quinta-feira, 29 de junho de 2017

ROGEL SAMUEL -CRÍTICA DA ESCRITA

ROGEL SAMUEL: CRÍTICA DA ESCRITA





CRÍTICA DA ESCRITA


ROGEL SAMUEL


A primeira edição do Autor é de 1981. Esta é uma edição online totalmente revista e reescrita.

NA TERCEIRA MARGEM DE GUIMARÃES ROSA




O que a leitura vê, ao aproximar-se do texto: O pai, com seu viver misterioso, derrama em torno uma espécie avessa de domínio. Esse pai é árbitro incondicional de todas as divergências de sentidos. Quem é? Que é? Ao esforço das interrogações angustiosas, o pai responde com uma idealização, infinita, a quem lhe rompe a trilha verbal. No lugar do pai (no Ali, no Meio), não chegará a correção dos poderes constituídos: O pai é o próprio poder da ausência. Ali não o atormenta nenhuma consciência de impunidade, de violação de todos os direitos: a Lei do Pai. Ali fica, no anonimato da sua culpa máxima. Aquela margem é um vácuo, um hiato, um parêntese: O não-código. Era um vazio prodigioso: Naquela imprecisão, em que se entredisseminara, o pai acelera o tumultuar, desencontrado, dos signos familiares. Todos se calam, porque os deprime o assunto. O pai prolonga, no ritmo maldito do seu viver, o exílio insuportável do filho: O exílio de Pai. Quando o pai retorna, como notas de estranho clarim, os semas se precipitam, coordenados, saltando de todos os lugares do seu discurso, para esmagar o filho, sufocá-lo, cortar o seu discurso narrativo, a sua fala (com a sua falta). O pai, no seu esconderijo, no seu homízio, provoca a ruína social, o rumor, com indiferença e com culpa, seu errar, sem temer um juízo, sem dar explicação, na cumplicidade muda da face das águas. Sua liberdade é, portanto, um crime contra sua própria lei:

«e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas
ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e
desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito
um jacaré, comprida longa.»

O que se espera do Pai de «A terceira margem do rio» é a sua “cura”, sua desistência, o organizar-se dos blocos da sua lei, construtora do curso do viver. Atirando-se ao espaço das estações, insiste o pai num desembainhar do tempo, no corte que vê avançar, no desmanchar das coroas da idade perplexa, na indisciplina de seu próprio ofício órfico, na dança, na evolução de planos sucessivos da coreografia do seu ir-e-vir, sempre, sem esperar um fim, ou esperando o filho, até nos momentos de suas apresentações, de suas aparições momentâneas, mas com brilho e poder, afastado-e-perto dos que ainda (?) ama (?).
Com seu engenho aquático, ele perfura o tempo (“o que é, é saudade”, Grande Sertão: Veredas), miserável, mas glorioso, na sua recusa, no seu universo flutuante, com/sem distúrbios: Só assim parece explicável que ele não suma, nunca, de todo, e nas vezes em que aparece continuar a ser no longe-e-perto do amor.
Sua “viagem" deixa o trilho virgem de um sem número de estragos.
As vozes enlouquecem (o que é que vão pensar? diz o discurso do Outro), desciam em desconversas, explicações, hipóteses e lendas: Mitos? O pai é um Mito. Fundamental. As vozes abrem, repetidamente, o avesso da antífrase, secam infelizes, caem melancolicamente, em depressão, querendo - ainda - conservar o rosto da figura (ousaram o Ousado? o Supremo Sonho?).
Qualquer índice que por ventura apareça é analisado, interpretado, o enfoque muda de mão, se prolonga, intrinca o seu percurso, no aveludado das conversas sigilosas, silenciosas, da imaginação secreta enredada no solo do tempo, no desconhecer da conjunção das estações da vida, de onde vem o vento do esquecimento, que atrofia o invólucro do presente nunca ofertado, e vem a chuva e o arrasta para o chão sem fundo dos baixios e vazios.
Que aconteceu? Desconversam vozes. E silenciam, desaparecem. Confusas e tristes. A tristeza das vozes do discurso, exiladas da albergaria da tradição: O ar cheio de signos, de cantos, de cantores, de lamentos, de fagulhas e respingos, de ninhos fugidos, não se encontrando mais, no ar do abandono da inexplicação, o condicionado nas calhas da velhice, na história, na humana, na amortecida Ida, pelo fluxo do não-permanente, do vir-a-ser. Vozes perplexas do não-lugar. O código das vozes da perplexidade:

«Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram
de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o
entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem
sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se
desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes
das noticias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras,
até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a
tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava
no rio, solto solitariamente.»




O SIGNIFICANTE

O significante é o pai-canoa, que se desloca, com seu desígnio funesto, violando, entre outras, uma lei: A da intersubjetividade, em que se motivam a união dos membros sociais.
A complementaridade de substituir o pai, por parte do filho, tem o patronato de teses psicológicas, psicanalíticas, políticas, antropológicas, sociológicas, históricas.
O rio dá, à paternidade, um novo sentido para sempre: O pai mergulha (retorna) no inconsciente, que é o discurso do Outro (que dirão as vozes?).
Os sujeitos (pai-filho) devem revezar-se, um sendo substituído pelo outro.
Qual o lugar desta substituição? Que vem representar o puro significante pai-canoa? (Sobre a primazia do significante, ver Lacan: “Seminário da carta roubada”).
Ir para o rio social: Ir é dolo.
A matéria social não quer que ninguém vá, pune a ousadia de sair para nova dimensão.
Os problemas se complicam, na procura dos fins de restituição do pai à condição paterna. O pai deve ser reconduzido ao seu lugar na canoa com a mãe (canoa fálica).
E o filho, este se sente culpado por desejar a morte do pai, seu afastamento da mãe, o deslocamento com sua fálica canoa.
O pai se afasta com sua fala, isto é, com sua canoa.
A canoa é a transposição da fala paterna, do falo.
Quando o pai manda fazer a canoa, está erigindo um monumento (que é transposição de sua fala, de seu silêncio, de sua falta), emblema daquilo que retira da mãe, para sempre, para o sêmen das águas femininas.
A fala nadará, daquele momento em diante, no grau de feminidade pura.
Neutralizada pela horizontalidade em que se deita, a fala desaparece na semiose pura da liquidez da mulher aquosa da mãe d'água. Ela retorna àquele estado pré-uterino, o do espelho do rio humoral, placentário. A canoa, objeto perdido, ao qual se pede, e perde, aquele dolo (fálico).
Não se pode restringir a fábula ao uso da tridimensionalidade interdita do rio, apenas.
O uso é o uso da fala familiar, que se aparta, que se afasta, que se cassa.
Ausentando-se, com sua canoa, o pai resolve, retira do núcleo familiar o dom da fala, em que se sustenta a ordem simbólica da civilização e da escrita.
Mas sua retirada se dá tardia, a ordem simbólica já está instaurada no narrador filial. E assim o que se lastima é a perda de origem da fala, tardia e castrada. A fala sem origem se perde, se prostitui, se desconsolida.
Na brecha do rio se inscreve a escrita da Fenda, lá há a escrita clandestina, a esquecida de seu miolo, de sua semente.
Esta complexidade das vertentes do texto não se simplifica, mesmo amputando suas partes, os membros da estrutura.
Nem promana dos resultados a complexidade verbal da interpretação, que só faz levantar o pano, e não se trata de conseguir, na leitura, resultados mais complexos, mas confusos.
Durante todo o texto (“nosso pai“), o pai se repete, ele é a poesia do seu imagismo familiar e ecolalia, na tendência do filho de repetir automaticamente as palavras ouvidas.
Esse pai que repete é a pulsão, o ritmo. Seu brilhantismo temático. Repete-se para que não desapareça de todo.
Acresce que o texto interpretativo tem de vir em estado de liberdade, de não compromisso, o que não deixa de ser: Livre com respeito às leituras consideradas corretas.
Só há um endereço: O leitor, na estima e no reconhecimento.
Vamos escrevendo o que nos acorre.
Assim o rio.
Ele tem a dimensão da linguagem que vai aparecendo, sua leitura se vai fazendo à medida que os acontecimentos simbólicos vão ocorrendo, a saber, a linha discreta e segmentada do fluxo inconsciente, que é o discurso das vozes fluviais, das vozes que vêm do rio.
Ali o pai habilita o filho, empresta a sua voz, seu discurso, na cadeia significante do jogo do ir-e-vir da sua casa, da sua causa, da sua canoa.
No seu lugar se levantam incidências imaginárias, aquilo que a leitura vai tecendo, registrando, produzindo:

«A gente teve de se acostumar com aquilo. As penas, que, com aquilo, a gente
mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que
queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava
para trás meus pensamentos, O severo que era, de não se entender, de maneira
nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor,
sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu
velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do
se-ir do viver.»










OS SIGNOS DA TERCEIRA MARGEM

De longe no rio surgem palavras, signos inusitados, estranhos à generalização do desconforto náutico da canoa fantasma, para desequilíbrio da verdade dos fatos, esquema psicanalítico de que o anacoreta é o desvario, a sombra e a marca de um limite. Sua insânia é uma instuspecção coletiva, contagia e envolve a absorção da própria prática da vida. Quando surdir, duende, refluído, recaído sobre si mesmo, predileto de si, portador do atemporal de seu passado, peregrino do rio e agora estrangeiro, preso, preso da mitologia, preso de si mesmo e a si mesmo pelo obscuro de sua própria soltura em tão poucas páginas, dentro do seu hábito de narrativas e clausuras, absorto, no germinar e no disseminar do contágio de seu desvario, ele será o verdadeiro contra-herói de uma genealogia moral, patriarcal, peregrino e único que, na estória, é passageiro da vida, embora circular, embora cíclica.
Aceita, melancolicamente, o filho, a sombra dos gestos, índices, o exaspero das lágrimas, a fascinação das promessas da infância (de ir, também) , num transbordamento de queridas crenças, a unidade da predestinação. Na planura das almas que ficam, riscam-se as aventuras externas do pai, seus movimentos espontâneos. O poder multiplicador dos seus fragmentos errantes de nós mesmos, paisagem imaginária, ostentações insatisfeitas e inatingíveis: A alma do rio é extensa e tênue, comunica a mobilidade de auras, delgadas, temporais, a inconsistência interior, as camadas estratificadas do solo tradicional que se quebram pelo recurso do silêncio, o não ao verbo, pondo em crise o narrador (afluentezinho do rio). O silêncio do pai (só raros gestos) , um cachoeirar sem barulho, manifestação plena, um esquema seco, restrito, despojado, mas não estéril, sobre os fios de prata das águas luminosas, ou sobre a tonalidade veludamente negra da noite, o silêncio do pai é um simbolismo, símbolos marchando, constelações de espíritos das gentes, retirando-se o pai não se isola em si, somente, mas nos isola, a todos, com a dificuldade de conciliação e de articulação de seu anti-discurso, eliminado, reduzido a uma solidão que se desenha, sem mais nada, nas regiões mortas das águas, em que todas as coisas parecem recordadas, vivem civilizações paradas, geleira social: Uma ilusão feraz, fecunda — o pai não formula a questão: Quem me ama? é amuado pelo filho, pelos familiares, ama, há amor, a outrance.


