terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

NEUZA MACHADO: SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS

NEUZA MACHADO: SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS


NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE


SOBRE O AMANTE DAS AMAZONAS DE ROGEL SAMUEL

O narrador do século XX, ficcionalmente, intuitivamente ou não, percebeu os dogmas imperialistas sobre o assunto e os ultrapassou. A sua infração sócio-ficcional se notabiliza ao longo de sua narração sobre os Numas. Por minha parte, para interpretar a cena em que o narrador Ribamar de Sousa afirma ter sido o primeiro “a ver uma fêmea Numa”, vejo-me na eventualidade de buscar, uma vez mais, auxílio cognitivo em A água e os sonhos, de Gaston Bachelard, lembrando aqui que o filósofo francês, por seu turno, não se esquivou da busca de digressões metafísicas em outros pensadores. No capítulo II do livro anteriormente assinalado (AS ÁGUAS PROFUNDAS - AS ÁGUAS DORMENTES - AS ÁGUAS MORTAS), há uma citação de Nietzsche, retirada do livro Schopenhauer, página 33: “É preciso adivinhar o pintor para compreender a imagem” . Aproprio-me da citação nietzschiana, via Bachelard, para compreender este diferenciado parágrafo.
É preciso adivinhar o pintor para compreender a imagem, afirmou Nietzsche, e Bachelard referendou-o. E se Marie Bonaparte, endossada também por Gaston Bachelard, “descobriu” “a principal razão psicológica” da “tonalidade profunda do devaneio criador” dos contos de Edgard Alan Poe, porque não poderia agir da mesma forma, esta analista e ao mesmo tempo fenomenóloga tupiniquim, ao dialogar com este texto diferenciado do final do século XX? E por que não repensar também algumas idéias de Foucault, reveladas à França e ao mundo lá pelos idos dos anos de 1970, ainda atuantes por aqui, nestas plagas também tupiniquins, nestes anos iniciais do Terceiro Milênio.


sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Onças



Onças 

Rogel Samuel 


Alencar é cinematográfico. Estou relendo "O guarani". O livro começa por um "fio d'água". Alencar seduz pela leveza. Logo aparece uma cena "impossível": Peri caça uma onça preta com as próprias mãos. Perto de Manaus vivia um caboclo, caseiro meio índio, forte como touro selvagem. Certo dia uma jaguatirica, também chamada "gato do mato", do tamanho de um cão, caiu na armadilha para paca. O animal ficou entrelaçado de cordas pelo corpo, mal podia mover-se, mas arrancou-se dali. Ele ouviu aquilo, foi lá com a filha pequena. A onça conseguiu pular sobre a menina. Mas o animal estava de costas, entrançado de cordas. Ele o pegou para estrangular. Quando chegaram outros homens a onça estava ainda viva e, com as unhas da única pata livre, cortava o inimigo que quase morreu. Em Alencar, Peri enfrenta a onça preta. As onças pretas estão em extinção. Famosas. Na minha época só existiam no Norte. Meu amigo A., que viajou 40 anos pelo Amazonas, só encontrou uma, ele descendo um igarapé estreito, motor quase em silêncio, sobre um tronco de árvore caída, ao sol, ela. Deu marcha a ré. O animal voltou-se, soberano. Olhou com desprezo, voou como um pássaro, atravessou a margem. Conheci um "matador" de onças, velhote magro, vivia daquilo, no Careiro, perto de Manaus. Amarrava um porco, subia na árvore, ficava na espera. Nesta época digital estou relendo Alencar e falando de onça. Alencar é a Mata Atlântica. Alencar organiza a estória como a história do Brasil, que sai de sua obra inteira. Sente a floresta, que ele conheceu bem. Sem não me engano, ele veio, por terra, do Ceará ao Rio de Janeiro. Naquela época, uma epopéia, uma caminhada digna da coluna Prestes. Lula também fez a caminhada da cidadania assim. Meu amigo NL viajou com Lula pelo interior do Amazonas. Marta estava lá, também. Mulher bonita, a Marta. O guarani, ópera, filme, medieval, com direito a castelo, cavaleiro (Peri), donzela, rei. Alencar escrevia para o jornal, os romances saíam em seriados. Ele amava esse país de índios, negros e portugueses. É um escritor brasileiro. Veio, por terra, do Ceará ao Rio de Janeiro. Como Prestes. Minha amiga NG ficou furiosa com Lula porque em Manaus preparou-lhe um almoço com as próprias mãos e depois de comer Lula foi agradecer à cozinheira: "Companheira..." E deu-lhe um abraço. Ela é escritora, mas gosta mesmo é de ser elogiada na cozinha. Se você for almoçar lá e não elogiar a comida ela entra em depressão. Ou fúria. Seu livro x. está sendo traduzido na França. Prestes eu conheci, já muito idoso, em conferência no Fundão. Brizola também. Logo que voltou do exílio, em Nova Iguaçu. Brilhante orador, abriu e fechou o congresso do PDT. Voz metálica, imagem exata e exaltada. Conheci Juscelino, na Faculdade de Filosofia. E Lacerda. Só me faltou D. Antonio de Mariz, pai de Cecília.

