AS VAGAS DA ELEGIA DE CAMÕES
Rogel Samuel
No início o poeta conta que «Simônides, falando ao capitão Temístocles, um dia», lhe prometia ensinar uma arte mnemônica que fizesse com que nunca se esquecesse de nada. Mas o capitão tinha um passado tormentoso de batalhas e de mortes, e lhe disse que melhor seria que lhe ensinasse esquecer de tudo o que passou:
Que, se é forçado andar por várias partes
buscando à vida algum descanso honesto,
que tu, Fortuna injusta, mal repartes;
se o duro trabalho é manifesto
que por grave que seja, há-de passar-se
com animoso espírito e ledo gesto;
de que serve às pessoas alembrar-se
do que se passou já, pois tudo passa,
senão de entristecer-se e magoar-se?
Na realidade, este capitão Temístocles é um outro do poeta Camões, que por guerras e desastre passou no Oriente, e de cujos amores passados não quer lembrar. Mais um pouco e estamos na reencarnação do amor: «Se noutro corpo uma alma se traspassa, não, como quis Pitágoras, na morte mas como manda Amor na vida escassa». Porque para suportar o por que ele passou, « homem fora formado de diamante».
Eis que ele começa a narrativa de sua viagem:
Soltava Eolo a rédea e liberdade
ao manso Favónio brandamente,
e eu já tinha solta a saudade.
Neptuno tinha posto o seu tridente;
a proa a branca escuma dividia,
co a gente marítima contente.
O coro das Nereidas nos seguia,
os ventos, namorada Galateia
consigo, sossegados, os movia.
Das argênteas conchinhas, Panopeia
andava pelo mar fazendo molhos,
Melanto, Dinamene, com Ligeia.
Na Elegia, de Camões vai olhando pras águas... «Ó claras Ninfas!», diz ele, e reclama da ausência amada. « O coro das Nereidas nos seguia, os ventos, namorada Galateia consigo, sossegados, os movia. »
Mas no meio da viagem... a tormenta: «Porque, chegado ao Cabo da Esperança, .... eis a noite com nuvens escurece, do ar supitamente foge o dia, e o largo oceano se embravece. »
A descrição da tempestade: «A máquina do Mundo parecia que em tormenta se vinha desfazendo, em serras todo o mar se convertia. »
A violência: «sonoras tempestades levantavam,
das naus as velas côncavas rompendo.
As cordas, ao ruído, associavam,
os marinheiros, já desesperados,
com gritos para o Céu o ar coalhavam. »
Depois da tempetade:
Oh, lavradores bem-aventurados!
Se conhecessem seu contentamento,
como vivem no campo sossegados!
Dá-lhes a justa terra o mantimento,
dá-lhes a fonte clara a água pura,
mungem suas ovelhas cento a cento.
Não vêm o mar irado, a noite escura,
por ir buscar a pedra do Oriente;
não temem o furor da guerra dura.
Vive um com suas árvores contente,
sem lhe quebrar o sono sossegado
o cuidado do ouro reluzente.
Se lhe falta o vestido perfumado,
e da fermosa cor assíria tinto,
e dos torçais atálicos lavrado;
se não tem as delicias de Corinto,
e se de Pário os mármores lhe faltam,
o piropo, a esmeralda, e o jacinto;
se suas casas d'ouro não se esmaltam,
esmalta-se-lhe o campo de mil flores,
onde os cabritos seus, comendo, saltam.
Ali amostra o campo várias cores,
vêm-se os ramos pender co fruto ameno,
ali se afina o canto dos pastores:
ali cantara Títiro e Sileno.
Enfim, por estas partes caminhou
a sã justiça para o Céu sereno.
Ditoso seja aquele que alcançou
poder viver na doce companhia
das mansas ovelhinhas que criou!
Este, bem facilmente alcançaria
as causas naturais de toda a cousa:
como se gera a chuva e neve fria;
os trabalhos do Sol, que não repousa;
e porque nos dá a Lua a luz alheia,
se tolher-nos de Febo os raios ousa;
e como tão depressa o Céu rodeia;
e como um só, os outros traz consigo;
e se é benina ou dura Citereia.
Bem mal pode entender isto que digo
quem há-de andar seguindo o fero Marte,
que traz os olhos sempre em seu perigo.
Porém seja, Senhor, de qualquer arte,
que, posto que a Fortuna possa tanto,
que tão longe de todo o bem me aparte,
não poderá apartar meu duro canto
desta obrigação sua, enquanto a morte
me não entrega ao duro Radamanto,
—se para tristes há tão leda sorte.