Quais traços, limites (limite lacunar embora) desta crítica que se está escrevendo sobre A terceira margem do rio? Os fundamentos da hermenêutica (da interpretação), da teoria literária. Não uma exposição particularizada, setorial, limitada (os limites?), a um determinado modo de investigar (este não é um texto de ficção, é um texto crítico; esta não é uma crítica presa, mas uma crítica livre, liberada, sem compromisso, que se quer fazer como um livro, que possa, entretanto, ser lido como um livro de ficção: A ficção de uma critica livre, liberada, em que o sujeito, o texto, elaboram juntos uma literatura de segunda instância: A literatura “questiona” o real, a crítica “questiona” a literatura).
Assim revela-se uma decisão, uma escolha, um risco (este é um texto crítico?): Uma atitude e uma concentração, para que não se perca o leitor, os textos, numa pluralidade disseminada — a concentração, no conto roseano — para que não nos esqueçamos de nossos olhos, no panorama amplo das variedades, das vias de uma ciência que, imersa no mundo do pensamento ocidental, abrange-o e — de través, da escrita — é capaz de um questionamento quase infinito.
A proposição se dá em razão do limite (ilimitável) do alcance da teoria literária do texto roseano, sem pecar pela omissão de escrever tudo o que nos vier, nos chegar, sendo sugerido, pelas lembranças do texto (e pelos seus-meus esquecimentos), irrestrito a todos os textos lidos, imaginados. Através do conto de Rosa se poderá lastrear todo o percurso teórico e técnico, porque o sentido do conto, seus sentidos, é amplo, radical.
Consideremos que há três tipos de discurso:
1 . Discurso representativo-científico.
2. Discurso que se vê a si mesmo como produção de sentido.
3. Discurso onde se inscreve uma reserva (do ser do ente).
O discurso que se vê como produtor de sentido (geno-texto, diria Kristeva) é concorrente ao próprio texto poético de que é meta-discurso, meta-texto.
O discurso da reserva (no sentido heideggeriano de “retraimento”) é um belo discurso hermenêutico, que faz a escavação do sentido.
Eis aí: A proliferação dos discursos das diversas ciências do discurso. Procura arqueológica, nos fundamentos, em que tudo se funda.
E se aprofunda. A área de questionamento ontológico (refere-se ao ser; e não ôntico: Que se refere ao ente) , fundamenta todos os outros, pretende criar as bases de edificação da própria condição de pensar, das condições em que se formulam indagações sobre a natureza dos fatos do inundo. O discurso ontológico procura o “porquê” inicial, inaugural, de onde salta a luz que ilumina os discursos das ciências (discurso representativo-científico), e irradia um texto que, na produção da força do que diz, deixa entrever (como na Caverna), entre as sombras, a subsistência da poesia que diz, e interpreta.
A canoa é um significante, isto é, um ente. Esta canoa é o significante do pai, do Pai. Tomemos o caminho da canoa: O ente e ‘o” nada.
Este nada não é; o nada que se erige a partir da partida da canoa do pai. Não é, somente. É algo mais anterior, mais nadificante, mais para trás da possibilidade de pensar. A canoa inaugura, com sua reserva, um estatuto nadificante. Ela se retrai. Ela se retira, do nível da margem primitiva (da existência), mas não recai na margem segunda (da não-existência), perde-se num vazio semântico (a margem-terceira não existe). A canoa, ali, passeia na semi-existência de seu não significado, na não-significação. A canoa é um Não. O poderoso Não. O interdito.
Ressaltemos um fato: A introdução, da canoa, no terreiro nadificante. Não que a canoa não seja matéria, mas sim que não-seja o que é: Significante do Pai. O significante em reserva.
Tema de uma correspondência escrita com a canoa: Ente/nada.
Do nada, nada se pode dizer, o nada não é. Que fazer ante este vazio do significado? (nada de significante). Pois o Nada é a Omissão, não só de significado, mas também é um não-significante (a não ser margem direita ou esquerda, nada). Pois se o “conceito” nadificante em nada repousa, no significante terceira margem nada é, e, por isso, não-instituído (como, aliás, não é a Terceira feira, de João Cabral) como algo que se tem em mente impossível, algo sobre o qual não se pode ter uma idéia. Nada, em última análise, e no fim das contas, não é nada, não-nada, nonada, omite-se do pensar. É a iliminação.
De que, então, fala o conto? Diz o mundo, isto é, o mundo do homem. Em outra palavra: O texto dá conta da existência de um modo "particular" de existência, a existência enquanto canoa.
Existência é o modo particular de ser do homem. O modo que traz consigo um sentido — o sentido do seu mundo — e um aliado — a co-existência. Tanto o sentido, quanto o aliado, valem zero no que se refere à existência-canoa.
Na filosofia se definem falar e dizer, num certo sentido: O falar remete ao falante, o dizer remete as coisas mesmas ditas.
Ora, o narrador diz o mundo, inscrito na curvatura do caminho que leva ao rio (“Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar”). Diz o mundo histórico (no sentido em que Dilthey a vê, a história hermenêutica, como compreensão).
Pois, se o narrador diz um mundo que inexiste, está quase a ver o mundo retraído do pai (“Nosso pai não voltou”). O contexto conhecido pode vincar a possibilidade de uma libertação da grelha conhecida, rígida. Aponta para o além dos esquemas. Virado para o lado vestibular, translato, banda inconteste e abrigo enriquecedor do estranho lugar de labor do pai: O empenho de viver do pai (“Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos”), a narratologia louca de um objeto lúdico, instrumentado (“Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa”).




A TÉCNICA, OU A MORTE DA LITERATURA

Esta tipologia cita o leitor (chama-o) para a prática da escrita, e sua leitura, no centro da decisão.
A terceira margem do rio é um texto clássico (a narração é tradicional, por ela se conta uma estória, ações). Os textos clássicos bailam na grande massa da Literatura, sua grande quantidade, a totalidade de sua constituição, a multidão de sua maioria. É necessário, diz Barthes, avaliar essa grande massa. Avaliar é apreciar o plural, estimar a propensão para a proliferação de sentidos; reconhecer a grandeza de um texto é calcular quantos corpus dele serão levantados, com quantos códigos ele é tecido, quantos discursos sobrevivem nele, reconhecer sua grandeza, sua intensidade, seu merecimento e sua perenidade. A leitura é um aval, e um esquecimento (a leitura não dá conta de todo o plural do texto, de todos os sentidos em avalanche, o texto não abona uma leitura como sua primeira e única).
O critério de avaliação, de avaliação, é o da interpretação, isto é, do exame de apreciação e verificação de quanto cada texto legível (clássico) pode pôr em circulação.
A escrita do texto clássico mobiliza, isto é, sua essência é, ao mesmo tempo, individual e múltipla, se transforma incessantemente, há ineficácia na apreensão e gramaticalidade.
O valor do texto está em que não se lhe pode dar um sentido pleno, conclusivo, mas sim deixar falar suas diversas falas e vozes numa pluralidade de discursos.
O texto clássico tem, entretanto, um aparente plural parcimonioso (o máximo de pluralidade do texto é o máximo de ambigüidade, nublaria sua obrigatoriedade de representar o inundo, o texto mantém-se coerente graças à forma lógica que o sustenta).
Um texto de grande multiplicidade, como A terceira margem do rio, provém o intérprete de várias entradas de validade, vários acessos, vários ingressos críticos, algumas passagens culturais, entradas de acessibilidade além (ou aquém) da leitura primeira, lisa, uma chegada interpretante para cada caso crítico. O texto se manifesta por acessos de uma variegação sortida, alternada, a arte de sua variedade.
O texto libera vários códigos, num entrelaçado de textos (o leitor também tem seu(s) texto(s)) . O texto clássico é leitura infinita. Lê-lo é deixá-lo ser plural, não dar-lhe um sentido, não formalizá-lo, nem dele erigir um modelo que o explicasse de uma vez por todas.
Mas, como o texto clássico é medianamente ambíguo, inter-textual, podemos enfrentá-lo, confrontarmo-nos com ele num exercício libidinoso de prazer, encará-lo, atacando de frente: Separá-lo por frestas, penetrá-lo no seu encantamento, enfiarmo-nos por suas células. Isto é: Interpretá-lo.
Essa atividade (a interpretação) é, e não é, alienante. De um lado, está a guerra-sempre-iminente, a fome, a miséria. De outro está o texto, sua lisura é percorrida com a vista, que colhe, que recolhe uma forma igual. O texto é o mundo: Suas guerras, suas terras, as dificuldades, as lutas de classe, lê-lo é ler o mundo.
Podemos ler o texto com a conotação, que é um sentido segundo, cujo significante é um outro signo.
O próprio significante da conotação é um outro signo. O sistema de significação da denotação é chamado primeiro. O sistema de significação da conotação é um segundo.
A conotação pode ser uma senda para as portas da escrita clássica.
Mas A terceira margem do rio não é um texto tão clássico assim.
Por essa razão, a conotação não é freqüentemente usada ali, mas as leituras super-postas de uma crítica mista:
Crítica estruturalista, semiológica, psicanalítica etc. A leitura, qualquer leitura, sempre quer uma decifração conotativa: Visa sempre ao sentido segundo, aos sentidos segundos, porque o leitor, que se aproxima, já é urna pluralidade de textos.
O leitor traz seu texto à baila, na dança significante deste construtivismo crítico. O texto do leitor é produto do que leu, do que viveu, do seu corpo.
Não há, na leitura, uma objetividade crítico-científica. Não há, também, uma extasiada e impressionista subjetividade. Há tudo, e outra coisa: A leitura, diz Barthes, não é nem objetiva (representando um objeto sem sentir-lhe as carícias), nem subjetiva (reduzindo toda existência à existência do sujeito leitor, sua impressão estética, sua sensibilidade). A leitura é um ato topológico.
A topologia, de um ponto de vista intuitivo critico, é o estudo das propriedades de uma figura (a do texto), propriedades que não variam sob o efeito de uma variação contínua. Por exemplo: De um ponto de vista topológico, uma circunferência, uma elipse e um polígono (isto é, linhas fechadas não entrelaçadas) são equivalentes, precisamente porque deformáveis de uma a outra. Não se distinguem, por exemplo, do ponto de vista topológico, uma superfície esférica da superfície de um cilindro.
Nessa analysis situs, a tarefa é de movimentar sistemas que não se limitam ao texto (não param ali) nem estão no leitor (não são criados por ele). Os sistemas explodem do texto para a disseminação cultural, são sistemas semióticos, psicanalíticos, históricos, sociológicos, são movidos, movimentados pelo ato crítico, transladados, não são meramente encontráveis ali, mas são sistemáticos, isto é, funcionam no agir crítico da leitura. O leitor não os encontra prontos, quer dizer, não os pesca. Nem os cria, numa invenção modificadora do lastro textual.
Ler é nomear sentidos, fazê-los funcionar, dar-lhes corda, os sentidos estão e/ou partem dali. Ler é um ato de mobilidade, de por em movimentação os sentidos. Mas não todos. Não há um todo, um limite. Por isso, diz Barthes, o esquecimento crítico é um valor do texto, haverá sempre sentidos esquecidos, nunca se poderá reunir todos os sentidos na arena da rigidez de uma grelha analítica.
Essa técnica vinca a marca da liberdade, não aponta para esquemas rígidos, vira para um carteamento cultural. O vestibular do texto faz uma reconstituição translata, um enriquecimento que paralelamente atinge o texto, um labor orquestrado por uma narratologia alegorizante, quase um objeto lúdico desse leitor instrumentado, armado, que é o crítico. O texto, um objeto lúdico, lúbrico, torneado habilmente pela criteriologia que se resolve em espetáculo, de modo erótico, diante da escrita eleita. Não uma clarificação, mas um funcionamento; a persecução de um trabalho amoroso, não aplicável de modo indiferenciado a qualquer texto, nem arraigado a um propósito ou uma concepção que substancializa. A interpretação é uma pesquisa de sentidos, em relação à produção do texto, uma hermenêutica de penetração, ultrapassagem, descoberta de sentidos coerentes, sob o domínio, apesar de tudo, da vigência da subjetividade do crítico, um momento, um quase-pastiche, do texto e da pluralidade cultural que ele move, do travejamento técnico-artístico dos seus rumos semânticos, de sua produtividade, de sua prática, se o leitor disser que o crítico usa o texto como pretexto para escrever não estará errado; já não se pode, nesta nossa época, fazer literatura; a literatura passa a porejar os textos teóricos, isto é a morte da literatura, e o nascimento do texto.
Não haverá um conjunto final (da porta de saida do vestíbulo), a construção armadural de um modelo do texto. O texto é uma rede de mil entradas. O texto único, o único texto único: A Literatura (corno um só texto, i. e, o que vale por todos os textos, a Literatura como único texto; a Literatura, comum a todos eles).
Essa entrada do texto (tecida de mil portas) é uma perspectiva de vozes vindas de outros lugares de texto, de outros códigos, numa fuga, cuja teoria e a leitura, a Diferença da Literatura.
O texto deve ser lido passo a passo, diz Barthes. Desse modo, o passeio é mais completo, pode-se observar a reversibilidade das estruturas de que o texto e tecido, na talagarça textual: “Estelar o texto em lugar de condensá-lo” (S/Z, p. 20).
Para interpretar (levantar sua fala natural) o texto, devemos segmentá-lo (cortar sua fala natural) em lexias — que são unidades de leitura, o melhor espaço (e o menor), onde se possam observar os sentidos, a densidade dos códigos. a manifestação das conotações, a voz das vozes. Cada lexia, diz, não deve ter mais de três ou quatro sentidos a enumerar, a perseguir, a funcionar. O levantamento sistemático de cada lexia não visa à descoberta da verdade do texto, não planeia sua estrita estrutura (profunda embora), mas é a faculdade da fala dos clamores do texto, de viva voz, numa vozearia de semiose intensa, numa dessacralização da Literatura. Ou seja: Vira para suas unidades de sentido (Ingarden).



