elementos do sistema acusatório; em que a
demonstração escrita precisa de um correlato oral; em que as técnicas da prova administrada pêlos magistrados se
misturam com os procedimentos de provas que eram desafios ao acusado; em que lhe é pedido - se necessário pela coação
mais violenta- que desempenhe no processo o papel do parceiro voluntário; em que se trata em suma de produzir a
verdade por um mecanismo de dois elementos - o do inquérito conduzido em segredo pela autoridade judiciária e o do ato
realizado ritualmente pelo acusado. O corpo do acusado, corpo que fala e, se necessário, sofre, serve de engrenagem aos
dois mecanismos; é por isso que, enquanto o sistema punitivo clássico não for totalmente reconsiderado, haverá muito
poucas críticas radicais da tortura.(15) Com muito mais freqüência, simples conselhos de prudência:
O interrogatório é um meio perigoso de chegar ao conhecimento da verdade..." (FOUCAULT. VIGIAR E PUNIR)

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

A floresta do fim do mundo

A floresta do fim do mundo






A floresta do fim do mundo


Neuza Machado



Eis aí o espaço da ficção traduzido como a barca de Caronte a carregar o “coração triste” de quem narra, juntamente com os “mortos” de sua história extra-sensorial. Mas não é simplesmente uma “água melancolizante”, como a de Edgar Alan Poe, que preside a obra assinalada; é antes de tudo a atormentada água do sofrimento do povo primitivo do Amazonas, aquela que marcou a gênese de sua própria realidade sócio-espiritual (do povo primitivo, bem entendido). O narrador pós-moderno, em sua ativada solidão citadina, intelectualizada e contemplativa, socialmente distanciado do viver primitivo, meditou os “rios de sangue” que compuseram a realidade histórica do Amazonas. E, pela meditação, eis aí/aqui a mitológica barca de Caronte navegando insolitamente e ficcionalmente em direção a um espaço ensoberbecido - o Manixi - e ao seu rio da morte, o Igarapé do Inferno.



“A morte está nela”, na barca de Caronte. “A água leva para bem longe, a água passa como os dias”, diz Gaston Bachelard. A água mítica de Ribamar (do ribeiro ao Oceano), o primeiro personagem-narrador, para se livrar definitivamente de sua histórica dor - “matar” a dor que o consumia -, obrigou-se a ir ao fim do mundo, daquele mundo mítico onde se localizava o Igarapé do Inferno. Eis aqui o verdadeiro embate, embate infernal, para enterrar os mortos dignamente, fossem eles índios ou brancos ou mestiços, enterrar para sempre um passado histórico desvalorizado. Oh, “terra sem história”, como disse Euclides da Cunha. Mas, Euclides da Cunha não conheceu a dor de quem mergulhou a própria “taça de prata dourada na fonte que borbulhava” e viu “ela se encher de lágrimas”, se encher de “sangue”. “Quando o coração está triste, toda a água do mundo se transforma em lágrimas”, disse Gaston Bachelard. A narrativa ficcional pós-moderna, entrópica, é demonstrativa da tristeza que assolava o narrador do final do século XX, século de guerras e mortes inglórias, mas levando seus “mortos” em uma “barquinha de nada”, à moda daquele “filho” roseano, de “A terceira margem do rio”, que carregou, durante toda a sua existência, o seu velho pai/Sertão no coração.

In: O fogo da labareda da serpente (Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel)

sábado, 26 de novembro de 2016

Jorge Luis Borges - O Punhal



O Punhal


Jorge Luis Borges



A Margarita Bunge



Numa gaveta há um punhal.

Foi forjado em Toledo, em fins do século passado; Luis Melián Lafinur deu-o a meu pai, que o trouxe do Uruguai; Evaristo Carriego teve-o uma vez na mão.

Os que o vêem têm de brincar um pouco com ele; percebe-se que há muito o buscavam; a mão se apressa em apertar o punho que a espera; a lâmina obediente e poderosa folga com precisão na bainha.

O punhal outra coisa quer.

É mais que uma estrutura feita de metais; os homens o pensaram e o formaram para um fim muito preciso; é, de algum modo, eterno, o punhal que na noite passada matou um homem em Tacuarembó, e os punhais que mataram César. Quer matar, quer derramar brusco sangue.

Numa gaveta da secretária, entre borradores e cartas, interminavelmente sonha o punhal seu singelo sonho de tigre, e a mão se anima quando o dirige porque o metal se anima, o metal que em cada contato pressente o homicida para quem os homens o criaram.

Às vezes, dá-me pena. Tanta dureza, tanta fé, tanta impassível ou inocente soberba, e os anos passam, inúteis.


