terça-feira, 30 de abril de 2013

Comerei teu corpo no crânio da tua cabeça

Rogel Samuel: Avenida Brasil

Quando chegamos no Rio, entrando pelo portal da Avenida Brasil, parece que chegamos no Iraque em guerra: fábricas fechadas, janelas quebradas, lixo no chão, pó como pólvora, telhados desabados, cumeeiras expostas, esqueletos de prédios decadentes, calçadas em ruínas, o deserto de uma cidade sem vida, de uma cidade arruinada, dizimada pela guerra dos pichadores, dos horrores, dos pavores, dos horrores do mal.


Como cantavam os índios do Amazonas:

“Comerei teu corpo no crânio da tua cabeça
Sobre tuas cinzas dançarei
E exultarei!”

segunda-feira, 29 de abril de 2013

Morre tartaruga egípcia que conheceu Napoleão

Morre tartaruga egípcia que conheceu Napoleão

Foto: Divulgação/Zoológico de Gizé
Uma tartaruga egípcia de 270 anos de idade faleceu no zoológico de Gizé, nas proximidades do Cairo, capital do país africano. Com tamanha longevidade, o quelônio estava vivo - e adulto - quando Napoleão invadiu o Egito, ainda no século XVIII, conforme esta notícia da agência Prensa Latina.

Nascida em 1743, a tartaruga "foi testemunha" da Revolução Industrial, da Revolução Francesa e de fatos relevantes na história egípcia: o segundo reinado dos mamelucos, da construção do Canal de Suez, da assinatura do tratado de paz egípcio-israelense e dos mais de 30 anos do regime do presidente Hosni Mubarak, derrubado por uma revolta popular em 2011.
O zoológico não divulgou as causas da morte do animal. O fato causou muitos comentários nas redes sociais. Uma das piadas dizia que o bicho sobreviveu a períodos turbulentos da história do Egito mas não suportou as disputas entre partidários e opositores do presidente Mohamed Morsi. (a dica foi do Édson Pedro)

O poema profético

    

O POEMA PROFÉTICO

Rogel Samuel

Mithrídates Correa é o poeta mais desconhecido da Amazônia. No entanto, muito escreveu. Em jornais, revistas, Manaus. Não publicou um só livro. Era um bom poeta. Poucos se interessaram por sua obra. Um dos poucos foi o grande piauiense Assis Brasil, que fez muito mais pela cultura brasileira do que um ministério da cultura. Devemos à persistência de Assis Brasil a melhor coletânea da poesia no Brasil em livro.
Mithrídates Correa nasceu em Manaus, em 1904 e lá faleceu, em 1968. Foi juiz no interior e professor Catedrático de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade do Amazonas. “Promotor público, advogado, militante, poeta”, escreveu Assis Brasil.
Ele morreu no dia primeiro de janeiro de 1968.
Um dia antes de morrer, publicou no “Jornal do Comércio” de Manaus um poema profético, falando de sua morte: “não pode o coração sofrer engano, / ainda que seja um coração de aço”.
Apesar de não ter publicado nenhum livro, entrou em antologias e na Academia Amazonense de Letras, onde ocupava a cadeira Olavo Bilac.
Seus textos em prosa são excelentes, como li nos poucos fragmentos que nos sobraram. Seu testamento poético foi encontrado depois de sua morte. Um poema longo, do qual extraio alguns versos, que dizem: “Quando eu já não for / ... / que se abra o chão / e à voracidade da terra / minhas carnes atirem / vida em movimento, alma em ação / que eu volte a ser nada / como fui outrora / da vida um acontecimento / em trajetória para o esquecimento / e o que deixei de mim como lembrança / que sirva de alimento”.
Está o poema na revista da Academia Amazonense de Letras, n. 12, de 1968. Pouco depois de sua morte. Mas, como ele escreveu, em outro poema:
“Não morre o que transforma a força em pensamento
e desta arranca a cor e o movimento
e tudo que de belo o pensamento encerra”.
Fui o primeiro a colocar na Internet os poetas amazonenses antigos, no meu deletado “Site do Escritor”, que a Geocities teve o cuidado de tirar do ar, até hoje não sei por quê. Talvez porque excedia o limite do espaço on line. Mas não estava lá o poeta Mithrídates Correa.
Como ele escreveu, todos nós estamos “em trajetória para o esquecimento”.

As águas, as lembranças




      As águas, as lembranças
As águas, as lembranças

NEUZA MACHADO

As “águas” (as lembranças imperecíveis do narrador) provêm
“dos desconhecidos lugares da origem Numa”, uma tribo desconhecida
geograficamente e que ficou à margem da história do Amazonas, por
exigências sócio-substanciais. Desta tribo de índios audazes, só se
perpetuaram os referentes conhecidos e aplaudidos ligados à força
física, ao lado indômito, à imponente belicosidade do animus dessa tribo
diferenciada. As “águas” (as lembranças) desses lugares da origem
Numa ficaram desconhecidas por leis de “sobrevivência”, relegadas
friamente ao esquecimento. “Se perdem”/se perderam no esquecimento,
porque foram interditadas vergonhosamente pelo anterior regime
patriarcal. Foram/são esquecidas e passaram/passam, porque, se íntimas,
representaram/representam “perigo”, se fossem/se forem verbalizadas.
Essas “águas”, que veem de “desconhecidas origens Numas”,
são especiais, porque provêm do devaneio interno de quem narra. O
narrador rogeliano Ribamar de Sousa a designa como uma “narrativa
animal” porque ela é uma projeção da matéria primitiva que
vigorou/vigora no imaginário-em-aberto do escritor. Refiro-me àquela
matéria inovadora que surge entropicamente depois do repouso
fervilhante, intimamente relacionada com os juízos de descoberta, de
que nos fala Bachelard, em seu livro A Dialética da Duração.154
“O galho quebrado diz: “Não passarás”. E além da Curva do Tucumã, a
passagem do eixo do rio se separa. Pode-se banhar e pescar, deste lado. Mas
aos poucos os Numas se infiltravam, avançavam, atravessavam. Passavam

