O
RIO NEGRO
Rogel
Samuel
Em
1729 morrem no rio urubu
vinte
e oito mil índios
assassinados
Mas
somos fracos para esta luta
e
fala afiada.
Mas
na margem a cozinheira corta o peixe
como
o selo que pincela, amara.
Três
homens remam montados nas águas
Oh
estamos fracos para a luta
preparada
selva absoluta.
No
caminho vendem os armadores as ilhas
cai
a chuva sobre as lajes da tarde
que
estamos fraco para a luta
preparo
o corte a morte.
Preparo
o rio, urubu, orgulho das águas
imprópria
para o passeio público
não
o passado branco amigo
gesto
sobretudo de suas partes
ali
viram morrer 300 malocas
no
rio urubu rio negro da morte
o
que passa entre o mato aziago
É
belo? É limpo? adejam papagaios
entre
mil insetos de teia de ouro fino
o
rio não esquece
o
rio nunca esquece
nunca
lava
a
hecatombe a fila a corrida
Naquele
dia seguimos até o Celismar
na
sincopada batida de Ananda
bois
espiam da margem
crianças
olham ocorridas
gritam
cios cicios curumins
passarinhada
menina
a
cunhantã levantou voo?
o
curumim mergulhou? o rio urubu prossegue
sua
marcha fúnebre ritual líquido da
corte
onde
um dia, nesta tarde
não
me deixaram mergulhar
como
se ali o rio pudesse
para
sempre me tragar
quantos
olhos aparecem? quantos ameaçam?
na
leveza do anum canarana
a
criança ao longe vista
o
rapaz nu ri ou está chorando?
o
sol se põe naquela tarde
densíssima
de calor e escudo
e
escuro e orgulho o rio negro
fecha
suas portas e véus
sobe
para os céus suas veias
iluminadas
e nervuras
acesas
lá
estão milhares de índios mortos
ranger
de dentes
o
rio chamado urubu
sons
percorrem suas luvas pretas
exclusividades
de belezas
urubu
rio range dorme cemitério norte
risca
fio apertado brilho fantasma
sobretudo
preto urubu balança e nos ameaça
nos
quer no seu túmulo histórico
heróico
amazônico
emparedado matagais gerais
alta
terrível floresta
transforma
as corridas amas
úmidas amantes
#
rio
doente para sempre
que
desde o município de silves
está
pronto para ejetar seus encapuzados
enlevos
e
inocular a morte
como
as suas aranhas
rio
que se enluta de capa preta
desde
o Século Dezoito
ferve
meu sangue a saliva dos mortos
escuro
e orgulho
onde
um dia, nesta tarde
meu
pai não me deixou mergulhar
como
se ali o rio pudesse
para
sempre me tragar
que
não entendo esse rio
não
me fala para mim estrangeiro
me
repele me ameaça
com
sua capa de aço
colorido
festival amanhece
que
cor é essa? que desconhecida
alegria
em bandeiras em pânico?
o
capinzal desce o rio de uma vez
ilha
de capim que um animal levado
pelo
azul cheio de tudo
está
frio? está calor?
estou
morto? sobrevivo?