AS INTERPRETAÇÕES

Convivem, na interpretação, matérias semânticas de várias críticas:
1 Centradas no sujeito: Valorizando a presença do autor positivamente, considerando a literatura corno ~‘expressão” do sujeito.
2. Centradas no texto (no objeto)
2. 1 Crítica estilística. Definindo-se como ciência da expressão (Croce) , e corno crítica dos estilos individuais. Considerando que a linguagem (o discurso) não é exterior ao sujeito falante: Vida e linguagem se, identificam. Considerando que a experiência empírica, melhor dizendo: A vida, e a forma, usada para expressar esta experiência, se fundem. Considerando que não há a adequação da idéia à forma, mas que acontece urna forma espontânea da idéia. Analisando o estilo (esse fenômeno de origem individual e de natureza psíquica, essa germinação necessária, de que o autor não pode fugir). Percorre-se o caminho da Escola Idealista, quem vem de Humboldt para Karl Vossler: E que vê na linguagem, não objeto que pode ser analisado, mas a expressão de uma vontade. Usa-se a divisão em duas estilísticas (da langue e da parole). A estilística da língua, da expressão, sendo descritiva: Estudando as relações entre palavra/pensamento (o pensamento se atualiza nas palavras, não se “separa ‘ das palavras) A estilística da parole (genética, do indivíduo), buscando a chave da originalidade de unia obra (Spitzer) , quando uni detalhe pode explicar o estilo (Damaso Alonso). Até mesmo a estilística estatística, de Pierre Guiraud, compete entrar em cena.
2.2 O new criticism, considerando que não há conteúdo poético independente da linguagem: A linguagem é a idéia. Vendo nas palavras significados densamente múltiplos. Sentindo que o significado da parte se explica pelo todo. Sabendo que a «obra» é uma estrutura verbal autônoma, um modelo auto-suficiente, e ao mesmo tempo uma estrutura estratificada de vários níveis polifônicos (Roman Ingarden). Vendo-lhe a verossimilhança, o gênero literário.
2.3 O formalismo russo, ostentando-se o estatuto de Ciência da Literatura, vendo-lhe a literariedade, isto e, as propriedades literárias do texto, que o caracterizam como literário: As metáforas, as metonímias, as imagens, os símbolos, os mitos, a narração. o enredo, o ambiente, as alegorias. - Vendo a singularidade do seu discurso (produção de seu sentido e do próprio texto). Descobrindo-lhe a novidade, o estranhamento. Sabendo que as palavras, ali, são consideradas como coisas, não apenas como veículos de comunicação. Vendo (lendo) os sistemas de funções de que o texto é travado.
2.4. A critica estrutural. Erigindo um modelo (móvel, dinâmico) que é homólogo à sua estrutura: A possibilidade do seu conjunto de elementos (solidários) de interdepender-se de modo totalizante. Sabendo que a estrutura e aquele “vazio habitável”, que esquematiza as relações instituídas no texto (relações sintagmáticas e paradigmáticas) . Procurando sua gramaticalidade.
2.5 A crítica hermenêutica-ontológica. Considerando que a linguagem (o logos) produz o texto.
2.6 A crítica psicanalítica. Descobrindo os mitos pessoais, as forças impulsoras da arte, sua obsessão onírica, seu feixe de relações inconscientes com o inconsciente coletivo (espaço onde moram as configurações míticas dos arquétipos). Sentindo que o texto dá forma a impulsos que o ultrapassam e que mergulham no obscuro do seu condicionamento biológico. Descrevendo as imagens, as metáforas, as metonímias, os símbolos do inconsciente (do imaginário), que partem de uma infância do texto, e se manifestam inconsciente-mente no simbólico (a linguagem), numa analogia, por urna substituição sêmica que desvela aspectos insuspeitados: Os fantasmas dominantes, obsedantes, virados para a coletividade (Freud, Jung, Mauron, Lacan) . E mais: A psicologia bachelariana, com seus imagismos. E uma crítica psíco-estrutural que se inspira nos seminários lacanianos.
2.7 Crítica poético-linguística. Herança de Jacobson, partindo da Estrutura da linguagem poética de Jean Cohen, e da Retórica geral de Dubois e outros autores. Analisando a impertinência do discurso literário, a relação dos signos entre si; o saber por que um texto é eficaz; verificando o uso singular da linguagem que a literatura faz; dizendo que arte é forma (desvios que enriquecem); construindo uma teoria da impertinência (Cohen) e do desvio (Dubois)
2.8 A crítica criadora. Concorrendo ao texto literário, incorporando o literário no seu texto crítico. Seu texto (crítico) sendo uma escritura (uma escrita, ou uma Escrita). É o tipo de crítica feita pelo último Barthes, por Poulet, por Butor, por Lotman.
2 9 A crítica semiológica, analisando os códigos, as mensagens, considerando que o texto é uma semiose,um processo de significação, vendo os relata, as representações, os níveis de substância, os planos de expressão e de conteúdo. É a crítica da conotação por excelência. Fazendo a leitura do “universo” narrativo etc.

3. Concentradas no contexto.
3.1 As críticas sociológicas (Goldmann, Lukács, Escarpit), partindo dos processos de análise das condições de existência coletiva; fazendo uma sociologia da leitura, onde ler é solicitar a outrem a produção de um discurso, a solicitação que, as vezes, se confunde com uma verdadeira imposição; assentando-se no princípio de que a super-estrutura ideológica do texto veicula uma ideologia (uma visão do inundo) que não é exclusividade do escritor, produtor do texto, de que não e responsável o autor na sua individualidade, mas que provém de urna certa classe social, cuja voz o texto traduz: Todo texto revela uma luta de classes, reflexo especular de infra-estruturas (Lukács) homologia de relações sociais (Goldmann), em que, o que se passa no texto, e o que se passa na coletividade.





