quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Eu me olho

Eu me olho
No fluxo de esmeralda do riacho
Ou sento no pedregulho do penhasco.
Minha mente, nuvem solitária
Inclina-se para o nada,
Não precisa de nada
Do mundo e de seus eventos sem fim.
- Han Shan (9º c)

domingo, 28 de outubro de 2018

O CAVALO DO APOCALIPSE

O CAVALO DO APOCALIPSE

ROGEL SAMUEL

Leio o mágico poema de Farias de Carvalho (1930-1997), “Meu cavalo chegou”, meu ex-professor (sua filha a poetisa Graça Carvalho foi minha amiga, já falecida).
A personalidade de Farias era marcante, carismática, extraordinária e nos parecia grandioso ao falar aos alunos, a voz possante, os gestos teatrais, abertos, os grandes olhos que lembrava Orson Welles.

O poema começa com:

“Meu cavalo chegou (memória e nuvem),
 a aurora derramada sobre a crina.
 Meu cavalo chegou. Fome de tudo
 estou também: engoliremos mundos.”

Que significa esse cavalo? Pois sua poesia sempre tem isso: uma reflexão sobre o tempo, os mortos, um mergulho naquele espaço misterioso. A aurora sobre a crina, a fome sobre os mundos...

“Meu cavalo chegou. E, pressentidos,
 os caminhos me espiam de suas rédeas.
 Meu cavalo chegou. Há quanto tempo
 gasto-me em pés e olhos nesta espera...”

Os caminhos vêm das rédeas, os pés são de espera, os olhos no horizonte.
E o cavalo vem do mito, do tempo, do vento, dos espaços, da espera, da morte. Do sonho:

“Meu cavalo chegou. Eu despertava
 quando o vento falou-me de seus cascos
 e a poeira garantiu-me sua presença.”

E vem sob a poeira do tempo, sua presença neste cemitério, é o fim, cumprir-me-ei, a população desse campo o cavalo vem para completar, preencher, executar, recolher e levar os mortos:

“Meu cavalo chegou. Cumprir-me-ei.
 Tanta gente cansada nessas cruzes...
 Meu cavalo chegou. Mortos, montai!...”

Enfim, o cavalo significa a viagem, a partida, a passagem, a perda, o transporte, a fuga, o escape para a fantasia, para o mundo dos mortos, dos sonhos, do levar, do que arrasta, do que leva e retira, do afastar para sempre.
O cavalo branco retira os mortos e os apaga, no esquecimento, na névoa do nunca mais.
O cavalo chegou. Vamos partir.
--------------------------
 Meu cavalo chegou (memória e nuvem),
 a aurora derramada sobre a crina.
 Meu cavalo chegou. Fome de tudo
 estou também: engoliremos mundos.
 Meu cavalo chegou. E, pressentidos,
 os caminhos me espiam de suas rédeas.
 Meu cavalo chegou. Há quanto tempo
 gasto-me em pés e olhos nesta espera...
 Meu cavalo chegou. Eu despertava
 quando o vento falou-me de seus cascos
 e a poeira garantiu-me sua presença.
 Meu cavalo chegou. Cumprir-me-ei.
 Tanta gente cansada nessas cruzes...
 Meu cavalo chegou. Mortos, montai!...