(Borges, Jorge Luís, Nova antologia pessoal, São Paulo: Difel. 1986)

BRILHANTE


CIDADES

Cidades - Rogel Samuel

Desta janela vejo a torre da capela, entre as árvores, no sopé da montanha. As magnólias reverdecem. O resto é floresta. Que será aquela igrejinha no meio das árvores da floresta ? Uma grande torre de nuvens se ergue no céu, parecendo mais alta do que as mais altas montanhas. Um aeroplano cruza o espaço. Em Katmandhu, quando o céu está limpo e claro, se podem ver as brancas e grandes geleiras dos Himalaias, ao longe, como uma dentadura de reluzente cristal. Eu quero muito voltar para lá, rever Boudanath e Thamel. Há cidades incorporadas na nossa substância mental : Manaus, Sydney, Katmandhu. E esta Poços de Caldas. As cidades são nossas personalidades edificadas em pavimentos e ares. Um dia, um amigo disse, em Manaus : « Amanhã o R. vai-se sentir em casa » porque eu voltava para Rio. Mas eu não consigo ver o Rio dentro de mim, senão quando estou muito longe. Aí me ocorrem imagens, lembranças, músicas. Marchas de carnaval. A estupa de Jerukhanshor, em Boudanath ; o Teatro Amazonas, em Manaus; a casa do Chris, em Portland; a UBC, em Vancouver. Onde eu realmente gostaria de estar? Não sei, não tenho raízes profundas. Um dia Lothar, em Frankfurt, me disse que ele era cidadão das cidades. Ele era da Mendelshonstrasse, onde morava. Em Manaus, morei na rua Sete de Setembro. Pelas janelas dos fundos se via o Rio Negro. Havia um gavião que morava num buraco perto do telhado da edificação de uma velha fábrica. Todas as tardes, ao por do sol, eu ia de binóculo vê-lo. Parecia uma águia romana, desafiando o espaço, de asas abertas. Aquela fábrica datava da época da borracha. Ficava nos fundos do cinema que havia nas margens do igarapé, creio que Cine Éden, ex-Alcasar, hoje igreja evangélica. As ruas guardam também muito sofrimento, camadas de lembranças acumuladas e mortes. Como os trechos escuros de Paris. Qual a cidade mais alegre ? Depende de cada um, de suas lembranças. E das magnólias.
(FOTO DE R. SAMUEL)

AS ONDAS DO TEMPO DESTE FIM DE ANO

AS ONDAS DO TEMPO DESTE FIM DE ANO














AS ONDAS DO TEMPO DESTE FIM DE ANO



Rogel Samuel




Que a última estrofe de «O cemitério marinho» de Paul Valéry assim canta:

«Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas! »

Uso a extraordinária tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia.
O poema enorme, difícil.
Desde que o li, pela primeira vez, há mais de quarenta anos, tento penetrar no mar de seu sentido. Às vezes, parece entender-se. Outras vezes, inatravessável é o seu mar. Mas sempre o sinto, o que importa. O que importa é sentir um poema. Não «interpretá-lo». Os intelectuais matam o poema, intelectualizam-no. Por isso Barthes foi tão bom crítico. Barthes fazia o texto falar, deixava-o falar-se.

«Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
um longo olhar sobre a calma dos deuses! »

Seja como for, Valéry nos abre à imaginação o grande oceano da morte. Mas «recomeçando sempre». Sempre, «sobre a calma dos deuses».
Sei que não é algo para ser lido no Ano Novo, mas que tema mais religioso do que a morte neste túmulo do oceano de «tanto diamante de indistinta espuma », onde «quanta paz parece conceber-se!».

«Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria. »


O poema tem ímpetos de infinito, abre-se para a eternidade, «massa de calma e nítida reserva»:

«Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!»

Valery disse que seu poema é sua «poesia verdadeira», mesmo as passagens mais abstratas. Disse que via ali uma espécie de «lirismo» , algo «abstrato mas de uma abstração motriz mais que filosófica».


Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Diz da vida, do amor, da ordem e desordem da vida e do amor, do mar e do sol, das colinas das ondas, da chave do mistério do «mar de nossa conversa», como dizia Cabral:


Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

É uma reflexão sobre o tempo:


Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade - cheia de poder -
Eu me abandono a esse brilhante espaço,
Por sobre as tumbas minha sombra passa
E a seu frágil mover-se me habitua.


É uma reflexão sobre os movimentos das ondas da vida:

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!... Mas devolver a luz
Supõe de sombra outra metade morna.

O poema foi publicado no número de junho de «La Nouvelle Revue française», mas ele deve ter trababalhado no poema desde muito tempo.


Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
Sombria, amarga e sonora cisterna
- Côncavo som, futuro, sempre, na alma.


Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escarva a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.



Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!