O QUE SE ESPERA

O que se espera é a “cura” do pai, sua desistência, o organizar-se dos blocos da sua lei, construtora do curso do viver. Atirando-se ao espaço das estações, insiste o pai num desembainhar do tempo, no corte que vê avançar, no desmanchar das coroas da idade perplexa, na indisciplina de seu próprio ofício órfico, na dança, sua evolução em planos sucessivos da coreografia do ir-e-vir-se, sempre, sem esperar um fim, ou esperando o filho, até nos momentos de suas apresentações, aparições momentâneas, mas com brilho e poder, afastado-e-perto dos que ainda (?) ama (?).
Com seu engenho aquático, ele perfura o tempo (“o que é, é saudade” Grande Sertão: Veredas), miserável mas glorioso, na sua recusa, no seu universo flutuante, com/sem distúrbios: Só assim parece explicável que ele não suma, nunca, de todo, e nas vezes em que aparece continuar a ser no longe-e-perto do amor.
Sua “viagem" deixa o trilho virgem de um sem número de estragos. As vozes enlouquecem (o que é que vão pensar? diz o discurso do Outro), desciam em desconversas, explicações, hipóteses e lendas: Mitos? O pai é um Mito. Fundamental. As vozes abrem, repetidamente, o avesso da antífrase, secam infelizes, caem melancolicamente, em depressão, querendo - ainda - conservar o rosto da figura (ousaram o Ousado? o Supremo Sonho?). Qualquer índice que por ventura apareça é analisado, interpretado, o enfoque muda de mão, se prolonga, intrinca o seu percurso, no aveludado de conversas sigilosas, silenciosas, da imaginação secreta enredada no solo do tempo, no desconhecer da conjunção das estações da vida, de onde vem o vento do esquecimento, que atrofia o invólucro do presente nunca ofertado, e vem a chuva e a arrasta para o chão sem fundo dos baixios e vazios. Que aconteceu? Desconversam vozes. E se silenciam, desaparecem. Confusas e tristes. A tristeza das vozes do discurso, exiladas da albergaria da tradição: O ar cheio de signos, de cantos, de cantores, de lamentos, de fagulhas e respingos, de ninhos fugidos, não se encontrando mais, no ar do abandono da inexplicação, o condicionado nas calhas da velhice, na história, na humana, na amortecida Ida, pelo fluxo do não-permanente, do vir-a-ser. Vozes perplexas do não-lugar. O código das vozes da perplexidade.



O SIGNIFICANTE

O significante é o pai-canoa, que se desloca, com seu desígnio funesto, violando, entre outras, uma lei: A da intersubjetividade, em que se motivam a união dos membros sociais. A complementaridade de substituir o pai, por parte do filho, tem o patronato de teses psicológicas, psicanalíticas, políticas, antropológicas, sociológicas, históricas. O rio dá, à paternidade, um novo sentido para sempre: O pai mergulha (retorna) no inconsciente, que é o discurso do Outro (que dirão as vozes?). Os sujeitos (pai-filho) devem revezar-se, um sendo substituído pelo outro. Qual o lugar desta substituição? Que vem representar o puro significante pai-canoa? (Sobre a primazia do significante, ver Lacan: “Seminário da carta roubada”). Ir para o rio: Ir é dolo. A matéria social não quer que ninguém vá, pune a ousadia de sair para nova dimensão. Os problemas se imbricam, na procura dos fins de restituição do pai à condição paterna. O pai deve ser reconduzido, ao seu lugar na canoa com a mãe (canoa fálica). O filho se sente culpado por desejar a morte do pai, seu afastamento da mãe, o deslocamento com sua fálica (Lacan) canoa. O pai se afasta com sua fala, isto é, com sua canoa. A canoa é a transposição da fala paterna. Quando o pai manda fazer a canoa, está erigindo um monumento ao Falo (que é transposição de sua fala, de seu silêncio e de sua falta), emblema daquilo que se retira da mãe (para sempre no sêmen das águas femininas). A fala nadará, daquele momento em diante, no grau de feminidade pura. Neutralizada pela horizontalidade em que se deita, a fala desaparece na semiose pura da liquidez da mulher aquosa da mãe d'água. A fala retorna àquele estado pré-uterino, o do espelho do rio humoral, placentário. A canoa, o objeto perdido, ao qual se pede, e perde, aquele dolo (fálico).
Um excesso seria restringir a fábula ao uso da tridimensionalidade interdita do rio, apenas.
O uso é o da fala familiar, que se aparta da casa, que se afasta, que se cassa. Ausentando-se, com sua canoa, o pai resolve retirar do núcleo familiar o dom da fala, em que se sustenta na ordem simbólica da civilização.escrita. Mas a retirada se dá tardia (a ordem simbólica já instaurada no narrador filial) e assim, o que se lastima é a perda de origem da fala, tardia, castrante (a fala sem origem se perde, se prostitui, se desconsolida). Na brecha do rio se inscreve a escrita da Fenda, a escrita clandestina, esquecida de seu miolo, de sua semente. Esta complexidade de verdade do texto não se simplifica, mesmo amputando partes, membros da estrutura (crescem outros). A complexidade da verdade não promana dos resultados da interpretação (que só faz levantar o pano), e não se trata de conseguir, na leitura, resultados mais complexos, ou confusos. O pai se repete durante o texto (“nosso pai.“), poesia é imagismo e ecolalia (ou tendência a repetir automaticamente sons, palavras ouvidas). Esse pai que repete é a pulsão, seu ritmo. Seu brilhantismo temático.
Acresce que se escreve este texto interpretativo num estado de total liberdade, de descompromisso, o que não deixa de ser: Liberdade com respeito às leituras consideradas corretas. Só há um endereço: O leitor, na estima e reconhecimento. Vamos escrevendo o que nos acorre.
Assim o rio tem a dimensão da linguagem que vai aparecendo (essa leitura se vai fazendo à medida que os acontecimentos teóricos vão ocorrendo), a saber, a linha discreta e segmentada do fluxo do inconsciente, que é o discurso das vozes, que vêm do rio.
O pai habilita o filho, empresta a sua voz e o seu discurso, na cadeia significante do jogo do ir-e-virda canoa paterna... Seu lugar levanta incidências imaginárias, que a leitura vai registrando, à medida que lê.


A CONFIDÊNCIA

A voz do narrador é uma confidência, um testamento, e um testemunho. Uma prática (honesta, mas mentirosa), de fazer-se, e fazer-nos enganar por uma estória, ficção. “Fazer-nos, um ser de sua ficção, verdadeiramente enganar” (Lacan. Escritos, p. 28). “Ce serait bien là le cornble où pût atteindre 1’i1lusionniste que nous faire par un être de sa fiction véritablement tromper” (Lacan. Écrits 1, p. 31 A tradução portuguesa assim foi feita: “Seria isso o máximo que poderia atingir o ilusionista: fazer-nos, um ser de sua ficção, verdadeiramente enganar”, p. 28, grifado nos dois textos).
Engano, de modo verdadeiro (verdadeiramente enganar), finge que nos ensina, o segredo (do narrador), ou "um segredo" (do personagem).



A DIMENSÃO

A Terceira Margem do rio é a dimensão insuspeitada da liberação dos traços dos limites, onde se marcam os passos finais de tudo aquilo que é como deve ser. São os valores e imagens do que sobrevive, em todo espírito que se sente vizinho daquela marca, daquele paraíso perdido, daquela figura insistente de que há um círculo, um circuito sagrado além das nossas próprias possibilidades, onde a salvação é uma estrada. O fenômeno do rito, do excluído, do sagrado.
Mas é, também, a Terceira Margem, o lugar da Nau dos Loucos, da louca nau da loucura, estranho barco que desliza na História da loucura de Michel Foucault, STULTIFERA NAVIS. Ao mesmo tempo nau dos loucos, nau dos príncipes, nau das batalhas, nau da virtude, pois, a História da loucura na idade clássica, ou História da loucura, não e, simplesmente e apenas, uma história da loucura, mas uma louca história, ou uma história louca, história da loucura histórica, história da loucura da História.
Loucura, História, assim se dissemina a loucura do rio, onde escorrega. Brandamente.



A LOUCURA

Desde 1300 os loucos eram freqüentemente confiados a barqueiros para se “livrar a cidade”. Confiar o louco a um barqueiro, que segue para longe, é ter a certeza de que o louco será encaminhado a si próprio, entregue à sua própria loucura, prisioneiro da própria partida. Mas “a isso a água acrescenta a massa obscura de seus próprios valores: Ela leva, mas faz mais que isso, ela purifica. Além do mais, a navegação entrega o homem à incerteza da sorte: Nela, cada um é confiado a seu próprio destino, todo embarque é, potencialmente, o último... A água e a navegação têm realmente esse papel. a água e a loucura estarão ligadas por muito tempo nos sonhos do homem europeu... Esses temas são estranhamente próximos do tema da criança proibida, maldita, encerrada numa barquinha, entregue às ondas que a levam pai-a um outro mundo...” (História da loucura).
O louco é a alma da barca, o navio fantasma de Poe, que se lê no “Manuscrito encontrado numa garrafa”: “O navio e tudo o que ele encerra estão imbuídos do espírito do Passado... Tudo, na vizinhança imediata do navio, é a treva da eterna noite e o caos da água sem espuma... prodigiosos montes de gelo, alçando-se para o céu desolado e assemelhando-se às muralhas do universo” (Poe. Poesia e prosa, p. 11).

Louco que "mergulha nas águas do poema". Diz Augusto Meyer, em "Le bateau ivre: análise e interpretação" ("Textos críticos", São Paulo, Perspectiva, 1986) que o "batel desgarrado, já sabemos que é tema de Edgar Poe em A Descent into the Maelstrom e em Gordon Pym; [....] Pois no Magasin de 1870 há uma narrativa de viagem nas costas da África, em que os marinheiros referem o aparecimento de uma ilha flutuante, aventando um deles, menos supersticioso, que talvez fosse algum promontório separado do continente por ação de um terremoto [ ....] A tradição das ilhas flutuantes vai entroncar em Homero; Ulisses, na décima rapsódia, trava relações com o governador dos ventos, Éolo, que morava numa ilha flutuante, chamada Eólia. Victor Bérard explica a gênese do mito com as ilhas vulcânicas, cercadas geralmente de pedras porosas e leves, que formavam uma verdadeira cintura flutuante. [...] Quanto à singularidade do título: Bateau ivre, Jules Mouquet, em nota publicada no Mercure de France de outubro de 1935, chama a atenção para um artigo do mesmo Magasin Pittoresque (setembro de 1869), sobre um estranho fenômeno observado nas costas da Sicília, a “Marubia”, ou “mare briaco”, isto é, “mar embriagado”: em plena calma do mar, agitam-se as águas, numa brusca elevação de nível, presságio certo de tempestade."(pp. 34-40)