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

OLÍMPÍADA



Agora tu, Calíope, me ensina
O que dizer dessa Olimpíada
Vivida no chão daquela praia
Copacabana dama do mar...

Festa de cores e falares
Ao som do azul do mar profundo...
Nenhuma briga, nenhum ataque
Que não fosse riso, gol e caipirinha
Bela celebração, bela conquista
Do lábaro estrelado brasileiro
ROGEL SAMUEL

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

RILKE

RILKE


RAINER MARIA RILKE 


Trad. Joao Accioli


PRIMEIRA ELEGIA

RAINER MARIA RILKE


Quem se eu gritasse, entre as legiões de Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgastar-nos a face — a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que amam?
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos — talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.
Sim, as primaveras precisam de ti.
Muitas estrelas queriam ser percebidas.
Do passado profundo afluía uma vaga, ou
quando passavas sob uma janemla aberta,
uma viola d'amore se abandonava. Tudo isso era missão.
Acaso a cumpriste? Não estavas sempre
distraído, aà espera, como se tudo
anunciasse a amada? (Onde queres abrigá-la,
se grandes e estranhos pensamentos vão e vêm
dentro de ti e, muitas vezes, se demoram nas noites?)
Se a nostalgia vier, porém, canta as amantes;
ainda não é bastante imoral sua celebrada ternura.
Tu quase as invejas — estas abandonadas
que te parecem tão mais ardentes que as
apaziguadas. Retoma infinitamente o inesgotável
louvor. Lembra-te: o herói permanece, sua queda
mesma foi um pretexto para ser — nasciemnto supremo.
Mas às amantes, retoma-as a natureza no seio
esgotado, como se as forças lhe faltassem
para realizar duas vezes a mesma obra.
Com que fervor lembraste Gaspara Stampa,
cujo exemplo sublime faça enfim pensar uma jovem
qualquer, abandonada pelo amante: por que não sou
como ela? Frutificarão afinal esses longínquos
sofrimentos? Não é tempo daqueles que amam libertar-se
do objetivo amado e superá-lo, frementes?
Assim a flecha ultrapassa a corda, para ser no vôo
mais do que ela mesma. Pois em parte alguma se detém.
Vozes, vozes. Ouve, meu coração, como outrora apenas
os santos ouviam, quando o imenso chamado
os erguia do chão; eles porém permaneciam ajoelhados,
os prodigiosos, e nada percebiam,
tão absortos ouviam. Não que possas suportar
a voz de Deus, longe disso. Mas ouve essa aragem,
a incessante mensagem que gera o silêncio.
Ergue-se agora, para que ouças, o rumor
dos jovens mortos. Onde quer que fosses,
nas igrejas de Roma e Nápoes, não ouvias a voz
de seu destino tranquilo? Ou inscrições não se ofereciam,
sublimes? A estela funerária em Santa Maria Formosa...
O que pede essa voz? a ansiada libertação
da aparência de injustiça que as vezes perturba
a agilidade pura de suas almas.
É estranho, sem dúvida, não habitar mais a terra,
abandonar os hábitos apenas aprendidos,
às rosas e a outras coisas o sentido do vir-a-ser humano;
o que se era, entre mãos trêmulas, medrosas,
não mais ser; abandonar até mesmo o próprio nome
como se abandona um brinquedo partido.
Estranho, não desejar mais nossos desejos. Estranho,
ver no espaço tudo o quanto se encandeava, esvoaçar,
desligado. E o estar-morto é penoso
e quantas tentativas até encontrar em seu seio
um vestígio de eternidade. — Os vivos cometem
o grande erro de distinguir demasiado
bem. Os Anjos (dizem) muitas vezes não sabem
se caminham entre vivos ou mortos.
Através das duas esferas, todas as idades a corrente
eterna arrasta. E a ambas domina com seu rumor.
Os mortos precoces não precisam de nós, eles
que se desabituam do terrestre, docemente,
como de suave seio maternal. Mas nós,
ávidos de grandes mistérios, nós que tantas vezes
só através da dor atingimos a feliz transformação, sem eles
poderíamos ser? Inutilmente foi que outrora, a primeira
música para lamentas Linos, violentou a rigidez da
matéria inerte? No espaço que abandonava, jovem,
quase deus, pela primeira vez o vácuo estremeceu
em vibrações — que hoje nos trazem êxtase, consolo e amparo.