É esta tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia que me ocorre das ondas do tempo neste Novo Ano.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016

Obsessão pelo poema

Obsessão pelo poema




Obsessão pelo poema

Rogel Samuel


Não sei quantas vezes já me referi ao fato de que Baudelaire encheu seu poema de plurais, bosques, catedrais, órgãos, corações, gritos, tumultos, sombras, insultos, e mais. São temas baudelairianos, da visão exótica de seu mundo ”despoetizado”, Baudelaire foi primeiro poeta de um mundo sem “beleza”, desprovido de glamour romântico, por isso mesmo um poeta maldito, um poeta sem poesia, vivendo em quartos de terno luto, homem das grandes cidades modernas, e seus guetos, suas mazelas, suas telas negras, seus precipícios interiores, decadentes, um poema – como já escrevi, - ecológico, maldito, sonoro – onde os bosques têm rugidos como os grandes órgãos das catedrais, bosques em luto, em antigos choros, de duendes de fantasmas de fadas de demônios de flores das grandes árvores da montanha, os bosques se opõem aos oceanos - Baudelaire odeia os oceanos românticos, os tumultos da alma oceânica, riso amargo, sombras insultos, noite escura, sem estrelas, infinito negro, insondável, precipício, e o tradutor genial nos dá um verso extraordinário: "Porém as trevas são elas próprias as telas", telas do além dos rostos familiares, num bosque das lembranças estreladas em trevas.

LXXXII - Obsessão

Bosques, encheis de susto como as catedrais,
Como os órgãos rugis; e em corações malditos,
Quartos de terno luto e choros ancestrais,
Todos sentem ecoar vossos fúnebres gritos.
Eu te odeio, oceano! e com os teus tumultos,
Já que és igual a mim! Pois este riso amargo
Do homem a soluçar, todo sombras e insultos,
Eu o escuto no riso enorme do mar largo.
Como serias bela, ó noite sem estrelas,
Que os astros falam sempre claro em sua luz!
Busco o infinito negro e os precipícios nus!
Porém as trevas são elas próprias as telas,
Em que surgem, a vir de meu olho, aos milhares,
Seres vindos do além de rostos familiares.

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Círculo do Livro, 1995. Tradução, posfácios e notas de Jamil Almansur Haddad.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Quem está preso a uma estrela - Rogel Samuel


Quem está preso a uma estrela - Rogel Samuel

Disse Leonardo da Vinci:
“Quem está preso a uma estrela não anda para trás”, no sentido de que não entra em decadência, no sentido de que consegue completar e triunfar com toda a glória tudo o que começou, todos os seus projetos, todas as belas coisas por que se inflamou. Significa que consegue trazer à tona, “trazer à luz do dia, de modo puro e formulado, os contornos do conteúdo vislumbrado” (Bloch).
Isso se aplica aos gênios como Leonardo, e aos povos. Mas também se aplica aos mortais como nós, aos nossos desejos, como escreveu o jovem Goethe: “Desejos são pressentimentos das capacidades que estão dentro de nós, prenúncios do que seremos capazes de realizar”.
É quando esses atos prospectivos trabalham em nosso favor e obtém êxito “a partir da tremenda expectativa que deles se apoderou, a partir da afinidade com a estrela que ainda se encontra abaixo da linha do horizonte. A partir do futuro. É quando “a água que eu toco jamais foi navegada” de Dante. Citações todas do princípio esperança de Bloch que reúne juventude, mudança, produtividade, não com arrogância, mas com a visão do que deve ocorrer nas ocasiões da criação.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

A mulher que passa

A mulher que passa








A mulher que passa


Rogel Samuel



Passa. Ela passa, a viúva, elegante, balanço, o festão, o debrum, nobre, exata, ágil, belas
pernas de estatuária, passa, e ele a vê, do café onde bebe ele a vê, perdido, crispado,
ele a vê, a sente, a sabe, no seu olhar há o germe de um furacão, no seu olhar há a
doçura que se embala, há o frenesi que mata, o relâmpago... ou é o tempo, a noite? Ele,
a aérea beldade, e de seu olhar vem um relâmpago de renascimento... ela a verá outra vez?
ou só a verá por um instante na eternidade?

Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais.



A uma Passante

A rua em derredor era um ruído incomum,
Longa, magra, de luto e na dor majestosa,
Uma mulher passou e com a mão faustosa
Erguendo, balançando o festão e o debrum;
Nobre e ágil, tendo a perna assim de estátua exata.
Eu bebia perdido em minha crispação
No seu olhar, céu que germina o furacão,
A doçura que se embala e o frenesi que mata.
Um relâmpago, e após a noite! - Aérea beldade,
E cujo olhar me fez renascer de repente,
Só te verei um dia e já na eternidade?
Bem longe, tarde, além, jamais provavelmente!
Não sabes aonde vou, eu não sei aonde vais,
Tu que eu teria amado - e o sabias demais.

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Círculo do Livro, 1995.
Tradução, posfácios e notas de Jamil Almansur Haddad.