além de si mesmos, não respeitando seus próprios limites. Atravessando o rio
e a ordem que o rio exercia na floresta”.
“O galho quebrado diz: “Não passarás”, em outras palavras,
não havia/não há ainda permissão para que se infringisse/infrinja as leis
preconceituosas que comandaram/comandam o mundo dito social. Mas,
para “além da Curva do Tucumã, a passagem do eixo do rio se separa” e
“pode-se banhar e pescar, deste lado”. A imaginação rogeliana, como
diria Bachelard, oculta “a tonalidade profunda do devaneio criador”156,
pois ela está resguardada pelas lembranças inesquecíveis de antigas
leituras foucaultianas, bachelardianas e outras. Além da “Curva do
Tucumã, a passagem do eixo do rio”, que separa o substancialmente
dito (“gêneses lineares”) do não-dito (o que não possui história),
propicia o momento da infração ficcional, porque, daquele lado, pode-se
“banhar” no rio das ditosas ou amargas lembranças imperecíveis e
“pescar” novíssimos juízos. Michel Foucault desenvolve um assunto
interessante sobre a genealogia do poder e do saber.
“A genealogia é cinza; ela é meticulosa e pacientemente documentária. Ela
trabalha com pergaminhos embaralhados, riscados, várias vezes reescritos”.
“Paul Rée se engana, como os ingleses, ao descrever gêneses lineares, ao
ordenar, por exemplo, toda a história da moral através da preocupação com o
útil: como se as palavras tivessem guardado seu sentido, os desejos sua
direção, as ideias sua lógica; como se esse mundo de coisas ditas e queridas
não tivesse conhecido invasões, lutas, rapinas, disfarces, astúcias. Daí, para a
genealogia, um indispensável demorar-se: marcar a singularidade dos
acontecimentos, longe de toda finalidade monótona; espreitá-los lá onde
menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história ─ os
sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não
para traçar a curva lenta de uma evolução, mas para reencontrar as diferentes
cenas onde elas desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto de sua
lacuna, o momento em que eles não aconteceram”.
“A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de
materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus “monumentos
ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros benfazejos” mas de “pequenas
verdades inaparentes estabelecidas por um método severo”. Em suma, uma
certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como avisão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se
opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais
e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da “origem”.157
“O galho quebrado” da genealogia númica impediu, ao longo da
história patriarcal, que a árvore se fortalecesse e permanecesse
socialmente altiva, como as “de 70 metros de altura”. “A genealogia é
cinza”, diz Michel Foucault. Enquanto forma documental, o estudo da
procedência de uma ramificação familiar e/ou tribal poderá ser
aniquilado por reelaborações não confiáveis. A genealogia deve/deveria
construir seus “monumentos ciclópicos”, não a golpes de “grandes erros
benfazejos” mas com “pequenas verdades inaparentes estabelecidas por
um método severo”; a genealogia deveria deixar de ser cinza.

Miritiba de Humberto de Campos

Miritiba de Humberto de Campos












Miritiba de Humberto de Campos


Rogel Samuel



Humberto de Campos nasceu em Miritiba, hoje Humberto de Campos, Estado do Maranhão em 1886 e morreu em 1934 no Rio de Janeiro. Foi um escritor de sucesso. Começou do nada, como tipógrafo, escriturário, redator de jornal. Chegou à Academia, na sucessão de Emilio de Meneses. Era um sucesso. Quem não leu Humberto de Campos naquela época? Diz Assis Brasil: "“Tido e elogiado como um prosador admirável, a fase poética de Humberto de Campos, no começo de sua carreira (1904-1915), quando publicou os dois volumes De Poeira, enquadra-se numa fase de transição, a que alguns chamam de neoparnasiana, mas sem uma característica definida. Certo, o homem de sensibilidade que também sabia fazer versos, como alguns de seus contemporâneos.”
(apud Antonio Miranda).

Jornalista e político. Foi autodidada. Getúlio o admirava. Escreveu mais de 30 livros. Leiamos "MIRITIBA":



É o que me lembra: uma soturna vila

olhando um rio sem vapor nem ponte;

Na água salobra, a canoada em fila...

Grandes redes ao sol, mangais defronte...



De um lado e de outro, fecha-se o horizonte...

Duas ruas somente... a água tranqüila...

Botos no prea-mar... A igreja... A fonte

E as grandes dunas claras onde o sol cintila.



Eu, com seis anos, não reflito, ou penso.

Põem-me no barco mais veleiro, e, a bordo,

Minha mãe, pela noite, agita um lenço...



Ao vir do sol, a água do mar se alteia.

Range o mastro... Depois... só me recordo

Deste doido lutar por terra alheia!