OS LIMITES

Quais traços, limites (limite lacunar embora) desta crítica que se está escrevendo sobre A terceira margem do rio? Os fundamentos da hermenêutica (da interpretação), da teoria literária. Não uma exposição particularizada, setorial, limitada (os limites?), a um determinado modo de investigar (este não é um texto de ficção, é um texto crítico; esta não é uma crítica presa, mas uma crítica livre, liberada, sem compromisso, que se quer fazer como um livro, que possa, entretanto, ser lido como um livro de ficção: A ficção de uma critica livre, liberada, em que o sujeito, o texto, elaboram juntos uma literatura de segunda instância: A literatura “questiona” o real, a crítica “questiona” a literatura).
Assim revela-se uma decisão, uma escolha, um risco (este é um texto crítico?): Uma atitude e uma concentração, para que não se perca o leitor, os textos, numa pluralidade disseminada — a concentração, no conto roseano — para que não nos esqueçamos de nossos olhos, no panorama amplo das variedades, das vias de uma ciência que, imersa no mundo do pensamento ocidental, abrange-o e — de través, da escrita — é capaz de um questionamento quase infinito.
A proposição se dá em razão do limite (ilimitável) do alcance da teoria literária do texto roseano, sem pecar pela omissão de escrever tudo o que nos vier, nos chegar, sendo sugerido, pelas lembranças do texto (e pelos seus-meus esquecimentos), irrestrito a todos os textos lidos, imaginados. Através do conto de Rosa se poderá lastrear todo o percurso teórico e técnico,
porque o sentido do conto, seus sentidos, é amplo, radical.
Consideremos que há três tipos de discurso:
1 . Discurso representativo-científico.
2. Discurso que se vê a si mesmo como produção de sentido.
3. Discurso onde se inscreve uma reserva (do ser do ente).
O discurso que se vê como produtor de sentido (geno-texto, diria Kristeva) é concorrente ao próprio texto poético de que é meta-discurso, meta-texto.
O discurso da reserva (no sentido heideggeriano de “retraimento”) é um belo discurso hermenêutico, que faz a escavação do sentido.
Eis aí: A proliferação dos discursos das diversas ciências do discurso. Procura arqueológica, nos fundamentos, em que tudo se funda.
E se aprofunda. A área de questionamento ontológico (refere-se ao ser; e não ôntico: Que se refere ao ente) , fundamenta todos os outros, pretende criar as bases de edificação da própria condição de pensar, das
condições em que se formulam indagações sobre a natureza dos fatos do inundo. O discurso ontológico procura o “porquê” inicial, inaugural, de onde salta a luz que ilumina os discursos das ciências (discurso representativo-científico), e irradia um texto que, na produção da força do que diz, deixa entrever (como na Caverna), entre as sombras, a subsistência da poesia que diz, e interpreta.
A canoa é um significante, isto é, um ente. Esta canoa é o significante do pai, do Pai. Tomemos o caminho da canoa: O ente e ‘o” nada.
Este nada não é; o nada que se erige a partir da partida da canoa do pai. Não é, somente. É algo mais
anterior, mais nadificante, mais para trás da possibilidade de pensar. A canoa inaugura, com sua reserva, um estatuto nadificante. Ela se retrai. Ela se retira, do nível da margem primitiva (da existência), mas não recai na margem segunda (da não-existência), perde-se num vazio semântico (a margem-terceira não existe). A canoa, ali, passeia na semi-existência de seu não significado, na não-significação. A canoa é um Não. O poderoso Não. O interdito.
Ressaltemos um fato: A introdução, da canoa, no terreiro nadificante. Não que a canoa não seja matéria, mas sim que não-seja o que é: Significante do Pai. O significante em reserva.
Tema de uma correspondência escrita com a canoa: Ente/nada.
Do nada, nada se pode dizer, o nada não é. Que fazer ante este vazio do significado? (nada de significante). Pois o Nada é a Omissão, não só de significado, mas também é um não-significante (a não ser margem direita ou esquerda, nada). Pois se o “conceito” nadificante em nada repousa, no significante terceira margem nada é, e, por isso, não-instituído (como, aliás, não é a Terceira feira, de João Cabral) como algo que se tem em mente impossível, algo sobre o qual não se pode ter uma idéia. Nada, em última análise, e no fim das contas, não é nada, não-nada, nonada, omite-se do pensar. É a iliminação.
De que, então, fala o conto? Diz o mundo, isto é, o mundo do homem. Em outra palavra: O texto dá conta da existência de um modo "particular" de existência, a existência-enquanto canoa.
Existência é o modo particular de ser do homem. O modo que traz consigo um sentido — o sentido do seu mundo — e um aliado — a co-existência. Tanto o sentido, quanto o aliado, valem zero no que se refere à existência-canoa.
Na filosofia se definem falar e dizer, num certo sentido: O falar remete ao falante, o dizer remete as coisas mesmas ditas.
Ora, o narrador diz o mundo, inscrito na curvatura do caminho que leva ao rio (“Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar”). Diz o mundo histórico (no sentido em que Dilthey a vê, a história hermenêutica, como compreensão).
Pois, se o narrador diz um mundo que inexiste, está quase a ver o mundo retraído do pai (“Nosso pai não voltou”). O contexto conhecido pode vincar a possibilidade de uma libertação da grelha conhecida, rígida. Aponta para o além dos esquemas. Virado para o lado vestibular, translato, banda inconteste e abrigo enriquecedor do estranho lugar de labor do pai: O empenho de viver do pai (“Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos”), a narratologia louca de um objeto lúdico, instrumentado (“Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa”).


O PAI POSITIVO

Pois se o narrador diz o mundo que existia (‘Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo’’), o que ele diz, no texto, existe em correlação com o real, com o sertão, ali é o real mesmo que se está dizendo, o próprio, de viva voz, com a existência (“nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio”) à beira do nada.
‘‘Nosso , nossa , nossa (mãe), nosso (pai) , nossa (casa) , na margem primeira restam os nossos que restaram. A esta possessividade se opõe (a tudo ele se opõe) o pai. O primeiro parágrafo é uma apresentação do pai nosso (“‘Cumpridor, ordeiro, positivo”). Rasga o véu do texto com este “positivo", em se tratando do pai. Da negatividade (não absoluta, mas relativa), ele nos chega como positivo: O pai é a posição positiva do real, do que não é vão e inútil, contraste entre o útil e o supérfluo (Comte). Positivo significa o real, que opõe ao quimérico (Comte). Homem positivo é, pois, utilitário. “Para ser, cumpre, ter algo positivo” (Condillac). Positivo é o que organiza, não o que destrói. E dado à experiência, baseado nos fatos (positivos) , nas verdades positivas. É um “estado de positividade”, aquele que busca unicamente as leis dos fenômenos, renuncia ao descobrimento da origem, do destino, da natureza dos seres. O positivo é certo, bem estabelecido para nós mesmos, positivo ideologicamente, estabelecido, instituído, como valor de moeda corrente, fixado por lei. Coisa que existe de fato. A negatividade, ao contrária, é a recusa da existência (“uma invenção livre, e nos liberte dessa muralha de positividade que nos encerra”, diz Sartre) . É a negatividade (a ausência). É o obstáculo, o sacrifício.
Esse Pai Positivo é um significante, um ente no mundo fenomenológico. Procura ser, na reserva, no interior do inter-dito, porta-voz do Ser que tudo dispõe para que tudo seja, e para que edifique sua existência.
Na experiência da leitura do texto se proclama a existência mesma, é o ente mesmo quem grita na escrita, e que oscila, deixando-se perceber, no movimento de oscilação de sua presença indefectível, as suas extraordinárias relações com o nada de onde ressalta, como que pula na metonímia, que ostenta atrás de si — O vácuo. O ente, ao qual para o nada é a sua luz, tem uma sombra invisível atrás de si, como as trevas dão à luminosidade da luz sua presença intransponível. A ausência pela presença.






A ESCRITA ENGRINALDADA


A marca do destino deste texto roseano lido de raspão, não estimula uma escrita engrinaldada, coroa de triunfo. É uma escrita outonal, discernível na outra margem de uma demanda triste, demitente, delonga, e um adiamento, deixa, resta na outra delação do aniquilamento, expatriado, de expectação, de contravir, de ex-paternado, é a confissão de um cogito isoladíssimo, um dique, uma castração, uma retroação no tempo (infantil: “Nosso pai”), sem diretriz, indolente, finalista, longe da longínqua porta de luz paterna, sem a harmonia dos movimentos do pai, sua liberdade, que levita, sua ligeireza liberta, sua desobstrução e emancipação, pelas estradas interiores do rio.
O discurso do filho é um vôo cativo, uma funda e inexplicável atração por aquele sombrio e tenebroso símbolo, vendo-se tolhido em pleno deserto de licença, demandando pelos meandros do rio, pelo brejo vaporoso, tem necessidade dos abismos de horizonte, onde se entabula o pai da narrativa, os rumos aflitivos do rio, — o narrador tem a imaginação perturbada por aquela poda taumatúrgica que o impele para o rio de seu pai, para o discurso dele, e seu percurso.


AINDA A TÉCNICA

Barthes (S/Z) propõe a matéria semântica, pois, de várias escritas, de várias críticas: Psicológica, psicanalítica, temática, histórica, estrutural — convivendo, ao mesmo tempo, na interpretação. Cada crítica compete entrar no jogo, dar o seu lance, não se respeitando, pois, o texto. Corta-se o testemunho do texto, corta-se a fala natural do texto.
Divide, como já se disse, o texto em lexias, divisões naturais ou arbitrárias: Divisões sintáticas, retóricas, anedóticas, frases, segmentos, fragmentos sintáticos, sintagmas completos ou não, palavras. Esta divisão faz o picadinho do texto, vai e volta, interrompe o seu fluxo, o seu suspense, para o levantamento do inventário, da explicação, para a realização analítica, e posterior interpretação (que pode estar paralela) para as digressões, para os furos dos códigos. Interrompido, assim, o fluxo do texto, este é inapelavelmente interpretado, provocado, deslocado.
Barthes realiza um levantamento de vários códigos.
O código hermenêutico é o conjunto de unidades que articulam, de maneiras diversas, um enigma, uma pergunta, os acidentes variados que podem preparar a pergunta, atrasar a resposta. Ou: Formular urna pergunta e levar à sua decifração. A terceira margem do rio, o título, é o primeiro ponto deste código hermenéutico: Que lugar é este? O que vai acontecer ali? O código hermenêutico é a voz da verdade. Exige do leitor um esforço de deciframento, desperta unir interesse. O próprio código consiste no seu deciframento, em seguir, no fio d’água da narrativa, os termos formais que constroem o enigma: Seu centro, sua formulação, o retardamento de sua resposta, enfim sua revelação, ou não. Para que a narrativa se prolongue, entre a pergunta e a resposta, há um espaço reticente, feito de logro, de equivoco, falsas pistas, semi-desvelamentos. Retardar a verdade é constitui-la, pois esta não é aquilo que é, mas aquilo que se espera, aquilo que é a recompensa, o que se obtém ao final do texto, sua gratificação.
O título (A terceira. . .) propõe, deste modo, o primeiro termo que só se explicará depois: Que é isso? É isso possível? As perguntas serão, pelo critério crítico, respondidas adiante, quando se contarão os fios de que é feita essa renda, o rendilhado narratológico. O título é, assim, um enigma, elemento de um código hermenêutico (enigma e decifração) o primeiro. O texto roseano é um supra-enigma.
A palavra terceira (diante da qual um rio não tem mais dois lados, duas margens que se possam atravessar de canoa) , implica uma outra coloração, uma conotação: A da imprevisibilidade (a tridimensionalidade do rio), portanto um sema (unidade do significado). sema da imprevisibilidade. O código sêmico (ou significados de conotação) marca a voz da caracterização dos personagens, dos objetos, dos lugares. O leitor reconhece os semas com que o discurso constrói personagens, lugares e objetos. («Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo») . A ilusão de individualidade é dada pelo nome próprio, que recolhe todos os semas constitutivos do personagem (do pai) do lugar (do rio) , do objeto (da canoa) . O nome funciona (o pai, o rio, a canoa), como pólo de atração dos semas constitutivos do personagem, do lugar e do objeto. Por isso, o que parece como motivação psicológica (caracterização, veracidade) é, na verdade, uma decorrência, uma imposição estrutural: É o “texto’’ que decide.
As lexias levantam, no texto, unidades do campo sêmico e do campo simbólico. Os semas erigem um código sêmico. Os símbolos se articulam num código simbólico. O conto esquipa um ajuste um ludismo simbólico; o conto e, como tal, um símbolo, aquele que fere o meio de uma antítese: A antítese A/B se transforma em A/?/B. Perturba a compreensão das coisas. O escritório da escrita está no meridiano medial, no entre-margens, na transmarginalidade. É a «meia-verdade» da literatura. O Meio e um símbolo (de quê?) e inaugura um código simbólico.