Estranho grande poema - Rogel Samuel


Estranho grande poema - Rogel Samuel
Escreveu Pedro Benjamín Palacios, conhecido como "Almafuerte", um estranho poema, próprio para o que vivemos nós:
"Não se dê por vencido, nem, se vencido, não se sinta escravo, nem, se escravo, não fique trêmulo de medo, imagine-se como um bravo, e ataque feroz, ainda que mal ferido, com a tenacidade do prego enferrujado que velho e gasto, mas volta a prego, sem a estupidez não covarde do pavão que amaina sua plumagem ao primeiro som, continuando como Deus que nunca chora, ou Lúcifer, que nunca lê, ou como o carvalho, cuja grandeza necessita de água, e não a implora ... que morda e se vingue rolando na poeira, sua cabeça!"
No te des por vencido, ni aún vencido,
no te sientas esclavo, ni aún esclavo;
trémulo de pavor, piénsate bravo,
y acomete feroz, ya mal herido.
Ten el tesón del clavo enmohecido
que ya viejo y ruin, vuelve a ser clavo,
no la cobarde estupidez del pavo
que amaina su plumaje al primer ruido.
Procede como Dios que nunca llora;
o como Lucifer, que nunca reza;
o como el robledal, cuya grandeza
necesita del agua y no la implora...
¡Que muerda y vocifere vengadora,
ya rodando en el polvo, tu cabeza!

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

J. G. DE ARAUJO JORGE - HARPA SUBMERSA

J. G. DE ARAUJO JORGE - HARPA SUBMERSA









" A Paisagem "

Ó tu que és a paisagem que não me pertence
à margem do meu itinerário,
entrevista tantas vezes
mas nunca possuída
nem sequer visitada
senão em meu sonho visionário...

Ó tu que és a paisagem que
me acompanha
todos os momentos
e que margeia afinal o meu caminho
até o remoto, até o adiante, o imprevisível,
a paisagem que me acompanha, mas não me faz companhia
Pois que estou sempre sozinho...

Que adiantaria saltar, se sou viajante
se devo passar apenas, sempre à distância, e inebriar-me,
com a impossível miragem,
se alguém mais feliz chegou, e de mais posses, possuiu-a,
e ergueu a cerca-limite, entre a estrada e a paisagem...

Que fazer, se hei de ser apenas o viajante
que passa, despercebido,
e tu, a impossível paisagem que fica sempre para trás,
como um gesto perdido...

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

A ARTE DA FUGA

A ARTE DA FUGA

ROGEL SAMUEL

"Vida louca vida, vida breve, já que eu não posso te levar, quero que você me leve" diz Cazuza. A citação é de minha amiga. "Velho e cego, Bach resolveu resumir a "poética" de sua música, e compôs "A Arte da Fuga" (que contém o seu nome: si bemol, lá, dó, si - ou b-a-c-h), que só veio a ser conhecida um século depois. Isso leio em Carpeaux. "Mas A Arte da Fuga ficou incompleta. A última fuga não acaba; continua a rolar, sem fim..." Isso me ocorre depois de ter recebido o seguinte e-mail do meu amigo R. A. E nem é preciso dizer que a comparação é insuportável:

"Caro R., O que é diferente em sua crônica é que ela se vai encadeando a partir de referências, sem fixar-se no tema inicialmente proposto.  Você segue o fluxo labiríntico e associativo do pensamento, um pensamento erudito, sem dúvida.  Agora, com sua alusão a Carpeaux, fica bem claro que se trata de uma opção plenamente consciente, a eleição de um discurso fragmentado, em lugar do retórico.  Porém, um fragmentado que segue uma certa linha, não se tratando, absolutamente, de puro delírio.  É mais como um jogo, uma tessitura que poderia seguir ao infinito, no puro prazer de rememorar e aludir leituras, audições & vivências.  É bom, acho interessante o estilo que você vem desenvolvendo. Abcs." A fuga poeticamente significa: "Vida louca vida, vida breve, já que eu não posso te levar, quero que você me leve" . Em resposta: "Caríssimo, muito obrigado por seus emails e suas palavras generosas demais para o meu pouco talento. Você deve ser um crítico literário perspicaz, pois acertou na "técnica" que costumo usar nas minhas pobres crônicas, é exatamente o que você "viu", vou por associações etc e geralmente quase não sei sobre o quê vou escrever e vou tecendo aquilo num encadeamento, só que no fim tento dar uma unidade ao todo. Depois de escrita, a crônica passa por inúmeras revisões, principalmente elimino todas as palavras que posso eliminar, corto tudo que posso cortar e examino cada  palavra pra ver se vai bem. Dura alguns dias o trabalho, mas gosto, é um prazer. Outra coisa, procuro "segurar" o leitor pela técnica das "mil e uma noites". Tenho tido bons leitores, como você, e o meu trabalho não tem sido em vão, pois agradei a uns poucos porém notáveis leitores. Muito obrigado outra vez, e até a próxima crônica. 

Rogel Samuel: Qualquer que seja a chuva desses campos



Rogel Samuel: Qualquer que seja a chuva desses campos

Frio. Dias escuros, chuvosos e frios. Mas a Primavera virá. O sol vai luzir no céu.