O soneto é extraordinário. Descreve a sua "soturna vila" natal, o rio, a água salobra, as canoas, as redes de pescar, os mangais. Tudo síntese do quadro. O horizonte, duas ruas, a igreja, as grandes dunas ao sol. A criança parte com a mãe, que agita um lenço, entra o barco no mar, na vida, no grande mar da vida, na terra alheia.

domingo, 28 de abril de 2013

FOTOGRAFIA

FOTOGRAFIA


Rogel Samuel

Foi num sebo aonde nunca tinha ido. No Catete. Em frente aqueles
prédios da Primeira República. Em frente ao Palácio. Aquele palácio
tinha sido a casa do Barão de Nova Friburgo, que tinha fazendas de café.
Em Nova Friburgo visitei, também, sua casa. Num parque belíssimo. No
sebo encontrei uma pilha da revista "Fotoarte". Era uma revista
dirigida por Francisco Aszmann, um dos maiores fotógrafos do mundo de
sua época. Um dos mais premiados no mundo inteiro. Ele foi meu professor
de fotografia, e o muito do que eu (pouco) sei de como ver um quadro se
deve a ele. Eu comecei a buscar o que procurava: a fotografia "Bois",
que eu já conhecia, e que sabia que estava num daqueles números. Eu
conhecia detalhes da foto, e de como Aszmann a tirara. Ele contou numa
das aulas que tinha ficado horas à espera da manada que entrava numa
estreita ponte. Tirou a foto e pulou da ponte pela ribanceira de dez
metros, na Hungria. A foto ficou anos esquecida, porque o boi da direita
estava ligeiramente desfocado: um crime para os padrões estéticos
daquela época. Mas em 1940 o conceito mudou e Aszmann pode ganhar
todos o títulos com uma única foto. Um dia eu ganhei um prêmio de
fotografia. Era uma competição coletiva, na ABAF, no Rio. Eu lecionava
no subúrbio carioca e tomava o trem, pela manhã. Ia com a câmera. Eu só
andava com ela. A tiracolo. Em plena Central do Brasil comecei a
fotografar uns garotos de rua, com tele-objetiva. Um deles tinha um
tampão branco, no olho, de esparadrapo. Quando revelei a foto, a criança
aparecia angustiada, atrás de uma monstruosa coluna (que na realidade
era um vão do prédio da Central), e por trás estava, desfocado, o grande
edifício do Quartel Geral das Forças Armadas. Ameaçador. Não deu outra:
tirei o primeiro prêmio - estávamos em pleno regime militar, e aquele
menino sujo esmagado num canto virou o maior símbolo. Minha foto fez
sucesso. Mas eu a perdi, ou melhor, a vendi. Aprendi com
Aszmann, o menino estava no "ponto ouro" do quadro
(o canto inferior esquerdo). O Brasil, que hoje tem Sebastião Salgado,
já teve Francisco Aszmann, o professor. Abandonei quase completamente a
fotografia, hoje. Talvez porque se tornou uma arte cara. Mas
principalmente porque já não tenho tempo nem laboratório em casa.
Fazíamos em casa as fotos em preto-e-branco. Um dia, talvez, vou partir
para a foto digital. Aí está a foto do mestre Aszmann "Bois".

A GRANDEZA DESPOJADA

A GRANDEZA DESPOJADA

NEUZA MACHADO



Entretanto, apesar do ou graças ao conflito, a partir da página oitenta e nove, um novíssimo narrador rogeliano se obrigou a surgir para revelar aos leitores que, desde o início da narrativa, o interregno capitalista esteve ali presente (o lado capitalista do Manixi), ansioso por destruir a grandeza mítica do lugar. Subitamente, aparecem ratos na narrativa. Os dois poderes não poderão permanecer juntos naquele espaço efervescente de transição. Um deverá destruir o outro. A mudança narrativa instiga o leitor interessado. Ele terá de descobrir (se houver ou não um fecho narrativo tradicional) quem sairá vencedor. Quem está despojando a grandeza da Floresta Amazônica? Como desvelar o Manixi (o Palácio e as terras que o rodeiam) ao longo da narrativa rogeliana? Por que “o sumiço do filho de Pierre Bataillon, um homem que vivia debaixo do ouro no Alto Juruá, permanece encoberto de tal mistério, sempre um acontecimento mitificado na imaginação do povo amazonense e acreano, e todas as hipóteses, levantadas então, não se puderam justificar, nem explicar”? Por que a Cidade de Manaus revela-se, na segunda etapa da narrativa como segundo espaço de mediação ficcional? E os ratos? Por que os ratos? Há ratos na Floresta. Há ratos na Cidade. Há “ratos” entre “as tábuas do chão”, “ratos” como “um traço cinematográfico, contínuo”, um “corroer” que incomoda, ativando a sensibilidade e a inteligência do leitor, demonstrando que, holisticamente, há “ratos” em todas as partes do mundo a abalar os primordiais e puros alicerces da civilização. Não foi o narrador Ribamar (o narrador tradicional das histórias contadas e relidas) que viu os tais ratos, foi o outro narrador (o das histórias lidas, relidas e inúmeras vezes repensadas), porque somente um narrador capacitado para tal função poderia formalizar criativamente o início da decadência da época da borracha (aquele que vê “o risco preto no chão”), ou seja, o início da decadência do plano das exigências conceituais a interagir com um discurso saído da própria “consciência fervilhante” (G. Bachelard).