EXEMPLO CRITICO

“Do que eu mesmo me alembro...” — esse pai e uma lembrança desdobrada, mítica, bordada de esquecimento. Figura esgotada, obsedante, esse pai herança, movida, que se perde, um perdido, um privar-se de. Ser construído (pelo código dos semas descritivos). Não se diz: É a ausência.
“Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava. . “ — o pai é uma figura, não existe, vive atraves de um laborioso construir-se de carência.
«...mais estúrdio nem mais triste...». (A tristeza metonímica do filho) , “. . . do que os outros” (é o Outro, não “os outros”), «... conhecidos nossos »(o pai é o desconhecido, perda de programa, de origens). “Só quieto”. (Sua quietude é o “quid”, sua qüididade: De poucas conversas, conseqüente, mas sem costuras, fascínio fantasma, movimento para dentro (de si, do rio), numa idiolatria que se escreve no que ele não explica).
“Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente. . .“ Mãe metonímica, jogo em que se disfarça a angústia, a ânsia do “regia”: A mãe rege! O rei. O narrador não narra: Lamenta. Sua fortuna (sua desgraça) é ter esta mãe que regia”, num deslocamento do filho para a mãe da herança fortalecida, inconquistável, a mãe consagra deslocamento, giro, revolução significante: Desagravo surpreendente, a mãe toma o lugar do pai, sempre antes, preme a gente , pauta as regras do jogo familiar: «minha irmã, meu irmão e eu»: Tríade formada de subjugados esmagados (é amostra), a saída do pai e uma cirurgia, codificada em mandamento lesivo: A mãe regia”, estruturava e dispunha de um sistema, a saída do pai é à custa de uma incisão incicatrizável: Toda a questão do conto é a questão familiar brasileira. O escândalo familiar., a mãe regedora e o pai esporádico, acidental, quieto, que se retrai. A estrutura já está formada antes da saída do pai. num murmúrio do filho pelo regimento da mãe, discurso mal nascido, mal sofrido. O que salva o primeiro parágrafo (apresentativo) é o dito final: «Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa» . É a ponte significante da libertação do pai do discurso do filho, discurso da espera.



TERCEIRO GOLPE DA TÉCNICA

Nos capítulos anteriores, referimo-nos aos códigos hermenêutico, sêmico e simbólico. O quarto código que atravessa S/Z (Barthes), código cultural, ou de referência — é a fala proveniente da voz coletiva da sabedoria humana (podemos chamar de código proverbial, código do senso comum) — voz da “pequena ciência”, referência ao Livro, saber estereotipado, convencional, “do tipo literário, histórico, fisiológico — formas de ideologia” (Cf. a frase: “Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas?”).
O quinto código habitável no livro de Barthes, chama-o de código das ações, é o código dos comportamentos, a voz do fazer, organização de tudo aquilo que age como narrativo, é o código proiarético (faculdade de deliberar sobre a procedência de uma conduta), apresentado numa ordem lógico-temporal — o que está antes é a causa do que vem depois, consecutivo e conseqüente — a ação é deliberada pelo discurso (não pelos personagens) e pode ser de qualquer natureza, e a armadura do legível”, material de uma análise estrutural: ‘Uma lógica cultural preside a organização da narrativa: A lógica do provável, do empírico, do já-feito ou já-escrito, em resumo, do estereótipo. Esse código congrega as ‘‘funções (sentido proppiano), que podem ser de dois tipos: Nucleares e catálises” (Maria do Carmo Fandolfo, Análise da narrativa. In: Teoria literária, Rio, TB, 1975), “se référant à la terminologie aristotélicienne qui lie la praxis à la proairésis” (Bartlies. S/Z, p. 25).
O código das ações ou dos comportamentos encadeiam a narrativa. Assim, se o personagem encomendou a canoa especial, a ação é “encomendar”. As ações nucleares são conseqüentes, fortes, alternativas, articulatórias: ‘‘Encomendar’. As catálises, expansões do significado, comentários, variações e minudências, é a modificação. aumento de uma reação, de uma atuação, de uma substância que não se alterava no processo. A catálise, a variação do tema: Sua liberdade sintagmática, a união de palavra nuclear com suas probabilidades: «Encomendar—esquecer não posso». «Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, ... grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder -ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.»

O código hermenêutico consiste na formulação de um enigma, uma fórmula que se retarda e por fim pode-se esclarecer (ou não), pode-se revelar. O código dos semas se distribui no fluxo do discurso caracterizando os personagens, os lugares e as coisas. O código simbólico também se dispersa no discurso remetendo o texto a um outro lugar de texto, desloca o discurso. Pois a um texto narrativo, é impossível atribuir uma origem, um ponto de vista, a origem da enunciação, indeterminável, o texto e um entrelaçado de origens: Adstrita à narrativa do rio, com uma volubilidade algo escandalosa, a fala do pai se espacializa, de maneira vaga, geral, complexa, no discurso do interdito, do entre-dito (discurso do rio): Sob a pressão da lei de dados substitutivos, onde as sedes das indagações se deslocam para a infância, a fala do filho (a falha do filho) só pode emergir de um entrelaçamento consideravelmente complexo, determinando a irrupção de sua culpa, num conceito auto-crítico, brilhante, altamente esclarecedor; o filho, e sua falta, marginaliza o rio (resta na marginalidade do simbólico), é a tentativa de ingresso, numa ordem pré-simbólica, de significante a significado; o filho anseia o barqueiro, no limiar. O pai realiza um semi-discurso: O que se retrai da fala, a anti-fala. O filho não mergulha neste simbólico pós-narrativo (o filho é o narrador, mas não ousa assumir a narrativa trans-real, inter-dita do pai). Na dialética de substituição, nome que não exprime uma redução, mas um desdobramento, o filho não depõe o pai (de sua Loucura? do poder de seu Reino? do reinado do Imaginário? O simbólico não acede a Ali, não puxa a toalha da fala) para substitui-lo — código hereditário — nesta genética de liberdade e de loucura. O filho permanece filho (estado pré-simbólico) , não ascende a pai (estado de ser investido das ordens) , não revoluciona o dizer, nem se resolve na assunção do poder de pai. O pai, na sua recusa, desloca o poder para o Meio, para o Quase, o Semi, o Impossível, onde forças emergentes oscilam a normalidade do código. O código paterno se faz paralelo ao estado codificável, o secreto, o irrevelado, o recusado, no calar-se.
Esse pai transforma-se numa margem, é o Outro retraído, negação de identidade progressiva, numa desidentificação primária. É imagem em que o filho não se reconhece, é vazio sempre vazio, a brecha e uma “hiância”, a falha entre aquilo que falta a ser, aquilo que é um buraco, um vazio, — e o complemento materno. O pai é um duplo do filho, mas o filho desse espelho. E assim se fez.

quarta-feira, 28 de junho de 2017

MINHAS BIBLIOTECAS – ROGEL SAMUEL

MINHAS BIBLIOTECAS – ROGEL SAMUEL
Ao longo da vida tive várias bibliotecas perdidas.
Primeiro, herdei a do meu avô Maurice Samuel, do meu pai e do meu tio-avô. Era uma preciosidade.
Quando vim para o Rio com 18 anos, minha mãe encaixotou tudo e colocou na garagem (onde uma caixa foi roubada) e depois me mandou por navio, sem me avisar.
Quando recebi o aviso estava sendo leiloada por um alto preço e eu tive de abandonar, pois não tinha dinheiro.
Mas de um livro eu me lembro: era REMATE DE MALES de Mário de Andrade com uma carta escrita para Huáscar de Figueiredo.
Depois outra perda: A biblioteca que eu tinha trazido e adquirido aqui... Morava mal, num quartinho de estudante, deixei no escritório de um amigo...
Depois mais uma perda: Na Faculdade de Letras da UFRJ, onde trabalhei, tinha uma sala completa de livros... quando me aposentei doei tudo para a Biblioteca e para um amigos, pois não tinha espaço em casa...
Hoje tenho um escritório na Urca e moro em Copacabana.
Biblioteca é coisa de rico.

Livros...

domingo, 25 de junho de 2017

A DIMENSÃO DO MAR

A DIMENSÃO DO MAR

ROGEL SAMUEL

Escreveu Fernando Pessoa:

Na noite escreve um seu Cantar de Amigo
O plantador de naus a haver,
E ouve um silêncio múrmuro consigo:
É o rumor dos pinhais que, como um trigo
De Império, ondulam sem se poder ver.
Arroio, esse cantar, jovem e puro,
Busca o oceano por achar;
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.