AS VAGAS DA ELEGIA DE CAMÕES

AS VAGAS DA ELEGIA DE CAMÕES

Rogel Samuel


No início o poeta conta que «Simônides, falando ao capitão Temístocles, um dia», lhe prometia ensinar uma arte mnemônica que fizesse com que nunca se esquecesse de nada. Mas o capitão tinha um passado tormentoso de batalhas e de mortes, e lhe disse que melhor seria que lhe ensinasse esquecer de tudo o que passou:

Que, se é forçado andar por várias partes
buscando à vida algum descanso honesto,
que tu, Fortuna injusta, mal repartes;
se o duro trabalho é manifesto
que por grave que seja, há-de passar-se
com animoso espírito e ledo gesto;
de que serve às pessoas alembrar-se
do que se passou já, pois tudo passa,
senão de entristecer-se e magoar-se?

Na realidade, este capitão Temístocles é um outro do poeta Camões, que por guerras e desastre passou no Oriente, e de cujos amores passados não quer lembrar. Mais um pouco e estamos na reencarnação do amor: «Se noutro corpo uma alma se traspassa, não, como quis Pitágoras, na morte mas como manda Amor na vida escassa». Porque para suportar o por que ele passou, « homem fora formado de diamante».
Eis que ele começa a narrativa de sua viagem:

Soltava Eolo a rédea e liberdade
ao manso Favónio brandamente,
e eu já tinha solta a saudade.
Neptuno tinha posto o seu tridente;
a proa a branca escuma dividia,
co a gente marítima contente.
O coro das Nereidas nos seguia,
os ventos, namorada Galateia
consigo, sossegados, os movia.
Das argênteas conchinhas, Panopeia
andava pelo mar fazendo molhos,
Melanto, Dinamene, com Ligeia.


Na Elegia, de Camões vai olhando pras águas... «Ó claras Ninfas!», diz ele, e reclama da ausência amada. « O coro das Nereidas nos seguia, os ventos, namorada Galateia consigo, sossegados, os movia. »
Mas no meio da viagem... a tormenta: «Porque, chegado ao Cabo da Esperança, .... eis a noite com nuvens escurece, do ar supitamente foge o dia, e o largo oceano se embravece. »

A descrição da tempestade: «A máquina do Mundo parecia que em tormenta se vinha desfazendo, em serras todo o mar se convertia. »
A violência: «sonoras tempestades levantavam,
das naus as velas côncavas rompendo.
As cordas, ao ruído, associavam,
os marinheiros, já desesperados,
com gritos para o Céu o ar coalhavam. »

Depois da tempetade:

Oh, lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
como vivem no campo sossegados!
Dá-lhes a justa terra o mantimento,
dá-lhes a fonte clara a água pura,
mungem suas ovelhas cento a cento.
Não vêm o mar irado, a noite escura,
por ir buscar a pedra do Oriente;
não temem o furor da guerra dura.
Vive um com suas árvores contente,
sem lhe quebrar o sono sossegado
o cuidado do ouro reluzente.
Se lhe falta o vestido perfumado,
e da fermosa cor assíria tinto,
e dos torçais atálicos lavrado;
se não tem as delicias de Corinto,
e se de Pário os mármores lhe faltam,
o piropo, a esmeralda, e o jacinto;
se suas casas d'ouro não se esmaltam,
esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
onde os cabritos seus, comendo, saltam.
Ali amostra o campo várias cores,
vêm-se os ramos pender co fruto ameno,
ali se afina o canto dos pastores:
ali cantara Títiro e Sileno.
Enfim, por estas partes caminhou
a sã justiça para o Céu sereno.
Ditoso seja aquele que alcançou
poder viver na doce companhia
das mansas ovelhinhas que criou!
Este, bem facilmente alcançaria
as causas naturais de toda a cousa:
como se gera a chuva e neve fria;
os trabalhos do Sol, que não repousa;
e porque nos dá a Lua a luz alheia,
se tolher-nos de Febo os raios ousa;
e como tão depressa o Céu rodeia;
e como um só, os outros traz consigo;
e se é benina ou dura Citereia.
Bem mal pode entender isto que digo
quem há-de andar seguindo o fero Marte,
que traz os olhos sempre em seu perigo.
Porém seja, Senhor, de qualquer arte,
que, posto que a Fortuna possa tanto,
que tão longe de todo o bem me aparte,
não poderá apartar meu duro canto
desta obrigação sua, enquanto a morte
me não entrega ao duro Radamanto,
—se para tristes há tão leda sorte.


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Ninguém é pai de um poema sem morrer

Ninguém é pai de um poema sem morrer

Rogel Samuel

No «Arranjos para assobio» (Editora Record, 1998, RJ), Manuel de Barros publicou um poema, que li na Internet, em Blocosonline, chamado «Sabiá com trevas», cujo IX diz:
O poema é, antes de tudo, um “inutensílio”.
"Hora de iniciar algum convém se vestir roupa de trapo.
Há quem se jogue debaixo de carro nos primeiros instantes.
Faz bem uma janela aberta uma veia aberta.
Pra mim é uma coisa que serve de nada o poema enquanto vida houver.
Ninguém é pai de um poema sem morrer." .O poeta começa pela inutilidade do poema.
Um utensílio é algo que se usa, um utilitário, um objeto que serve para algum fim.
No «Novo manual de teoria literária» (Petrópolis, Vozes, 3a ed.), escrevi que, em primeiro lugar, é necessário distinguir objeto artístico de utensílio.
A arte não se pode identificar com um utensílio. A arte é gratuita, isto é, sua primeira finalidade é a própria arte.
Aliás, a arte não deve ter finalidade, porque ela é uma finalidade, em si mesma. É uma atividade lúdica, isto é, não tem objeto fora de si mesma. O que não quer dizer que não sirva para nada. Serve, por exemplo, para mudar o mundo.
Mas foi a sociedade moderna que estabeleceu que o padrão de uma realidade, ou de um determinado objeto, é sua necessidade, sua utilidade, isto é, os objetos são definidos não pelo que são, mas para que servem. Tudo, na vida social, é visto com respeito a um determinado fim. Todos os produtos humanos, todas as ações humanas (o trabalho, inclusive) estão assim definidos.
O poema fala da morte.
Seu mote é a morte.
A morte, entretanto, como o poema, não é um utensílio.
A morte é o fim de toda utilidade, de todos os valores, está além dos valores que visam a um de­terminado fim.
A morte nem é um valor.
Ela é ausência de.
O visar a um determinado fim significa inserir-se no meio da produção capitalista que objetiva a satisfação, a realização. A morte não. A morte é um não. E a arte, como a morte, não visa a um determinado fim, não visa à satisfação de uma finalidade (diz o poema), nem de necessidades.
A arte se expande no espaço da liberdade, talvez da morte. A liberdade é a espera de nada, ou seja, a arte, como a morte, não visa a nada, porque ela é em si sua própria finalidade, não há outra maior além dela mesma ou tão importante quanto ela.
Nada há maior que a morte.
E assim o poema.
Isto não quer dizer que a arte, a morte, o poema não tenha outra finalidade além de si mesmo. A arte e a morte podem servir, por exemplo, para educar, mas que a sua própria finalidade em si mesma já seria suficiente para justificar sua existência.
É liberdade. É criação.
A liberdade é a espera de nada, vige no espaço lúdico, isto é, gratuito, que não visa a nada além de si mesma e da conquista da liberdade. A morte é lúdica.
A atividade lúdica, o jogo, é gratuito. É uma atividade que não visa a um determinado fim outro que não a própria ação. Assim como a dança não visa a outra coisa senão ao próprio movimento.
Mas como eu ia dizendo, a morte é gratuita.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

O sol do verão



O sol do verão

 

Rogel Samuel

 

O sol, o verão. O brilho intenso, os ares claros, as nuvens raras. No Rio é tempo de amar.