MACHADO, Neuza. O Fogo da Labareda da Serpente: Sobre O Amante das Amazonas de Rogel Samuel

sábado, 27 de abril de 2013

NA CHINA

Rolls Royce Wraith é o mais potente da história da marca

sexta-feira, 26 de abril de 2013

O porvir

O porvir


Rogel Samuel

“Pensar é transpor”, disse Bloch. Por isso, seu princípio da esperança não é o da “espera”, mas do “avanço” – ou seja, a esperança, ali, já não significa a passividade do esperar, do receber do milagroso céu, do acontecer ao acaso, mas da construção do futuro, ativo alcance da transposição daqueles obstáculos que eterna e repetidamente aparecem na nossa frente. É a construção do futuro. Projetamos um objetivo, ou o buscamos no horizonte infinito? Que queremos nós? Bloch introduz no pensamento marxista este novo cosmorama com esta sua teoria prospectiva. Não existe senão o aqui e agora e o avanço para o futuro. Nós temos de extrair o futuro de suas profundezas misteriosas. E para isso precisamos de nos tornar ao futuro, na aceitação do novo. É este o signo, a chave dessa teoria do progresso social, dessa teoria da revolução própria do princípio da esperança. No que não existe, o sonhar para a frente.
Quem começou este tema fundamental da filosofia foi o russo Dimitri Pissarev (1840-1868) citado por Lênin em “Que fazer?” (São Paulo, Hucitec, 1988, p. 132) que escreveu: “Com o que devemos sonhar? (...) O desacordo entre o sonho e a realidade nada tem de nocivo se, cada vez que sonha, o ser humano acredita seriamente em seu sonho, se observa atentamente a vida, compara suas observações com seus castelos no ar e, de uma forma geral, trabalha conscientemente para a realização de seu sonho. Quando existe contato entre o sonho e a vida, então tudo vai bem”.

A pequena Paris



















A pequena Paris

NEUZA MACHADO

No entanto, “que belo lugar”! Tão “limpo”! “Lembrava Paris”. O Ribamar até então era apenas um “caboclo mal vestido, calças de brim, camisa de algodão cru de dura goma, chapéu de palha na cabeça e mala de madeira enrolada na mão”. Quem estava a se lembrar de Paris ao apreciar a Cidade? O primeiro ou o segundo narrador? Ou um terceiro viajante-narrador, profundo conhecedor da Cidade de Paris? Como poderia o Ribamar de Sousa da “mala de madeira enrolada na mão”, ou mesmo o segundo narrador, lembrar-se de Paris? Seria a Paris decalcada no “Cosmorama”, aquele interessante aparelhozinho ótico que o acompanhou quando de sua peregrinação até ao Seringal Manixi?


Diz o narrador, ao refletir ficcionalmente o declínio sócio-econômico da Cidade de Manaus: “Tudo o que era sólido se desfazia no ar e ruía como um castelo de cartas. O Teatro Amazonas foi abandonado, transformado em depósito de borracha velha. O que sobrou foi muito pouco, mas era o que eu mais amava”. O Teatro Amazonas, mesmo transformado em depósito de borracha velha, era o local que o narrador “amava”. O Teatro Amazonas, o símbolo da Cidade manauara, se estabeleceu no alto, como marca do poder da era da borracha. Posteriormente, “em ruínas”, significou a decadência de um primitivo Império capitalista, o de base familiar. Uma outra forma de Capitalismo Selvagem estava a surgir no mundo: o Capitalismo sem freios das multinacionais estrangeiras. Naquele instante universalmente dinamizado, o Teatro tornou-se um artigo sem serventia para os manauaras, um monumento do passado em ruínas, abrigado em uma Cidade em ruínas sócio-financeiras. No entanto, para o narrador-cidadão do mundo, ainda era o lugar mais “amado” (não seria de se admirar o fato de que, no momento, neste ano de 2008, o narrador aqui realçado esteja a escrever um romance chamado Teatro Amazonas).
O fogo da labareda da serpente
Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel

quinta-feira, 25 de abril de 2013

A ausência de Neuza Machado



A ausência de Neuza Machado
A ausência de Neuza Machado
A ausência de Neuza Machado

 
 
 
 