O rei D. Dinis governou entre 1279 e 1325. Criou a semente da primeira universidade portuguesa, em Lisboa (1290). Escreveu 72 cantigas de amor e 51 de amigo, como a deliciosa: 

Levantou-s' a velida,
levantou-s' alva
e vai lavar camisas
eno alto:
vai-las lavar alva.
Levantou-s' a louçaa,
levantou-s' alva
e vai lavar delgadas
eno alto
Ora, D. Dinis ficou conhecido como «lavrador», «plantador». No poema de Pessoa bem se vê. Plantador do Império. Ele plantou os pinheiros com que se construíram as naus.
Nós não vamos examinar aqui o heróico fato de que aqueles navios também espalharam o terror pelo mundo. Toda a Europa fez isso. As naus portuguesas dominaram o mundo à força das armas. Há, por exemplo, um texto, na literatura singalesa, que conta a invasão de um mosteiro budista. No Brasil, nossos índios foram dizimados etc. 
Não. 
Vamos ficar com o poema. Com a visão do Pessoa jovem, poeta máximo. 
« Na noite escreve um seu Cantar de Amigo». Por que «na noite»? Porque o Império ainda ia amanhecer. 
Este verso revela a maestria do poeta, são dez sílabas, numa alternância de átonas e tônicas: na NOIte esCREve um SEU canTAR de aMIgo. (-/=/-/=/-/=/-/=/-/=/). 1-2, 1-2, 1-2, 1-2, 1-2.
Este ritmo, binário, com alguma imaginação, traduz o ato da máquina, o ato do escrever, do trabalhar, seu ritmo, sua maquinaria, seus pinhais, seus delírios. O verso marca o ritmo do trabalho poético, do trabalho noturno, do trabalho intelectual, silencioso, martelando. E Amigo. Ele escrevia a história, a história do futuro, «o plantador de naus a haver». 
E ele «ouve um silêncio múrmuro consigo», que é « o rumor dos pinhais», o rumor do vento nos pinhais, que sussurram: seremos reis, seremos Detentores-reis das terras de além-mar. O murmúrio do futuro, murmúrio do «trigo da história», murmúrio do cabelo da história, que ondula sem se poder ver. 
E a fala dos pinhais, marulho obscuro,
É o som presente desse mar futuro,
É a voz da terra ansiando pelo mar.
Pessoa abusa de sua genialidade, no «Plantador do Trigo do Império do Fim do Mundo». Sim, porque o Império se estendeu, de Oriente a Ocidente do Orbe terrestre. Como dele disse Camões:

O Sol, logo em nascendo, vê primeiro; 
Vê-o também no meio do Hemisfério, 
E quando desce o deixa derradeiro; 

D.Dinis canta, e «esse cantar, jovem e puro, busca o oceano por achar». Aponta o futuro. 
Pessoa era um patriota, e a pátria ingrata só lhe prestou homenagem e lhe fez honra depois de morto. Como a Camões. 
No maior jornal de Lisboa de sua época, o «Diário de Notícias», o seu nome nunca apareceu. Ou melhor, só apareceu na página policial, quando um mágico, seu amigo, fez alguém sumir de verdade. Seus colegas de escritório nem sabiam que ele era poeta! Por isso disse que pertencia a uma geração que herdara a descrença. 
«Pertenço a uma geração, diz ele, que herdou a descrença na fé cristã e que criou em si uma descrença em tôdas as outras fés. Os nossos pais tinham ainda a impulso credor, que transferiam do cristianismo para outras formas da ilusão. Uns eram entusiastas da igualdade social, outros
eram enamorados só da beleza, outras tinham a fé na ciência e nas seus proveitos, e havia outras que, mais cristãos ainda, iam buscar a orientes e ocidentes outras formas religiosas com que entretivessem a consciência, sem elas ôca, de meramente viver. Tudo isso nós perdemos, de tôdas essas consolações nascemos órfãos. Nós perdemos essa, e às outras também. Ficamos, pois, cada um entregue a si próprio, na desolação de se
sentir viver. Um barco parece ser um objeta cujo fim é navegar; mas o seu fim não é navegar, senão chegar a um pôrto. Nós encontramo-nos
navegando, sem a idéia da pôrto a que nos deveríamos acolher. Reproduzimos assim, na espécie dolorosa, a fórmula aventureira dos argonautas: navegar é preciso, viver não é precisa. Sem ilusões, vivemos apenas da sanha, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuímo-nos...» (nota solta, sem data nem assinatura, do magnífico poeta Fernando Antonio Nogueira Pessoa, talvez o maior de todos nós).

sexta-feira, 23 de junho de 2017

Encontro com Sophia de Mello Breyner

Encontro com Sophia de Mello Breyner



Encontro com Sophia de Mello Breyner


Rogel Samuel


Conhecemos Sophia em sala de aula. D. Cleonice Berardineli a convidou para visitar a nossa turma. Quem nos lembra é a poetisa Bernardina Oliveira, que estava presente. Foi em 1966. Só me lembro de Sophia vagamente. D. Cleo nos dava aulas de poesia portuguesa contemporânea. Sophia nasceu 1919 e morreu em 2004. Naquela época era ainda uma mulher bonita. D. Cleonice gostava de nossa pequenina turma. Certa vez nos recebeu em sua casa, onde nos ofereceu um lanche, um ótimo lanche. Ela morava, na época, na esquina da Av. Atlântica com vista para o grande Oceano. Talvez por isso tenha sido professora de literatura portuguesa até hoje. Ao lado de seu apartamento, havia outro somente para seus livros. Ela era casada com um marido muito amoroso, um médico, que a vinha buscar todos os dias depois das aulas. Viúva, passou a dirigir seu próprio automóvel até recentemente, enfrentando a Av. Brasil para chegar ao Fundão.

A mim me deu um riquíssimo presente, mas ninguém viu, foi segredo: A edição das Obras poéticas de Pessoa, da Aguilar, que tenho até hoje. Com uma dedicatória: "Ao Rogel em quem deposito grandes esperanças. Cleonice Berardinelli". Cobriu a dedicatória com uma fita adesiva, para manter o segredo e não despertar ciúme nos colegas. Não sei se correspondi às esperanças dela, certamente que não.

D. Cleo estudou conosco, comentou e interpretou Sophia.

O poema talvez fosse:


Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão.
Porque os outros têm medo mas tu não.
Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.

Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.

Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.

sábado, 17 de junho de 2017

ROGEL SAMUEL: BREVE MANUAL DE DIDÁTICA GERAL

ROGEL SAMUEL: BREVE MANUAL DE DIDÁTICA GERAL


Por que a didática geral?

Depois de aposentado – esta palavra soa sempre muito estranha – pude fazer uma longa e calma reflexão sobre minha vida como professor auxiliar de ensino de didática geral na Faculdade de Educação da UFRJ, na década de 60.

Reli as anotações, revi os primeiros planos de aula. Lembrei-me das lições dos meus grandes mestres: Anísio Teixeira, o professor de Filosofia da Educação (recebia palmas no fim da aula); Luiz Alves de Mattos, nosso catedrático, mente clara, precisa, organizado; e de tantos outros, de outras matérias, como Alceu amoroso Lima, Celso Cunha, Matoso Câmara.

O que vi é que ainda está aberta, para mim, a questão do ensinar, do saber ensinar. Não apenas do saber como do fazer, as técnicas, as questões, os objetivos.

Que lições daqueles grandes mestres ainda permanecem vivas?

Não sei, nem posso responder.

Uma questão global. Atual.

O magistério agora dispõe de novas tecnologias, como o computador, a Internet. Naquele tempo nem com a TV se podia contar.

E porque ensinar e aprender? Para quê, para quem? Como fazer? Até que ponto as questões do professor em sala de aula se podem genericamente responder? Como ajudar a um jovem professor/a iniciante a começar o seu magistério?

Isto é a Didática Geral.

Que significa isso, essa ciência, ou essa arte, ou essa técnica?

Partimos do postulado de que é preciso aprender a fazer, ou o professor vai aprendendo com o tempo, mas com seus erros. Ou se acostuma a errar, e não mais aprende. Os erros da sala de aula infernizam a vida dos mestres, põem mestre e aluno em luta um contra o outro. Os professores se estressam, mudam de profissão, ou morrem. Ouvimos muito isso: professores que dizem que “hoje” é impossível trabalhar.

Mas é possível aprender a oferecer uma aula para jovens e irrequietos alunos da periferia?

O pior problema, além da baixa remuneração, é a relação numérica professor/aluno. Um professor com centenas de alunos não pode dar certo.

Porém a Didática Geral ensina a não cometer certos erros capitais e oferece algumas normas para evitar os erros triviais.

O magistério é uma das profissões mais difíceis e mais necessárias. A remuneração precária, o número excessivo de alunos em sala de aula, a violência da sociedade transferindo-se para o ambiente letivo, são só alguns dos problemas.

O magistério é, entretanto, uma arte, uma arte fina, extraordinária. E se pode aprender a fazer.

Nada substitui a viva voz do professor, o diálogo com ele, sua presença.

Ensinar a ensinar, eis o que faz a Didática Geral.

Mas “sábio não é quem sempre ensina, mas quem de repente aprende”, escreveu Guimarães Rosa.





Ensinar e aprender

Cabe ao professor fazer eclodir no aluno o mistério do aprender ou parte do educando o início desse processo? Que é aprender? Se não quiser o aluno não aprende. Temos primeiramente de motivar o aluno a aprender.

Ora, aprender é tornar-se maior do que o fato apreendido. Além disso, é incorporá-lo, fazê-lo seu, parte de sua consciência, de seu ser.

Disse Alceu Amoroso Lima em sala de aula: “cultura é aquilo que esquecemos, mas é incorporado à nossa consciência”. Ele falava da “cultura” brasileira, mas podemos dizer que reside aí o fato do aprender: aquilo que, por mais que o “esqueçamos”, não poderemos esquecer jamais, pois já está incorporado ao nosso sistema, àquilo que nós somos e nos é. É uma “linguagem”, nos toma, somos e usamos.

Ou não? Será que, como nos antigos, o papel (e uso esta palavra com cuidado) do professor é fazer os alunos lembrarem-se do que já sabiam?

Não, não vou aprofundar essas complexas questões, pois meu objetivo aqui é ser simples e prático.

Ou seja: não precisamos saber o que é aprender, mas como isto é possível.

Aprender é liberdade, é libertar-se de uma incapacidade, de um problema, de uma obscuridade.

Quando aprendemos perdemos o medo daquilo de que não sabíamos, do desconhecido, da desconhecida ameaça. Há uma doença? Quando aprendemos como tratá-la logo deixamos de temê-la. Há uma crise? Quando compreendemos como e por que ela rebentou logo já começamos a saber como interagir com ela.

Quando fazemos alguma pergunta, quando colocamos alguma questão, é porque o processo profundo da resposta já está em andamento.

Quando perguntamos, já sabemos.

O professor ideal, se existe, seria aquele que ajudasse os seus alunos a libertarem-se de si mesmos, a serem livres de seus problemas internos.

Mas isso é outra história, porque que o “sistema” sempre nos impôs que preparássemos os jovens para a obediência, a ordem, o progresso.

Jovens livres são perigosos.

Mas não agressivos, violentos.

A minha geração, por exemplo, vivia de “paz e amor”. Jovens “rebeldes” não estão livres, estão presos à rebeldia de sua violência e maldade, ao calor de suas agressividades.