         Lembro-me de crônica de Rubem Braga, sobre o começo do verão.

         Um dia - e não sei se já contei - estávamos na biblioteca da Faculdade que na época era a FNFi, ou Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. Ficava onde hoje está a Academia de Letras.

         Era manhã cedo.

         Entra um bêbado.

Um homem em desalinho, mas bem vestido.

Grita:

         - Tem meus livros aí?

         Ivete, a diretora da biblioteca, manda chamar os funcionários para que ponham para fora o intruso.

         Mas não deixamos e ele se reuniu conosco.

         Era Rubem Braga.

         Tinha acabado de ser embaixador, ou coisa assim.

         Não disse quem era, mas nos contou sua vida (com detalhes indiscretos que não devo contar).

Escreveu um poema para minha amiga Maria Alice (que faleceu este ano).

         Falou de literatura, poesia, vida. De Copacabana.

         Narrou suas mágoas.

Braga é um dos maiores escritores do país.

Seu texto, comparável a Clarice, a Machado, a Francisco Manuel de Melo.

Dom Francisco Manuel de Melo (1608-1666) é autor da CARTA DE GUIA DOS CASADOS, escrita na prisão, que fala 'do amor e da obediência'.

Diz Manuel de Melo: 'Não sou já mancebo. Criei-me em cortes; andei por esse mundo; atentava para as coisas; guardava-as na memória. Vi, li, ouvi."

O texto seco, sem adjetivos, direto e elegante. Como eu gosto.

' Estes serão os textos, estes os livros que citarei a V. Mercê, neste papel; onde, juntas algumas histórias que me forem lembrando, pode muito bem ser não sejam agora menos úteis que essa máquina de gregos e romanos, de que os que chamamos doutos, para cada coisa nos fazem prato, que às vezes nos enfastia'.

Mas meu assunto é o sol.

O sol do verão me alucina.

         E de Braga a D. Francisco Manuel de Melo passei.

Precisamos aprender a escrita com D. Francisco. E a bem casar.

Minha amiga X me critica. Diz que a minha linguagem é telegráfica.

Sim. É. Corto mais do que introduzo palavras.

Meu ideal é escrever uma crônica de uma única linha.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE












MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE

Rogel Samuel


De minha cara amiga Graça Carvalho, já falecida, recebi um precioso presente, a “Cartilha do bem sofrer com lições de bem amar”, do seu pai, o super-poeta amazonense Farias de Carvalho, publicada em 1967 e desde então esgotada.
Lá re-encontro o poema “Ocaso”, que não lia desde que Farias de Carvalho foi meu professor, no noturno do Colégio Estadual, onde ele lecionava literatura e eu tanto aprendia com ele: “Meus mortos hão de vir no fim da tarde”.
Só dá para ler este belo texto quem o situa na Manaus da década de 50, ou início de 60, quando foi ele escrito.
Aquela era uma cidade sem iluminação, ilhada no meio da maior floresta tropical do mundo. Ao cair da tarde, as perigosas trevas da floresta invadiam, a nostalgia da escuridão e da morte ameaçava, aquele Rio Negro ficava realmente Negro. Negro como a Morte Negra. Negro da morte de vinte e oito mil índios vitimados em 1729, numa hecatombe nunca esquecida por aquelas margens, de tal sorte que perto dali há um rio, chamado Rio Urubu, “rio doente para sempre, / desde o município de Silves”, como certa vez escrevi; rio onde um dia meu pai não me deixou mergulhar, “como se ali o rio pudesse / para sempre me tragar”.
Naquelas águas estão sepultados nossos antepassados e o grande guerreiro Ajuricaba, o herói que está em toda a parte ao mesmo tempo [Aiuricaua], rio de sangue Negro, de espinhos venenosos, de cadáveres históricos. Há demônios nas margens e eu me lembro da impressão trágica, da depressão que nos assaltava, ao cair da tarde, quando a cidade invadida por nuvens de moscas besouros, piuns, carapanãs sanguessugas, corujas, e aranhas peludas que saíam de seus esconderijos, e escorpiões de ébano que procuravam caça, a floresta ameaçada agora ameaçava, retomava e reconquistava o seu lugar em São João da Barra, nos expulsando para sempre, tudo debaixo da gloriosa chuva do ouro do mais esplendoroso por-de-sol do mundo, algo como explosão de bomba atômica terminal, final, de fim de mundo, finnisterra, que se expandia em coloridas nuvens para todos os lados, junto com misteriosas aves do entardecer.
Ajuricaba veio do rio Hiiaá, na margem esquerda do Negro, entre o Padauari e o Aujurá, no distrito de Lamalonga. Para salvar seu filho caiu em emboscada e foi prisioneiro da Coroa Portuguesa, em 1729, a Coroa o queria vivo para o supliciar com castigo e morte. No caminho, Ajuricaba, que era homem fortíssimo, arrancou do poste o grampo que o prendia e, com as correntes nas mãos algemadas, faz a matança dos soldados portugueses antes de se precipitar nas águas escuras do Rio Negro, onde morreu, não sem antes as amaldiçoar, e diz a lenda que é por isso que aquelas águas são estéreis, e não têm peixe. Logo depois, em vingança, o capitão Belchior Mendes de Moraes dizimou 300 malocas, matando em sacrifício mais de 28 mil índios das margens do rio que passou a se chamar Rio Urubu devido à montanha de cadáveres. E mais tarde balesteiros, sob o comando de um padre de nome piedoso, Frei José dos Inocentes, depois nome de rua de puta em Manaus, espalharam roupas contaminadas com varíola que disseminaram uma gigantesca epidemia que infectou 40 mil índios, arruinados de varíola, que é uma doença infecto-contagiosa, virulenta, que apodrece o corpo ainda vivo com erupções de pus e raquialgia, pápulas, pústulas, cegueira e agonia de uma morte bacteriológica lenta, os cadáveres semi-vivos sendo devorados por moscas, piuns, carapanãs, mutucas, cabo-verdes, potós, catuquis, marimbondos, suvelas, besouros e formigas. A saúva antropófaga devora um corpo em 20 minutos. Na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 1908, os mortos largados no caminho para serem enterrados na volta (30.430 operários foram internados no Hospital da Candelária, entre 1908 e 1912) e quando a locomotiva voltava só encontrava ossos brancos e limpos, comidos pelas saúvas. E também a formiga-de-fogo, a saca-saia, a lava-pés, a manhura, a cabeçuda, a taioca, a carregadeira, a táxi, a tracuá, a tocandira, peluda, enorme, venenosa, uma única picada basta para abater um homem, com fortes dores e febre, usada pelos índios na iniciação masculina dos garotos, que tinham de enfiar o braço numa cumbuca de tocandiras para provar que eram machos. E a formiga roceira, e a cortadeira, e a guerreira, a correição. Von Martius descreveu populações inteiras fugindo das formigas. As açucareiras eram capazes de fazer recuar um inteiro exército!
Por isso os mortos vinham no fim da tarde, “molhados da ferrugem líquida do rio”, diz o poeta, “que banha as margens dêste ... silêncio lúcido e sonoro / que embala na praia ao fim das tardes / os olhos de éter dos defuntos tortos / que lambem com o olhar a praia longe”.
Além disso, o trágico planger dos sinos da Matriz, construída por índios, da Igreja de São Sebastião, da Igreja dos Remédios, que se ouviam na inteira cidade, graves, ameaçadores, profundos, lembravam a Morte, e as rádios todas tocavam umas Avemarias, a Rádio Baré, a Difusora, a Rio-Mar, rádios de meu tempo, e misteriosas velhas beatas vestidas de negro, veladas, engolfadas, balbuciantes de preces, que se dirigiam às missas, entrando ainda sob a saraivada de toques dos imensos sinos magistrais.
É claro que, para nós, jovens poetas, devassos e boêmios, era a hora de nos preparar para as aulas e depois beber no Bacurau, no início da João Coelho, junto com catraieiros, prostitutas, mendigos e bandidos alcoólatras, provando aqueles peixes fritos, o pacu, a sardinha, o matrinchão, entre goles de cachaça barata; ou íamos para o Bar Bolero, que ficava na Cachoeirinha, na Rua Belém (creio eu, pois a memória já me falha), onde ouvíamos Nelson Gonçalves cantar os maiores sucessos em serenata, como os “Lábios que beijei”, e isso ia até ao raiar do dia, quando voltávamos, bêbados, felizes, para nossas casas, a pé, sob o latido generalizado dos cachorros dentro dos muros das casas, cães que não compreendiam por que tão tarde (e tão cedo) passávamos nós por ali, no deserto das ruas que um dia inspirou o poeta L. Ruas a escrever:

Ah!
Esta lua
Neste fim de rua 


Vamos ler o poema:


MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE 

FARIAS DE CARVALHO

Meus mortos hão de vir no fim da tarde
molhados da ferrugem liquida do rio
que banha as margens deste meu silencio,
deste silencio lúcido e sonoro
que embala na praia ao fim das tardes
os olhos de éter dos defuntos tortos
que lambem com o olhar a praia longe. 
Meus mortos hão de vir no fim da tarde
mordendo a pele aquática do vento;
(vento, vento de tíbias descarnadas
arrepiando o pelo das vidraças). 
Meus mortos hão de vir no fim da tarde.
Aguçai vossos dentes, cães do tempo,
vamos comer a morte no crepúsculo.
molhados da ferrugem liquida do rio
que banha as margens deste meu silencio,
deste silencio lúcido e sonoro
que embala na praia ao fim das tardes
os olhos de éter dos defuntos tortos
que lambem com o olhar a praia longe. 
Meus mortos hão de vir no fim da tarde
mordendo a pele aquática do vento;
(vento, vento de tíbias descarnadas
arrepiando o pelo das vidraças). 
Meus mortos hão de vir no fim da tarde.
Aguçai vossos dentes, cães do tempo,

vamos comer a morte no crepúsculo.

DE LOS HERMOSOS EL RETOÑO ANSIAMOS



DE LOS HERMOSOS EL RETOÑO ANSIAMOS


Rogel Samuel



Daqueles belos seres a volta ansiamos, Pra que suas belas rosas nunca morram. Pois quando cair do tempo o Outono Guardemos sua beleza de memória.
Manuel Bandeira parecia cansado, quando o vi. Festejo solitariamente 42 anos de poesia. O primeiro poema foi publicado no dia 8 de fevereiro de l959, em O jornal, de Manaus. Não um poema que envergonhe muito, mas com os lugares-comuns da poética, poetizando e repetindo o já lido. Mas poesia é o que [ainda] não existe...
Mas Tu, que só a teus tão belos olhos amas, Apenas te alimenta o próprio engano. E onde abundância existe colhes fome. Pois Tu, do mundo agora o ornamento,
Por isso, festejo silenciosamente 42 anos de poesia. Não triste, porém. Afinal, escrevi. Publiquei. Andei em antologias. A Poesia, como a riqueza, não tem quem a quer? Há poetas que morrem sem a ver. Outros escrevem obras-primas.
Em ti sepultas teu contentamento. E da natureza egoísta que há contigo Piedade não tens do mundo e nem lamentas, Nem colhes do chão do canto o que te é devido. Que faz o poeta menor? "Relê as folhas que já foram lidas". Variação do já feito e lido. A musicalidade de Casimiro lembra Manuel Bandeira. "Hoje, amanhã e sempre...". Conheci-o bem velho. Morava em frente à FNFi. Fomos visitá-lo. Batemos à porta. Ele abriu. "Que vocês querem?", pergunta, com a voz nasal. Contamos quem somos etc. "Estou doente, não dá" - pede licença, fecha a porta. Creio que estava só. Havia um tapete oriental na parede, um vento gelado saía, vento de coisa velha, mofo. O vento gelado da morte. Vestia pijama de listas. Parecia cansado. "Hoje, amanhã e sempre / teu nome será para nós, Manuel / Bandeira". Manuel era próximo da morte. Diz Shakespeare,

From fairest creatures we desire increase, That thereby beauty’s rose might never die, But as the riper should by time decease, His tender heir might bear his memory: But thou, contracted to thine own bright eyes, Feed’st thy light’s flame with self-substantial fuel, Making a famine where abundance lies, Thyself thy foe, to thy sweet self too cruel Thou that art now the world’s fresh ornament And only herald to the gaudy spring, Within thine own bud buriest thy content And, tender churl, mak’st waste in niggarding. Pity the world, or else this glutton be, To eat the world’s due, by the grave and thee.