Rogel Samuel: Qualquer que seja a chuva desses campos

Há um soneto de Jorge de Lima que releio sempre, que não me canso de lembrar e que assim canta:

“Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os serões e os fiéis enganos
amar os sonhos que restarem frios.

Porém se não surgir o que sonhamos
e os ninhos imortais forem vazios,
há de haver pelo menos por ali
os pássaros que nós idealizamos.

Feliz de quem com cânticos se esconde
e julga tê-los em seus próprios bicos,
e ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em torno as mais terríveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas
e contentar-se com as secretas penas”.

Jorge de Lima, Invenção de Orfeu - Canto I – XXVI

Se tudo estiver bem, lembre-se de que tempos piores podem advir: “Qualquer que seja a chuva desses campos / devemos esperar pelos estios”. E quando a época ruim chegar, devemos contentar-nos com os sonhos. O poeta está sendo pessimista, espera os danos futuros. Pensa em não conseguir o amor sonhado, imortal: “Porém se não surgir o que sonhamos / e os ninhos imortais forem vazios, / há de haver pelo menos por ali / os pássaros que nós idealizamos”.

Feliz de quem com cânticos se esconde
e julga tê-los em seus próprios bicos,
e ao bico alheio em cânticos responde.

E vendo em torno as mais terríveis cenas,
possa mirar-se as asas depenadas
e contentar-se com as secretas penas.

terça-feira, 15 de novembro de 2016

O SILÊNCIO



DUGPA RINPOCHÊ: Encontra o teu centro, a partir do qual poderás construir a tua vida, empreender, realizar um projeto. Esse centro, que é a tua nascente de vida pessoal, é como um lago calmo, que nenhuma paixão agita. É um silêncio profundo, espiritual, que se produz quando o pensamento pára, com as suas palavras e as suas imagens. Faz brotar a tua ação desse silêncio.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

MANUEL BANDEIRA

Bandeira




Bandeira

Rogel Samuel





"Hoje, amanhã e sempre
teu nome será para nós, Manuel
Bandeira"

Escreveu (creio) Drummond.

Conheci Bandeira. Um dia fomos um grupo de alunos da Faculdade de Letras a seu apartamento, que ficava em frente. Batemos na porta. Ele atendeu de pijama.

- Que que vocês querem? - perguntou ele, naquela sua voz nasalada.
- Queremos entrevistá-lo, dissemos nós.
- Estou doente, respondeu ele. Não posso atender.
E foi fechando a porta. Atrás dele havia um tapete na parede. No vestíbulo. Mas eu o via com frequência andando por ali, com um jornal ou livro debaixo do braço. Eu já tinha lido quase todos os seus poemas, meu poeta preferido. Agora sai um livro de crônicas inéditas. Vou procurar. Ele era um excelente escritor em prosa.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

BOURNEMOUTH

(FOTO DE ROGEL SAMUEL: BOURNEMOUTH, REINO UNIDO) DUGPA RINPOCHÊ: Para evitar o fracasso, as decisões devem antes de mais nada ser meditadas, com as suas conseqüências. Imagina-as como uma rede de energias, com forças que se cruzam, se amplificam ou se combatem. Tu és o centro delas. A única nascente. É preciso iluminar o obstáculo muito longe, antes de o enfrentar, compreender o seu mecanismo de funcionamento, para não ser surpreendido e vencer as suas armadilhas.

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

As delícias da solidão

As delícias da solidão










As delícias da solidão


Rogel Samuel

Eu prefiro acompanhado, mas também a solidão tem as suas delícias. Chove, no Rio de Janeiro. Desde ontem chove. Leio a poetisa portuguesa Soledade Santos‏, enviada por Amélia Pais. Na sala há uma TV ligada. Noticiário. Na mesa uma chícara de café. Não tenho um gato de barro, nem castiçal. Nem flores, nem conchas. Tenho livros, cadernos, canetas. Não tenho novelos de lã, nem revista de tricot. Tenho sim uma tarde de chuva. Tenho um computador ligado, quadros na parede. Uma foto de Rimbaud, de 1872, foto de Etiènne Carjat, emoldurada em preto. Está aqui. Carjat (1828-1906), foi um fotógrafo francês, caricaturista e escritor, conhecido por seus retratos fotográficos de escritores e artistas. Comprei esta fotografía às margens do Sena. Estava com minha amiga francesa Annie Geraud, já falecida. Grande dia. Grande poeta. Grande Amiga que se foi.