Cunha e Silva Filho

                        Conheci Neuza Machado quando, de 1999 a 2006, fui lecionar no curso de Letras da Universidade Castelo Branco, em Realengo, Rio de Janeiro. Não me lembro bem como foi o meu primeiro contato com ela. Só sei que, de repente, já éramos bons colegas no ambiente universitário. Ela lecionava teoria literária; eu, literatura brasileira e, depois, língua inglesa, cheguei mesmo a lecionar também, e por um semestre, literatura americana.
                       Me lembro bem de que, uma noite, após uma reunião geral com o reitor, saí do auditório e fui para a cantina, lugar de encontro de professores e alunos e lá Neusa me perguntou se eu tinha alguma facilidade de conseguir um editor para um livro dela pronto a ser publicado. Por um ou outro motivo, ela pensava que eu tivesse assim bons contatos, o que não era o meu caso. Ficamos amigos e dessa amizade que cresceu mais com as muitas vezes que, no Centro do Rio, coincidia de tomarmos o mesmo ônibus para Realengo.
                     Foi nessas vezes que comecei a conhecê-la melhor. Nessas idas de ônibus cujo percurso durava uma hora ou mais, dependendo do trânsito, e em ônibus lotado, aproveitávamos para falar principalmente de literatura, de escritores, dos tempos de graduação na Faculdade de Letras da UFRJ, dos bons professores e das dificuldades inerentes aos tempos de estudante, ia formando minha opinião sobre esta colega que não chegou a ser amiga íntima, mas cujo convívio profissional no mesmo ambiente de trabalho foi suficiente para que sentisse admiração pela sua formação intelectual e seus anseios de estudiosa e pesquisadora sobretudo na sua área de maior interesse, a teoria literária.
                   Neuza era mineira e tinha muito do que se fala de bem dos mineiros.Por outro lado, a sua personalidade simpática e brincalhona por vezes escondia algo de um temperamento muito crítico e rigoroso com o que fazia na sua vida profissional. Sua visão do fenômeno literário era penetrante, muito seletiva, numa abordagem metodológica que se orientava pela análise semiológica, por ela declaradamente haurida da experiência que teve nas aulas de Anazildo Vasconcelos da Silva, professor da Faculdade de Letras da UFRJ. Na sua dissertação de Mestrado, O narrador toma a vez, em que discute o conto “A hora e a vez de Augusto Matraga”, de Guimarães Rosa, depois editada por conta própria, em 2006, Neuza deixa bem nítida essa inclinação às aproximações semiológicas (Greimas, Barthes, Anazildo Vasconcelos da Silva e outros) e sociológicas (Goldaman, Luckács, Weber e outros) do fenômeno literário. Percebe-se que neste estudo ela mobilizava um instrumental teórico diversificado, pluralista, no qual não havia nenhuma prevenção dogmática e radical na interpretação da obra literária.
                  Não li sua tese de doutoramento, a qual da mesma forma, deu continuidade e aprofundamento à obra de Guimarães Rosa, porém, nesse estudo me recordo bem de que se serviu largamente do pensamento de Bachelard que me parece deve ter sido a sua viga-mestra na condução do desenvolvimento da sua tese. Penso que a orientou foi o professor Rogel Samuel, um escritor de cuja obra Neuza iria se ocupar com dedicação e competência, tornado-se provavlemente a sua maior intérprete e divulgadora.
                  Neuza foi ficcionista, além de crítica e ensaísta. Na sua coluna Letras no Entretextos, deixou páginas que demonstram sobejamente sua capacidade de análise e sua maneira original de absorver o que a sua formação lhe propiciou em anos de estudos leituras e de experiência docente. Não podemos negar a sua vocação para o debate teórico no sentido mais elevado do termo.
                 Neuza era uma mulher batalhadora, sobretudo no que pretendia fazer no domínio intelectual,   Percebendo claramente quão é espinhoso se publicar no país através das grandes editoras, ela não perdeu tempo, criou a sua própria “editora”, cuidou de todos os trâmites burocráticos e saiu vitoriosa: editou sua dissertação de mestrado e possivelmente alguns outros trabalhos. Ela cuidava praticamente de tudo para que seus livros viessem a publico. Era, pois, uma determinada.
               Respeitada por seus pares na Universidade.Castelo Branco, mulher corajosa ao defender seus pontos de vista, sobretudo no campo teórico, Neuza Machado antes de ter lecionado naquela universidade, também ensinou na Universidade Estácio de Sá, na Universidade Sousa Marques e, por um ano, saindo do Rio de Janeiro, lecionou na Universidade Federal do Pará ou Amazonas, não sei bem. Anos antes, participou de um congresso em Paris ao lado de Rogel Samuel, de quem sempre foi uma admiradora e amiga. Me recordo de que, na Castelo Branco, adotava livros de Samuel Rogel, que, de resto, foi seu professor na Faculdade de Letras da UFRJ, no tempo em que funcionou na Avenida Chile antes de se transferir definitivamente para o campus do Fundão.
             Uma outra lembrança que me ocorre de Neuza, durante nossas conversas regadas a boas gargalhadas que às vezes surpreendiam os outros passageiros do ônibus que nos levava para a Universidade Castelo Branco, era a sua disposição de sugerir boas dicas naquela época em que eu estava escrevendo minha tese de doutorado. Eram sugestões inteligentes que me apontavam dimensões novas ao meu estudo do conto de João Antônio ( 1937-1996).
           Tenho, sim, saudades de nossas conversas, nas quais Neuza me superava nos inúmeros relatos de fatos passados de sua vida de universitária,de professora, alguns pitorescos, alguns divertidos, outros de natureza amorosa, sobre situações que presenciou e vivenciou no mundo acadêmico que se tornariam mais segredos, casos particulares do mundo dos vivos e do tumultuado relacionamento entre as pessoas, confidências não exprimíveis do ponto de vista confidencial. Era uma ótima causeuse a querida Neuza Machado.
          Ela sabia de sua importância , de seu valor, de sua capacidade como profissional aberta e disponível ao universo do saber e da inteligência. A notícia de seu falecimento prematuro me deixa menos feliz apesar do meu afastamento a partir da minha saída há poucos nãos da Universidade Castelo Branco.Seus alunos sem dúvida hão de sentir muita a sua falta, a sua palavra alegre, muitas vezes brincalhona e educadamente irônica. À sua família e amigos envio daqui os meus sentimetos de muito pesar.
 