Quem é livre não agride ninguém.

Quem é livre é feliz.

Assim, a formação do professor é algo complexo, muito complexo.

Não me interprete erradamente. A educação é uma revolução.

Se tivermos toda uma geração de bons professores, bem preparados e bem remunerados, teremos uma nova era, um país diferente.

É o que faz o bom professor: ele muda o futuro.






A formação do professor

É complexa a sua formação. Não vamos aprofundar, mas daremos algumas pistas.

O professor é um técnico. Um cientista que agora dispõe de novas tecnologias. Mas é um ser humano. Seu objetivo é interagir com outros seres humanos, iguais a ele. Mesmo com diferentes idades. A qualidade de seu magistério depende de sua saúde, entusiasmo, ele tem de acreditar no ser humano que ele tenta despertar para a liberdade. Para a maturidade. Depende o professor também de fatos externos como o prédio da escola, a acústica, o barulho da rua, o número de alunos em sala de aula, a temperatura ambiente etc. Ensinar não é nada fácil. É bem mais complexo do que aprender. Nós aprendemos quando “queremos”, quando necessitamos. Já levar a outro o aprender, convencê-lo a isto, é das tarefas mais difíceis.

O que caracteriza um professor? Que qualidades deve ter?

Ele deve ter o mínimo de vocação. A vocação de ajudar. O gosto de incentivar os outros a encontrar os seus objetivos. Ou seja, a felicidade de cada um. O professor é uma porta para a felicidade.

Mas não basta um dom, é preciso mais. É preciso aprender a ensinar. É possível.

É claro que certos atributos e disposições humanas contribuem. E um pouco de sorte. Mas o professor tem de ter uma personalidade forte não-autoritária capaz de suportar os piores trancos. E certas habilidades podem ser cultivadas.

O professor tem de ter “jeito”. E orgulho de sua profissão.

Seu equilíbrio mental será testado a todo momento. Sua personalidade. Tem de ter boa e clara voz. Mesmo fraca, tem de ser clara. Não se deve abalar com as agressões e confusões de sala de aula. A aula deve prosseguir como se nada tivesse acontecido. O professor não se ofende nunca, só ouve o que quer, só o que serve para o andamento das coisas. Inabalável, ele prossegue. Porque o bom professor é um herói.

Tudo isso pode ser cultivado: o gosto pela clareza, pelo resumo, a confiança em si mesmo, certa presença de espírito, o controle emocional, a firmeza, a perseverança, a imaginação, a liderança, a iniciativa, a criatividade, o saber ter boas relações com seus alunos, tendo respeito por eles, a consciência da importância do magistério.

Quando o professor se descontrolar, o melhor que tem a fazer é respirar fundo e dizer:

– “Meus alunos, me desculpem. Eu perdi o controle”.

E rapidamente prosseguir a aula como se nada tivesse acontecido.






Quem é o professor?

É pedir demais? Sim. É ser um herói? Um ser humano assim, com tais qualidades? Mas tudo é relativo. E teórico. Conheci uma professora com voz fraca, magrinha, simpática, que sabia impor-se melhor do que ninguém. Conheci professores com defeito físico vencedores no magistério. Tudo é imprevisível. E depende da personalidade do mestre.

Mas conheci um professor que teve uma crise nervosa na porta do colégio e não conseguiu entrar. Sei de outro que mudou de profissão.

Não basta dizer: “Hoje os alunos não querem nada! Só querem passar! Só vão para a escola por causa as merenda!”

Cabe a nós o despertar-lhe o interesse.

Cabe a nós a alertar os alunos para o perigo de sair da juventude sem estar preparado.

E estar preparado não é ter um diploma. Todos sabemos de um personagem que não tinha diploma e chegou a Presidente da República.

Eu mesmo experimentei muitos fracassos e vitórias, mas sempre soube distinguir o que era a minha (in)capacidade da minha pessoa. Aprendi com meus fracassos, usei-os como elementos de sucesso. Tive a sorte de ter bons mestres.

Pois, o que é um bom professor?

Não há uma definição única e clara. Cada um caso é diferente do outro.

Mas todos esses profissionais devem cultivar certas qualidades específicas.

Não é só o conhecimento específico que faz um bom professor de crianças e adolescentes, que é o de que tratamos aqui. Um erudito sem capacidade de extrair a síntese não pode ser um bom professor. Não é só o conhecimento, mas técnica, a técnica didática, que ele pode aprender num curso de didática ou ao longo dos anos de magistério.

O professor deve ter um conhecimento básico e preciso da matéria que vai ensinar. Não precisa ser um “especialista”, nem um pesquisador, uma autoridade no assunto para ensinar numa escola pública.

Mas ele é um instrumento de aprendizagem, um divulgador de princípios para a vida em geral,

Seja qual for a matéria ensinada, reduzindo o conteúdo ao essencial, dando o caminho curto, pondo aquilo tudo ao alcance dos seus jovens alunos.

Não é fácil, mas é possível. O magistério é uma das profissões mais complexas.

A matéria ensinada deve ser tratada como um aspecto da vida. Deve ser útil e bela. De interesse na vida social. Todo professor devia saber um pouco de socialismo, de sociedade, de economia.

Estudamos para preparar-nos, devia ser o lema de todo aluno.

A vida é sempre difícil, e nós nos preparamos na escola. Se os alunos sentirem isso naquilo que o professor faz, terão respeito e interesse pelas aulas, serão atenciosos com o mestre, e o virão como líder.

Todo curso de didática devia tratar da arte da liderança.





Para quê serve a Didática Geral?

Quando estamos na faculdade, nem sempre damos importância ao estudo da Didática. Mas é ela quem vai-nos dizer como ensinar, apropriadamente, com princípios claros, normas práticas de ação, programas, planos, métodos, recursos, procedimentos adaptados à realidade da escola, do aluno, do professor e do conteúdo. O professor deve ser um aliado, um soldado da educação, não um burocrata. Quem desconhece as teorias didáticas entra nessa batalha desarmado dos instrumentos necessários para o sucesso do seu magistério. O sucesso significa a satisfação, a felicidade com esta profissão.

O objetivo da pedagogia (não distinguimos aqui pedagogia e didática) não é dirigir, formar, mas motivar, resolver conflitos, contornar e simplificar complexidades. Nós, professores, não somos perfeitos. Mas devemos ser insistentes, constantes, irredutíveis nas nossas boas intenções. Quando assim agimos, os alunos sentem, sabem, e colaboram.

A educação é um processo social e individual.

Como social, desenvolve uma nação inteira. Como individual, supera dificuldades, imaturidades.

É impossível que todos os membros de uma sociedade sejam saudáveis, mas o que se quer é que a maioria não seja de marginais desajustados.

A educação nas escolas deve ser sistemática, organizada, planejada para ser completa. Como elemento complexo, a educação tem de ser planejada em todos os seus níveis, escalões, definindo princípios, objetivos a serem alcançados, normas, procedimentos, orientações.

Não existe a melhor técnica de ensino, mas a melhor possível de acordo com cada fragmento da realidade. Por isso, temos de examinar caso a caso, cada realidade objetivamente, cada situação dada.

A didática é comporta de cinco elementos: o aluno, o professor, os objetivos, os conteúdos a serem ensinados e a metodologia utilizada.

O aluno tem de ser visto como um ser humano, com as virtudes e dificuldades de todo ser humano, com suas tendências, interesses e reações. O aluno deve ser “aceito” tal como é, seja como ele ou ela for. Um ser humano, ainda que criança, para ser respeitado e a quem se pergunta: como posso ajudá-lo? O professor não deve querer moldar o aluno e transformá-lo, mas tentar desenvolver no aluno certas qualidades e potencialidades que já estão lá. Se encontra um aluno com tendência ao crime tem de saber como desviar essa potencialidade para o bem social e individual.

O professor é o motor do processo, estimula e corrige o rumo, alimentar o fluxo do processo, sem se envolver emocionalmente com os alunos. O professor tem de ser sempre um profissional, manter uma certa distância técnica entre ele e seus alunos. A relação íntima nunca dá certo: os alunos devem ver o professor com amizade, mas com respeito. Este é o limite delicado e sensível da boa e produtiva relação professor-aluno. Ultrapassar esse limite, transpondo esse nível, pode fazer surgir problemas de controle de classe, indisciplina etc.

________







Os objetivos a serem alcançados

Como anunciamos antes, a didática tem cinco componentes: o aluno, o professor, os objetivos, os conteúdos a serem ensinados e o método apropriado.

Os objetivos a serem alcançados são a razão de ser da escola, o rumo a tomar na vida do aluno, na profissão, o objetivo é a realização, a felicidade, a necessidade, as metas, o resultado positivo.

Trabalhar, lecionar sem ter determinados os objetivos a serem alcançados é como navegar às cegas.

Os conteúdos são as matérias vistas como valores culturais que pertencem à cultura, à civilização, ao grupo social.

O método são os processos e recursos disponíveis para solucionar os conflitos, as dificuldades, as deficiências: o homem é o ser que sempre soube superar suas dificuldades e deficiências e atingir mais ou menos seus objetivos. Da qualidade e escolha do método vai depender o êxito ou o fracasso do magistério e sua felicidade no relacionamento professor\aluno.

A Didática Geral ensina a planejar os trabalhos, tornando-os mais fáceis; e incentivar os alunos, fazendo-os mais interessados e colaboradores. Ensina a como exercer a necessária liderança no controle da classe, sem o quê não pode o professor/a ser útil. Ensina a organizar um plano de trabalho, de aula, de curso. Ensina a diagnosticar a aprendizagem em tempo útil, a como fixar o aprendido, a como verificar o resultado, a corrigir o rumo, a como tirar proveito das falhas, dos erros, a como transformar as dificuldades em vitórias.

É uma ciência maleável, não rígida, não é a mesma para cada caso, ensina a ser flexível, a não ter verdades eternas. Temos de ver o que funciona e o que não funciona em cada caso, do problema temos de saber extrair a solução eficaz.

Todo problema já traz em si as potencialidades de sua solução, ou como diziam os antigos nós não devemos nos preocupar: se tem cura, por que se preocupar? Se não tem cura, por que se preocupar?

O bom professor sabe como fazer, como aplicar isto ou aquilo. Sabe (ou aprende) quando, onde ou como adaptar a técnica de modo a fazer a máquina funcionar.

Nada é fácil, na vida do magistério. No diário é uma profissão difícil. Mas devemos ser realistas e ter a sabedoria (ou esperteza) de solucionar cada problema tempo e continuar a aula e o curso.

Ensinar é um processo transformador. Professor e aluno têm de fazer juntos. O importante é desenvolver e transformar, facilitando o crescimento interior de todos.