Traduzido por Ivo Barroso assim:
Dos seres ímpares ansiamos prole Para que a flor do belo não se extinga, E se a rosa madura o Tempo colhe, Fresco botão sua memória vinga. Mas tu, que só com os olhos teus contrais, Nutres o ardor com as próprias energias Causando fome onde a abundância jaz, Cruel rival, que o próprio ser crucias. Tu, que do mundo és hoje o galardão, Arauto da festiva Natureza, Matas o teu prazer inda em botão E, sovina, esperdiças na avareza. Piedade, senão ides, tu e o fundo Do chão, comer o que é devido ao mundo.

A tradução de Manuel Mújica Láinez é:
De los hermosos el retoño ansiamos para que su rosal no muera nunca, pues cuando el tiempo su esplendor marchite guardará su memoria su heredero. Pero tú, que tus propios ojos amas, para nutrir la luz, tu esencia quemas y hambre produces en donde hay hartura, demasiado cruel y hostil contigo. Tú que eres hoy del mundo fresco adorno, pregón de la radiante primavera, sepultas tu poder en el capullo, dulce egoísta que malgasta ahorrando. Del mundo ten piedad: que tú y la tumba, ávidos, lo que es suyo no devoren.

E a nossa tradução livre: 

Daqueles belos seres a volta ansiamos, Pra que suas belas rosas nunca morram. Pois quando cair do tempo o Outono Guardemos sua beleza de memória. Mas Tu, que só a teus tão belos olhos amas, Apenas te alimenta o próprio engano. E onde abundância existe colhes fome. Pois Tu, do mundo agora o ornamento, Solitário cantor da primavera, Em ti sepultas teu contentamento. E da natureza egoísta que há contigo Piedade não tens do mundo e nem lamentas, Nem colhes do chão do canto o que te é devido.

(Festejo, em grande estilo, com Shakespeare nesta crônica, escrita no dia 8 de fevereiro de 2001, esquecida na gaveta do micro da memória. Pela leitura, obrigado).

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

A MORTE NO ENVELOPE

A MORTE NO ENVELOPE

ROGEL SAMUEL

A vida é breve. O Brasil não tem tradição de literatura policial. Outros
gêneros literários sumiram, também. A nova poesia, os novos contistas, o
novo romance. Falta mídia? Não acredito. Faltam editoras. Não faltam
leitores. Coelho Neto escreveu 112 livros e 50 peças de teatro. Vida
breve. Até o fim Raquel de Queiroz escreveu (e muito bem) no "Estado de São
Paulo". Pode ser lida pela Internet. "Por que os pássaros cantam?"
Recebo um e-mail: "Caro R., o que é diferente em sua crônica é que ela
se vai encadeando a partir de referências, sem fixar-se no tema
inicialmente proposto. Você segue o fluxo labiríntico..." No tempo de
Humberto de Campos, não havia e-mail. Ele recebia inúmeras cartas.
Escreveu obra gigantesca, hoje desconhecida. "A morte no envelope" de
Luiz Lopes Coelho vem à lembrança nos dias de antraz. Toda semana decido
parar de escrever esta crônica. Mas recebo e-mail de gente importante
que diz que leu e gostou. Ler já é muito. A literatura não morre no
envelope, mas na estante. Coelho Neto e Humberto de Campos escreveram
muito, como Camilo, um gênio, que ainda se lê com prazer. Estilo rápido,
nervoso e elétrico. A grande massa da literatura morre, morreu, ou
morrerá. Balzac escrevia por compulsão. Um dos mais bem sucedidos
escritores do Brasil, Jorge Amado, produzia um bom livro a cada dois
anos. Mas há autores de um livro só, como Manuel Antonio de Almeida.
Assis Brasil escreveu (e continua escrevendo) mais de cem livros. Vive
de literatura, produz romances, ensaios, antologias. É um mestre. A
"Tragédia burguesa", de Otavio de Faria, tem quinze grossos volumes.
Elogiada por Mestre Alceu, hoje desapareceu. Ele era excelente crítico
de cinema. Tobias Barreto, dono de respeitável obra, não se encontra.
Escreveu obras filosóficas importantes. Onde estão seus livros? Vida
breve. Bach resumiu a "poética" de sua música na "A Arte da Fuga" (que
contém o seu nome: si bemol, lá, dó, si). Conhecida um século depois.
Mas A Arte da Fuga ficou incompleta. A última fuga não acaba; continua a
rolar, sem fim. Vida breve. Infinita.