 
 

NEUZA MACHADO

Leia nossa coluna em
http://www.blocosonline.com.br/home/index.php
sobre o súbito falecimento de Neuza Machado, a maior intérprete de O AMANTE DAS AMAZONAS.


quarta-feira, 24 de abril de 2013

MILAGRES


BUDISMO - PSICOLOGIA DO AUTOCONHECIMENTO
Dr. Georges da Silva e Rita Homenko

Certa vez, quando o mestre Bankei calmamente pregava a seus seguidores, sua fala foi interrompida por um sacerdote de nome Shinshu que acreditava em milagres e pensava que a salvação vinha da repetição de palavras sagradas.
Mestre Bankei, incapaz de continuar a palestra, perguntou ao sacerdote o que queria ele dizer.
- O fundador da minha religião, - continuou o sacerdote - estava na margem de um rio com um pincel na mão. Seu discípulo estava na outra margem segurando uma folha de papel. E o fundador escreveu o Santo nome de Amida no papel, através do rio, pelo ar. Podes fazer algo tão milagroso?
- Não, - disse Bankei - só posso fazer pequenos milagres como: comer, quando estou com fome; beber, quando tenho sede e, quando insultado, perdoar.


terça-feira, 23 de abril de 2013

FALECE NEUZA MACHADO

Com 66 anos de idade, falece Neuza Machado de parada cardíaca.


Ela faleceu subitamente. E o livro que Neuza Machado escreveu sobre “O amante das amazonas” pode ser lido em:

O Punhal de Clarisse de Oliveira











O Punhal de Clarisse de Oliveira


Rogel Samuel


Um dos textos mais cortantes, mais fortes, mais plenos de significados de Clarisse de Oliveira é o seu "O punhal".

Eu o leio desde que foi escrito, há muitos anos.

Já foi elogiado até por uma crítica de literatura que mora em Paris, que me perguntou: "quem é esta escritora? eu a conheço?"

Lembrei-me dele neste início de ano, após um diálogo ardente com NEUZA MACHADO a respeito de certos pontos de minha vida.

O texto lembra um poema em prosa de Borges, mas tenho certeza de que Clarisse não se inspirou nele.

Eu conheci o Gerardo de que ela fala. E já devo ter visto esse punhal no apartamento de Clarisse quando ela morava em Ipanema e onde me hospedei.

Isso já faz muitíssimos anos.

Depois que ela se mudou para um lugar distante, só acessível por carro, não a visitei mais, pois estou há uns 30 anos sem dirigir.

Clarisse mora no meio do mato, numa floresta. Ela gosta, nada se pode fazer.

Leia O punhal:




O Punhal

(Clarisse de Oliveira)

A mão que acaricia é aberta;
Mas quando ela se fecha
no cabo de um punhal,
ela é mortal.
Quando meu amigo Gerardo morreu,
abriram seu armário de caça,
e me mandaram escolher
o que eu quisesse.
Escolho cinco assobios de madeira
que imitam os cantos dos pássaros,
e um grande e estreito punhal,
o cabo trabalhado em prata
e pedra preciosa brasileira.
Eu percebi muito tempo depois,
que a lamina do punhal
era mais pesada que o cabo
e isso permitia
que se eu o largasse de certa altura,
ele caia fincado na madeira
sem esforço.

Tive uma vida ferida,
no seio de uma familia
que não me compreendia.
Às vezes, adolescente,
eu segurava o punhal, pensando:
- Você me tiraria desta vida,
mas pressinto
que me acompanharás
o tempo todo -
companheiro agressor,
mas sustentáculo
onde muitas vezes
o amor nos ameaça
na sombra
mas o segredo da Vida
abre Asas em nosso Espirito.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

MAS O AURORA

MAS O AURORA

Rogel Samuel


É um velho bar. Tem mais de cem anos. O livro de Barthes, que já li, se torna maravilhoso, ali. Outro dia fui à Adega Flor de Coimbra, na Rua Teotônio Regadas, na Lapa. No mesmo lugar morou Portinari. Ao lado, a Sala Guiomar Novaes, e atrás a Sala Cecília Meireles. A adega era freqüentada por Villa Lobos, Manuel Bandeira. Na Sala Guiomar Novaes estão as "mãos", em bronze, da pianista. Constato que eram bem pequenas. Como pôde a grande pianista ter mãos pequenas? Hoje quem toca na sala é uma pianista famosa, não sei dizer por quê. Às vezes é boa. Outras vezes é "dura". Na minha frente estava um agradável senhor, com quem converso antes do concerto, sobre a iluminação, a acústica etc. Vejo que no programa havia uma certa "Terceira balada", de J. A. Almeida Prado, primeira audição mundial. Foi o melhor do programa. A balada era uma improvisação livre sobre um tema de uma música banal, ou mesmo vulgar: "Parabéns para você". Mas a "Terceira balada" era extraordinária. Depois vi que o autor era aquele agradável senhor com quem conversei sobre banalidades. Na volta não pude ir pela calçada e entrar no Metrô, como gostaria. A noite tinha caído. 

domingo, 21 de abril de 2013

sábado, 20 de abril de 2013

A Terra é um ser vivo: E nós somos o seu sistema nervoso

A Terra é um ser vivo: E nós somos o seu sistema nervoso

: Há cerca de 40 anos o cientista britânico James Lovelock fez furor com o lançamento da sua "Hipótese Gaia", proposição científica na qual ele definia a Terra como um organismo vivo, inteligente e sensível. Discutida e em parte desacreditada, a ideia volta hoje com toda a sua força original


Barco que afundou no Pará superlotado

Barco que afundou no Pará superlotado


Nove adultos e quatro crianças morreram no naufrágio de um barco de passageiros na madrugada desta sexta-feira, 19, a 500 metros do porto da cidade de Cachoeira do Arari, no arquipélago do Marajó, norte do Pará. Segundo um dos 46 sobreviventes, a embarcação transportava mais de 60 pessoas, quando a capacidade era de apenas 25. O número de mortos ainda é parcial, segundo informações da Marinha do Brasil, porque há passageiros desaparecidos. Os corpos resgatados foram levados para um ginásio da cidade. Após a realização de perícia, deverão ser liberados às famílias para sepultamento.