Soledade Santos‏
TO BE ALONE

«To be alone is one of life's greatest delights»
D. H. Lawrence

uma chávena de chá sobre a mesa
um gato de barro um castiçal
algumas flores conchas livros
um caderno dois novelos
de lã e uma revista de tricot –
espólio de uma tarde à chuva
nessas delícias da solidão
que D H Lawrence cantou

Soledade Santos

(poema publicado em DiVersos 8, ed.Sempre-em-pé)

domingo, 6 de novembro de 2016

O AMANTE DAS AMAZONAS


Rasga a hiumara, anuncia a morte. Ferreira vê aquele homenzinho sentado, com a seringa a 308 libras a tonelada. No ano anterior estava a 374 £/t. A modificação do preço, porém, ia dar um salto para 655 £/t! Mas a queda seria brusca, em 1921 cairia para 72 £/t. Dez anos depois, em 1931, cairá mais ainda, chegará a 32 libra/t, menos da metade do preço de 109 anos antes, mesmo descontando-se a evolução dos preços e a pequena inflação. Era a Morte. A decadência e morte do império amazônico. De único produtor, o Brasil passou a produzir somente 1% do que consome. Um vulto desaparece por trás da porta, sumindo-se na galeria dos corredores. Altas paredes de estuque, a decoração pesada, barroca, o luxo surreal fantástico. Canta um jacamim no jardim dos patos. Aquelas salas se intercomunicavam numa área de 500 m2. São 15 cômodos de rodapé de maneira pintada, com balaustrada de coluna e forro de frisos dourados, soalho de acapu e pau amarelo. A entrada do edifício dá para um amplo hall, ao fundo do qual está o gabinete de trabalho do coronel. À esquerda, a porta da sala de música, isolada. À direita está a alcova e a circulação da galeria que dá uma volta por trás do edifício e retoma ao fundo da sala de música, assim como o terraço, que se abre dali para a parte de trás em ângulo reto. Uma grade de ferro fecha o jardim dos patos. Pierre me convida para o café, servido por um indiozinho Caxinauá na saleta contígua. Sentamo-nos num par de cadeiras Voltaire. A cururu-bóia, perdida, agita as folhas das raízes onde se enrosca como sapo. É um café forte, pelo que Pierre passa as noites em claro, vagando como fantasma através daqueles salões semi-iluminados por velas e lâmpadas de vaga-lumes. No meio da noite Pierre toca piano, lê, caminha dentro da casa do fim do mundo. As noites são soturnas, lúgubres, envolvem o Palácio em demônios que saem da escuridão. Pierre, indiferente, anda e seus passos se fazem ouvir ao longo a galeria das portas e janelas. Ele contempla os quadros, segue a fileira das janelas de folhas duplas fechadas até o chão, pesadas, almofadadas, bandeiras guarnecidas de cortinados franzidos de filó. No galpão, o viveiro dos patos com que se protege o Palácio de cobras, aranhas e escorpiões. A lâmina d’água tenta impedir a invasão das formigas. Mas sempre se encontra uma aranha peluda em cima da cama, ou se surpreende um escorpião atravessando por debaixo da mesa de jantar, ou se depara com uma cobra, coleando no vão do corredor. Ao cair da noite se fecham portas e janelas. Em turíbulos espalhados pela casa, se começa a queimar uma mistura de bosta de vaca e óleo de anta, para repelir insetos, cheiro que impregna e caracteriza o paço. Mesmo assim o prédio é assediado à noite por nuvens de insetos voadores, que querem entrar, atraídos pelas luzes. Ferreira sente medo. Todos os homens, empregados, balateiros, caucheiros, mariscadores, tropeiros, caçadores e índios parecem demônios. A casa é terrível, sobrenatural. Os olhos do caboclo Paxiúba e de Maria Caxinauá. Os salões encortinados como no teatro, a mobília esculpida - demônios e leões - tetricamente luxuosa. Pierre abre as portas de um armário e retira uma garrafa de Black. Ferreira bebe tendo nos olhos o curumim Caxinauá perfilado à sua frente. Aquela fortuna tinha uma fonte, que era o trabalho escravo da inteira nação Caxinauá, que produzia a alimentação que Pierre trocava pela produção de seringueiros que raramente recebiam dinheiro. A pequenina figura daquele homem apareceu por fim pintada na sua verdadeira frente.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

DAREL




A beleza que há em tudo



A beleza que há em tudo
Rogel Samuel
Um mestre de meditação escreveu: "A felicidade reclama a aceitação dos outros, a simplicidade do coração e o deslumbramento do espírito". Dugpa Rinpochê era um monge budista que fugiu do Tibet durante a invasão chinesa, na companhia do Dalai Lama. Ele escrevia seus aforimos numa folhinha de papel, enrolava-o, meditava sobre aquele conteúdo, e depois, quando alguém o visitava, dava de presente ao visitante. Era sua oferta, seu mimo, seu regalo, uma dádiva, uma lembrança ao recém-chegado. Seus aforismos foram reunidos e traduzidos por minha amiga portuguesa Helena Melo, que me mandou.
Primeiramente ele morou em Dharamsala, depois em Nagarkot, no Nepal, a três mil metros de altitude, "à vista dos seus três cumes lendários: o Annapurna, o Melung Tse e a cordilheira do Everest, coroados de neve". Faleceu em Dharamsala em 1989.
É fácil encontrar seus "Preceitos de vida" na Internet. Durante trinta anos o velho monge recebeu pessoas que o procuravam pedindo orientação. Durante anos uso seus preceitos na minha vida. Durante muito tempo recebi inspiraçào de seus pequenos versos.
"A felicidade reclama a aceitação dos outros, a simplicidade do coração e o deslumbramento do espírito" significa, para mim, que minha felicidade está nos outros, depende deles, de eles estarem felizes. A simplicidade do coração põe em nós a volta da humildade, da alegria de uma criança. O deslumbramento do espírito é estar apaixonado pela vida exterior, pela paisagem do mundo, pela beleza que há em tudo.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016

MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE

MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE


MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE

Rogel Samuel


De minha cara amiga Graça Carvalho, já falecida, recebi um precioso presente, a “Cartilha do bem sofrer com lições de bem amar”, do seu pai, o super-poeta amazonense Farias de Carvalho, publicada em 1967 e desde então esgotada.
Lá re-encontro o poema “Ocaso”, que não lia desde que Farias de Carvalho foi meu professor, no noturno do Colégio Estadual, onde ele lecionava literatura e eu tanto aprendia com ele: “Meus mortos hão de vir no fim da tarde”.
Só dá para ler este belo texto quem o situa na Manaus da década de 50, ou início de 60, quando foi ele escrito.
Aquela era uma cidade sem iluminação, ilhada no meio da maior floresta tropical do mundo. Ao cair da tarde, as perigosas trevas da floresta invadiam, a nostalgia da escuridão e da morte ameaçava, aquele Rio Negro ficava realmente Negro. Negro como a Morte Negra. Negro da morte de vinte e oito mil índios vitimados em 1729, numa hecatombe nunca esquecida por aquelas margens, de tal sorte que perto dali há um rio, chamado Rio Urubu, “rio doente para sempre, / desde o município de Silves”, como certa vez escrevi; rio onde um dia meu pai não me deixou mergulhar, “como se ali o rio pudesse / para sempre me tragar”.
Naquelas águas estão sepultados nossos antepassados e o grande guerreiro Ajuricaba, o herói que está em toda a parte ao mesmo tempo [Aiuricaua], rio de sangue Negro, de espinhos venenosos, de cadáveres históricos. Há demônios nas margens e eu me lembro da impressão trágica, da depressão que nos assaltava, ao cair da tarde, quando a cidade invadida por nuvens de moscas besouros, piuns, carapanãs sanguessugas, corujas, e aranhas peludas que saíam de seus esconderijos, e escorpiões de ébano que procuravam caça, a floresta ameaçada agora ameaçava, retomava e reconquistava o seu lugar em São João da Barra, nos expulsando para sempre, tudo debaixo da gloriosa chuva do ouro do mais esplendoroso por-de-sol do mundo, algo como explosão de bomba atômica terminal, final, de fim de mundo, finnisterra, que se expandia em coloridas nuvens para todos os lados, junto com misteriosas aves do entardecer.
Ajuricaba veio do rio Hiiaá, na margem esquerda do Negro, entre o Padauari e o Aujurá, no distrito de Lamalonga. Para salvar seu filho caiu em emboscada e foi prisioneiro da Coroa Portuguesa, em 1729, a Coroa o queria vivo para o supliciar com castigo e morte. No caminho, Ajuricaba, que era homem fortíssimo, arrancou do poste o grampo que o prendia e, com as correntes nas mãos algemadas, faz a matança dos soldados portugueses antes de se precipitar nas águas escuras do Rio Negro, onde morreu, não sem antes as amaldiçoar, e diz a lenda que é por isso que aquelas águas são estéreis, e não têm peixe. Logo depois, em vingança, o capitão Belchior Mendes de Moraes dizimou 300 malocas, matando em sacrifício mais de 28 mil índios das margens do rio que passou a se chamar Rio Urubu devido à montanha de cadáveres. E mais tarde balesteiros, sob o comando de um padre de nome piedoso, Frei José dos Inocentes, depois nome de rua de puta em Manaus, espalharam roupas contaminadas com varíola que disseminaram uma gigantesca epidemia que infectou 40 mil índios, arruinados de varíola, que é uma doença infecto-contagiosa, virulenta, que apodrece o corpo ainda vivo com erupções de pus e raquialgia, pápulas, pústulas, cegueira e agonia de uma morte bacteriológica lenta, os cadáveres semi-vivos sendo devorados por moscas, piuns, carapanãs, mutucas, cabo-verdes, potós, catuquis, marimbondos, suvelas, besouros e formigas. A saúva antropófaga devora um corpo em 20 minutos. Na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 1908, os mortos largados no caminho para serem enterrados na volta (30.430 operários foram internados no Hospital da Candelária, entre 1908 e 1912) e quando a locomotiva voltava só encontrava ossos brancos e limpos, comidos pelas saúvas. E também a formiga-de-fogo, a saca-saia, a lava-pés, a manhura, a cabeçuda, a taioca, a carregadeira, a táxi, a tracuá, a tocandira, peluda, enorme, venenosa, uma única picada basta para abater um homem, com fortes dores e febre, usada pelos índios na iniciação masculina dos garotos, que tinham de enfiar o braço numa cumbuca de tocandiras para provar que eram machos. E a formiga roceira, e a cortadeira, e a guerreira, a correição. Von Martius descreveu populações inteiras fugindo das formigas. As açucareiras eram capazes de fazer recuar um inteiro exército!
Por isso os mortos vinham no fim da tarde, “molhados da ferrugem líquida do rio”, diz o poeta, “que banha as margens dêste ... silêncio lúcido e sonoro / que embala na praia ao fim das tardes / os olhos de éter dos defuntos tortos / que lambem com o olhar a praia longe”.
Além disso, o trágico planger dos sinos da Matriz, construída por índios, da Igreja de São Sebastião, da Igreja dos Remédios, que se ouviam na inteira cidade, graves, ameaçadores, profundos, lembravam a Morte, e as rádios todas tocavam umas Avemarias, a Rádio Baré, a Difusora, a Rio-Mar, rádios de meu tempo, e misteriosas velhas beatas vestidas de negro, veladas, engolfadas, balbuciantes de preces, que se dirigiam às missas, entrando ainda sob a saraivada de toques dos imensos sinos magistrais.
É claro que, para nós, jovens poetas, devassos e boêmios, era a hora de nos preparar para as aulas e depois beber no Bacurau, no início da João Coelho, junto com catraieiros, prostitutas, mendigos e bandidos alcoólatras, provando aqueles peixes fritos, o pacu, a sardinha, o matrinchão, entre goles de cachaça barata; ou íamos para o Bar Bolero, que ficava na Cachoeirinha, na Rua Belém (creio eu, pois a memória já me falha), onde ouvíamos Nelson Gonçalves cantar os maiores sucessos em serenata, como os “Lábios que beijei”, e isso ia até ao raiar do dia, quando voltávamos, bêbados, felizes, para nossas casas, a pé, sob o latido generalizado dos cachorros dentro dos muros das casas, cães que não compreendiam por que tão tarde (e tão cedo) passávamos nós por ali, no deserto das ruas que um dia inspirou o poeta L. Ruas a escrever:

Ah!
Esta lua
Neste fim de rua



Vamos ler o poema:


MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE

FARIAS DE CARVALHO

Meus mortos hão de vir no fim da tarde
molhados da ferrugem liquida do rio
que banha as margens deste meu silencio,
deste silencio lúcido e sonoro
que embala na praia ao fim das tardes
os olhos de éter dos defuntos tortos
que lambem com o olhar a praia longe.

Meus mortos hão de vir no fim da tarde
mordendo a pele aquática do vento;
(vento, vento de tíbias descarnadas
arrepiando o pelo das vidraças).

Meus mortos hão de vir no fim da tarde.
Aguçai vossos dentes, cães do tempo,
vamos comer a morte no crepúsculo.
molhados da ferrugem liquida do rio
que banha as margens deste meu silencio,
deste silencio lúcido e sonoro
que embala na praia ao fim das tardes
os olhos de éter dos defuntos tortos
que lambem com o olhar a praia longe.

Meus mortos hão de vir no fim da tarde
mordendo a pele aquática do vento;
(vento, vento de tíbias descarnadas
arrepiando o pelo das vidraças).

Meus mortos hão de vir no fim da tarde.
Aguçai vossos dentes, cães do tempo,
vamos comer a morte no crepúsculo.



terça-feira, 1 de novembro de 2016

DYLAN THOMAS E Adolfo Casais Monteiro

DYLAN THOMAS: EM MEU OFÍCIO OU ARTE TACITURNA

Em meu ofício ou arte taciturna
Exercido na noite silenciosa
Quando somente a lua se enfurece
E os amantes jazem no leito
Com todas as suas mágoas nos braços,
Trabalho junto à luz que canta
Não por glória ou pão
Nem por pompa ou tráfico de encantos
Nos palcos de marfim
Mas pelo mínimo salário
De seu mais secreto coração.

Escrevo estas páginas de espuma
Não para o homem orgulhoso 
Que se afasta da lua enfurecida 
Nem para os mortos de alta estirpe 
Com seus salmos e rouxinóis, 
Mas para os amantes, seus braços 
Que enlaçam as dores dos séculos, 
Que não me pagam nem me elogiam 
E ignoram meu ofício ou minha arte.

(tradução: Ivan Junqueira) 
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AURORA - Adolfo Casais Monteiro, 1954:

“A poesia não é voz — é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:
voo sem pássaro dentro.”

(Adolfo Casais Monteiro in “Voo sem Pássaro Dentro"