a
luz não é simples
onde
a morte está nada é simples
ainda
lá e passam chorando
populações
indígenas navegando
que
amaldiçoado por dentro
do
escuro e orgulho
onde
um dia, nesta tarde
meu
pai não me deixou mergulhar
como
se ali o rio pudesse
para
sempre me tragar
o
enigma passa sobre o plano espetáculo
não
serei o mesmo depois do fim da era
meus
pais sepultados ali
minhas
águas falam de minha história
mortos
meus irmãos eu detenho
oh
irmãos, detenhamos essas águas
pois
ainda são sangue derramado
mantenhamo-nas
as de mãos dadas de mãos tigres
fiquemos
alertas e não nos afastemos
unidos
nesta desgraça armada
a
aurora retardada nevoeiro
que
tudo envolve e ameaça
a
noite retorna contínua
sua
caminhada fria
o
escuro e orgulho o frio o canto o
pranto
o
seco as nossas desconhecidas línguas
a
palavra perdeu seu suor
nesta
mata tudo acabou
dentro
do calor há muito frio
nuvens
negras de sol
sobre
o pênis de seu risco preto
vêm
tímpanos de guerra
não
nos deixe, amigo, não
não
nos abandone
ainda
podemos fazer um pouco de noite
da
noite que não retorna
viveremos
esses momentos
como
vivíamos outrora
soubéssemos
o que fomos
teríamos
extintos os mesmos registros
sentiremos
a dor, a última dor
de
nossas queridas mães selvagens
traspassadas
nas lanças caídas
perdidas
reconheceremos
o caminho
morrer
não é mais adiante no amorfo
lúcida
visão do dia
meu
pai já está morto ali
já
amanhece a ponta do sol
as
últimas bocas dizem as últimas verdades
pouca
irradiação tardia
meu
pai já está morto nossos nervos
selvagens
escondidos
no mormaço venhamos, unamo-nos
contra
tal atrocidade
caíram
esmagados e obscuros
os
principes da amazônica cidade
não
sobra registro livros história
seus
nomes se perderam
mesmo
em papel crepom raça extinta
saiamos
já daqui deste poema
com
tudo o que fomos
não
se volatizaram esses altos valores?
oh
verdes claros cimos
ares
luzes
inatingíveis
estamos
aprisionados no passado
é
o pó a pedra a extrema a vermelha
pedra
do rio negro
do
rio negro calado
ó
calar subterrâneo que grita alto
não
me conformo, meu deus, eu não
me
conformo
usemos
algo, sangremos algo, falemos algo
o
sangue a nossa voz
a
nossa veia acordada
a
transfusão de nossas águas
não
fiquemos assim como nada
não
fiquemos parado no tempo
da
rota história
vamos
ao traspasse do tempo
ou
não teremos história
marco
pavio lamparina navio
voemos
para os extintos
sem
nome sem nunca mais
pois
em 1729 morreram no rio urubu
vinte
e oito mil índios meu passado
hoje,
em 1984
ainda
sofremos o sussuro assombrado
seres
ocultos na floresta
no
escarro noturno na folha
ruídos
surdos da morte
silvos
de cobra
grito
que se atrofia
que
somos? apenas homens
culpas
cospem jogos
línguas
secam vazias de falas
o
futuro desaparece no passado
ondas
de óleo negro como esperma
sob
um bafejo roto
louca
magreza fome desterro
derrama
o rio partes expostas
e
geográfico não mais corta
seu
beijo frio horizonte amarelo
que
nada nasceu ali depois nem nascerá
nem
os pássaros cegos
o
céu fantasma estéril
o
amor misturado ao pasmo do passado
as
paisagem irritadas
as
aranhas e escorpiões afiados
para
sempre este
sempre
urubu, sempre interno
sempre
negra flor, sempre inferno
que
nós nos lembramos do dia
que
nos surpreende afinal
as armas tocaram as peles
o
rio o sangue negro detesta
o
castelo a testa a proa
a
fome as estrelas a morte os ares
e
há pontos de luzes verdes e vinagres
na
costa desta floresta
as
coisas são diamantes
e
só não ouve quem não quer o ranger de
dentes
espinhos
venenosos se postam
preparada
armada a mata
e
há urubus e no cornicho atenção
dos
cadáveres históricos
de
um grande cemitério
(mas
tudo passará. No mesmo fio da espada
e
sob o mesmo tom da corte negra)
ó
tristes homens mãos de pedra
-
um índio vinha e subia o rio de repente
a
todos se oferece o rio de cinzas
sua
divina partilha
ninguém
mais sabe nada
perambula
entre nós cachoeira
(mas
o anjo e a estrela entram na mesma pupila
sua
auréola bela e amiga
refaz
a alegria antiga
e
eu choro o festival que nunca passou
penetro
o jardim e esquecidas
as
flores sobre a balsa passam
amaldiçoadas
passam
de
Manaus a Itacoatiara
nem
sabem os demônios das margens
o
chumbo soberano.
Pois
perto é a morte
com
sua mão afiada
E
a ponte o caminho
está
entre o tudo e o nada
e
somos raros agora
geração
aziaga).