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Equipes de resgate do Corpo de Bombeiros, Marinha, Polícia Militar e Defesa Civil, além de navios e helicópteros, foram mobilizados na tentativa de encontrar outros sobreviventes ou mortos. As buscas foram suspensas no começo da noite e deveriam recomeçar na manhã deste sábado, 20. A maioria dos sobreviventes foi atendida em um hospital de Cachoeira do Arari, mas o governo estadual deslocou equipe médica para transportar os casos mais graves para Belém. Foi o caso de uma criança com ferimentos e problemas respiratórios, levada de helicóptero para a capital e internada na Santa Casa de Misericórdia.

Além de muita água, vários passageiros engoliram óleo diesel, que vazou da embarcação durante o naufrágio. Alguns mortos estavam no porão do barco e não tiveram tempo de sair. A Capitania dos Portos abriu inquérito para apurar as causas do acidente e tem prazo de 90 dias para concluir o trabalho.

O comandante do barco "Leão do Norte", Luís Inácio Lima, admitiu em depoimento à polícia que havia passageiros muito além da capacidade máxima da embarcação. Segundo a Capitania dos Portos, o barco transportava cerca de 60 passageiros, mas Lima disse que na viagem havia 49 pessoas, quando o número de vagas era de apenas 25. "Não sou homem de mentir para ninguém. Viajo com a minha esposa, minha filha e meu filho", declarou, acrescentando que sempre levava mais passageiros do que a lotação permitia.

Lima conduzia a embarcação no momento do acidente e disse não saber o que aconteceu. "Não bati e nem senti o barco batendo em qualquer coisa, foi tudo muito rápido", contou. Lima rebocava outra barco, que estava com problemas mas acabou ajudando no resgate de sobreviventes.

O sargento Orivaldo Santos, do destacamento da PM em Cachoeira do Arari, disse que testemunhas relataram que o barco estava fazendo a curva do Tujá e o comandante teria perdido o tempo da manobra, não conseguindo voltar, quando o barco 'sentou', começando a afundar. Na hora, a maioria dos passageiros estava dormindo. O pânico foi geral. Pessoas gritavam, crianças choravam e, na escuridão, muitos que não sabiam nadar pediam socorro. Moradores da cidade que estavam na orla do cais ajudaram a resgatar vários sobreviventes.

A enfermeira do hospital municipal de Cachoeira do Arari, Marly Rodrigues, informou que muitas pessoas chegaram assustadas e se queixando de dores pelo corpo, além de reclamar que haviam ingerido água com óleo diesel. "Atendi algumas pessoas que tiveram o abdômen distendido."

A fiscalização das mais de 100 mil embarcações que diariamente navegam pelos rios da Amazônia ainda representa um desafio para a Capitania dos Portos da região, que possui um quadro insuficiente de homens para inspecionar milhares de portos, a maioria clandestinos.

Somente na Amazônia ocidental, que compreende os Estados do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima, nos últimos seis anos foram registrados 646 acidentes e 209 mortes. Em 2012 foram 100 acidentes, que provocaram a morte de 33 passageiros - um aumento de 100% no número de vítimas fatais em dois anos.

sexta-feira, 19 de abril de 2013

O VESTIDO VERDE

O VESTIDO VERDE
 
Rogel Samuel
 
 
         Sim, toda vez que eu passava pela avenue de la Motte Picquet tinha de dar uma paradinha naquela loja de roupas caras, exclusivas, para ver o vestido verde. Era bom de ver, alegoria de nossa, da minha Amazônia. Era bom ver o traje, a indumentária transformada em arte. A toillette, coisa de arte francesa ou não, arte parisiense ou não, lembrava Burda, o magazine que ainda existe em se não me engano língua alemã com aquelas belas mulheres sob uns leves chapéus que sempre tinham o gosto das rendas desmaiadas das mantilhas das espanholas e rainhas.
         Sim, ao lado havia uma casa, talvez de doces, espécie de pâtisserie, e mais um pouco um café. Um elegante café. Em frente se ostentava a fachada da École Militaire, construída por Luiz XV, em frente ao du Champ de Mars, onde Napoleão estudou. E ficava no VIIe arrondissement, rica região de prestígio e alta burguesia. Lá atrás estava a UNESCO, que Eduardo Portella dirigiu, e várias embaixadas.  
         Por que gostava tanto eu da alta costura daquele vestido verde, exclusivo, eu que me visto tão mal, que ando pelas ruas do Rio de Janeiro como mendigo, de chinelo de dedo e uns blusões fora de moda?
         Por quê?
         Talvez porque, quando menino, minha mãe costurava e recebia o magazine Burda, em alemão, que meu pai traduzia para ela.
         Meu pai era francês de língua alemã, pois cresceu em Strasburg e ali foi educado. Sua língua “materna” era o alemão, não o francês.
         Eu vivia folheando aquelas revistas de minha mãe. Minha primeira “literatura” foi aquela, que minha mãe, enquanto costurava, me fazia ver.
         Minha mãe costurava muito bem. Durante um tempo, ela costurava “para fora”. Lembro-me de que ela estudou com a modista carioca que fazia os vestidos de Teresa de Sousa Campos, com quem minha mãe se parecia. Aquela modista, que morava na Prado Jr., esquina com Av. Atlântica, viveu um tempo em Manaus porque seu marido teve negócios por lá.
         Minha mãe era uma mulher elegante (e ainda o é, aos 84 anos). Foi uma das “10 mais elegantes de Manaus”, apesar de não ser rica. Mas costurava excelentemente.
         O vestido verde permanecia sempre lá, caríssimo e exclusivo, como no outro lado do rio Negro aquelas árvores. Na outra margem do Igarapé do Inferno, do meu “Amante das amazonas” estão elas, vejo-as, entre as colunas das folhas, vêm da curva descendente que sai do verde-escuro para o verde-cré, até a fímbria da saia de aço da fria lâmina do rio. Como nessa matéria nada é absoluto, começo afirmando que o vestido era todo feito de pedacinhos de pano verde emendados uns aos outros pela parte de cima, e os retalhos caíam como folhas das árvores, como da copa das árvores, arriadas pelo pesado sol e forte, o chão liquido filtrado pelos raios através do verde escuro, as minúcias das luzes em redes de cobertura fofa, arriscada, acamada da folhagem seca como patê silvestre, pavê molhado, folheado, cremoso, marrom, onde se deitavam flores selvagens - sim, aquilo era a vestimenta do Igarapé do Inferno re-visitado, depois de tanto tempo, invadido, muito além do ponto onde a minha imaginação e o meu delírio anterior tinha chegado, nos limites do fim do mundo.
         Aqueles tecidos escondiam a mata molhada, literária. Um observador de bom olho nada veria ali, além de um vestido, mas algo havia, por trás da glorificação daquele esplendor de veludos e de sedas de um vegetal amazônico em plena Paris. As rendas da saia eram o que se podia chamar de solares, e penetravam minhas retinas ensandecidas como lâmina de faca, sincopadas e intrusas, compridas, naquele parque aquático de gigantes antigos, insatisfeitos por serem incomodados, dignos, altaneiros. Então era o rumo ignoto do arcaico, do mítico, do inominável, do distante, da paragem dos seres mágicos como Numas. Dir-se-ia que as estruturas antigas do mundo estavam escondidas ali, que lá o mundo terminava, nos seus desconhecidos motivos...
         E súbito eu via, na margem do rio, aparecer uma mulher vestida de verde com aquele vestido, e dançava na parte mais elevada do terreno, e com o braço erguido sustentava um vaso ritual, de onde partia uma seringueira já crescida. O tronco da árvore passava por trás dela, e era a estátua, agora verde, que D. Ifigênia Vellarde tinha trazido da Europa no fim do Século passado.
 
         Atrás daquela mulher congelada estava - magnífico, supremo, inominável, majestoso - o Palácio Manixi!
 
         E aquela mulher desfilava pelos salões do palácio, e das janelas abertas saíam grossos e longos galhos de árvores frondosas, nascidas por dentro, e assim parecia que o Palácio tinha criado asas e ia começar a voar. O Palácio se cobrira de uma pátina de beleza extraordinária, de uma vitalidade monumental - estava ali, vivo, lavado, enlouquecido marco de seu tempo. Era um santuário, dominava o ambiente, um templo antigo, perdido no meio da floresta, de uma outra era. Toda a luz ao redor irradiava dele, de uma civilização de um outro século, de um outro mundo desconhecido, limite vivo do luxo e do esplendor da borracha do fim do Império.
         A floresta avançava contra ele, construindo um estranho cerco sobre a moldura e irisação de sua arquitetura antiga coberta de cipós e de galhos de uma folhagem abundante que vinha de dentro dos salões requintados e criavam a aura de um extasiado espetáculo.
         Mas era no “Amante das amazonas” que aquilo se dava, não em Paris.
         Pois todos os suntuosos fantasmas exsurgiam dali. Toda a História desfiava o seu curso. O tempo ali se congelava, inerme, no meio dos amplos salões, desaparecendo ao longo daqueles mesmos corredores, escorrendo ao longo das paredes pesadas de estuque, lúgubres, de uma decoração barroca. Eram seres invisíveis todos mortos que despontavam, uma vez mais, arrastando longos e pesados vestidos de veludo verde, envergando reluzentes casacas, esquálidos, saídos daquele sepulcro do luxo daquele tempo, através daqueles amplos espaços povoados de símbolos, dentro daquela enorme construção de um outro mundo, do fim de um mundo de onde todos tinham fugido, povoado de demônios, culpados, expiando suas culpas mortas.
         E à noite desfilavam, ao longo daqueles corredores, através da seriação de janelas e portas, refletindo suas sucessivas silhuetas nos espelhos apagados, misturando-se com figuras pintadas nas paredes, e famintos, gélidos, sem ousar sair ao jardim abandonado, aquém do porto as ornadas figuras de fino e feroz olhar que não permitiam a ninguém penetrar naquele santuário do desperdício da riqueza antiga e condenada, ninguém pudesse subir aquela escadaria e atravessar aquelas salas além daqueles mármores trazidos há incontáveis anos para ladear-se com o cinzento e o estilizado. Era como se dissessem: “Desaparecei!”. Ou como se ameaçassem: “Afastai-vos!”.
         E à noite a figura do antigo e descamado dono poderia ser vista, através das janelas, como se o iluminasse uma catedral, mostrando-lhe a face horrível e desesperada, os olhos mergulhados no escuro, à procura de algo, à procura do tempo, à procura de si - e passando sem que ninguém o visse na sua infinita miséria. E todo o esplendor daquele luxo antigo era uma tortura sinistramente mergulhada na destruição de um império ali por fim silenciado.