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

ANIVERSÁRIO DE MANAUS



Manaus rica, copia Paris. Comerciantes enriquecem. Ostenta o Teatro Amazonas os seus espelhos de cristal. Os milionários jogam cartas com anelados dedos pesados de diamantes, arriscando fortunas no Hotel Cassina, no Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta. Telhas de Marselha ao luar na Rua dos Remédios, na Rua da Glória. Arquitetura art-nouveau do palácio de Ernest Scholtz - depois Palácio Rio Negro, sede do Governo. Arandelas, bandeiras, implúvio. Intercolúnio. O cunhal, o lambrequim, a voluta, o capitel, a cornija. Arquitrave. Barrete de clérigo, adufa, muxarabi, água-furtada, muiraquitã, envasadura, atleta, estípite. O enxalso, o frontão de canela. Galilé. Pequena Manaus, grande Paris!. Lojas, magazines, charutarias, livrarias, alfaiatarias, ourivesarias. Bissoc. Pâtisserie. Du sucre, des fruits, de la crème. A la ville de Paris, Au bon marché, Quartier du temple, Damas do Gabinete Villeroy, Casa Louvre, Livraria Palais Royal (na rua Municipal, n0 85, as novidades literárias), Livraria Universal, Agência Freitas, Casa Sorbonne (dentro do Grande Hotel), a Confeitaria Bijou, a Padaria Progresso. Faroletes de pedra de morona e de puraquequara. A bela Villa Fany, luxuosíssima. O Cais dos Barés, a Biblioteca Provincial (que incendiou fraudulentamente, para destruir os Arquivos Públicos, nos fundos). O prédio dos Educandos Artífices que deu nome ao bairro. Amazon Steamship Navigation Co. Um prédio importado, peça por peça, da Inglaterra: a Alfândega, montada aqui. Outro, projeto do próprio Gustavo Eiffel, de ferro: o Mercado Municipal. Um Serviço Telefônico serve a cidade. A eletricidade ilumina as ruas de Manaus no início do Século, talvez das primeiras cidades brasileiras a ter este serviço. Calçadas da Praça São Sebastião, em pedras portuguesas pretas e brancas, em ondas que alegorizavam o “encontro das águas” do Negro e Solimões (posteriormente imitadas na praia de Copacabana). Bondes elétricos da Manaus-traways. Bebe-se Veuve Clicquot, truffes, champignon. Huntley & Palmers, Cross & Blackwell. A Cork, a Pilsen, o Bordeaux, o fiambre, o Queijo da Serra da Estrella. Lagostas, a Goiabada Christalizada. Charteuse, Anizette. Champagne Duc de Reims. O Vermouth. Água de Vichy. Leite dos Alpes Suíços. Casacas inglesas, o H. J., o pongê, o filó. Bengalas de castão de ouro. Cartolas, luvas, perfumes franceses, lenços de seda. Pistolas de prata e cabo de marfim. Gramophones de Victor. Discos duplos de Caruso. Casas aviadoras. O Amazonas participa da Exposição Comercial de St. Louis, no Missouri, e posteriormente da Exposição Universal de Bruxelas, onde ganha 32 medalhas de ouro, 39 de prata, 70 de bronze, 6 Diplomas de Honra e os 13 Grandes Prêmios. Manaus-Harbour. Tabuleiro de Xadrez. Óperas, óperas, óperas. Diariamente. Prostitutas importadas. A Cervejaria Miranda Correia.
A Praça da Saudade. O Roadway, o Trapiche. Sífilis. Malária. Vidros de Quinino Labarraque. Óleo de Fígado de Bacalhau. Vinho Silva Araújo. Regulador da Madre. Pílulas Rosadas. Café Beirão. Winchesters cabo encerado de mogno. Asilo de Mendicidade (construído pelo Comendador). Ponte da Imperatriz, Igarapé da Cachoeira Grande. A Serraria, no Igarapé do Espírito Santo. Banhos de do, no Igarapé das Sete Cacimbas. Buritizal. Jogos, no Parque Amazonense. Ida a Barcelos. Noite no Jirau. Muro do Leprosário do Aleixo. No recanto - o Chalé. Vista da Bomba d’Água. Viagens. Linhas. Manaus-Belém, Manaus-Santa Isabel, Manaus-Iquitos, Manaus-Marari, Manaus-Santo Antônio do Madeira, Manaus-Belém-­Baião. Gonçalves Dias no Hotel Cassina. Coelho Neto no palacete da rua Epaminondas. Euclides da Cunha no chalé da Villa Municipal. O Amazonas Comercial, O Imparcial, O Rio Negro, Jornal do Comércio. 126 navios trafegam no interior do Amazonas. Vaticanos, gaiolas e chatas. Inaugura-se, às custas de 3,3 milhões de dólares, o Teatro Amazonas, em 1896 - a mais cara e inútil obra faraônica da História do Brasil, milionária e importada, com painéis, centenas de lustres de cristal venezianos, colunas de mármore de várias cores, estátuas de bronze assinadas por grandes mestres, espelhos de cristal visotados, jarrões de porcelana da altura de um homem, tapetes persas - tudo o que, aliás, em 1912 desapareceu, esvaziando-se o Teatro para transformá-lo num depósito de borracha de uma firma americana. Ali o erário público foi enterrado em 10 mil contos de réis: o Teatro Amazonas custou o preço de 5 mil casas luxuosas. O dólar a 3 mil réis. Por 900 contos de réis se constrói o Palácio da Justiça. E por 1 mil e seiscentos contos de réis se constrói o Palácio do Governo; nunca concluído. O Teatro custou 10 mil vidas. Sim: Em 1919 no Amazonas já tinham chegado 150 mil emigrantes. A borracha naqueles anos foi tão importante quanto o café. O Amazonas exportou 200 mil contos de réis em borracha, contra 300 mil contos do café paulista na mesma época. Em 1908 é fundada a mais antiga universidade do Brasil, em Manaus, com cursos de Direito (o único que sobreviveu), Engenharia, Obstetrícia, Odontologia, Farmácia, Agronomia, Ciências e Letras. Nessa época 12 milhões de francos franceses sumiram, roubados no Governo de Constantino Nery. Encampa-se, fraudulenta e inutilmente, a Manaos Improvements, por 10.500 contos de réis - o preço do Teatro Amazonas. A história do Amazonas é um acúmulo de loucuras corruptas.



Balada das 13 Casas

Balada das 13 Casas 

LUIZ BACCELAR


São 13 casas unidas,
são 13 casas nascidas
no mesmo lance de rua,
com as mesmas paredes-meias,
os mesmos oitões de taipa,
a mesma fachada nua
e as mesmas janelas tristes
de 13 casas na rua.
Unidas? Bem... desunidas
nos problemas dos que habitam
suas paredes estanques;
mas juntas, pelo beiral,
pelos caibros de itaúba,
pelas telhas de canal
de 13 casas na rua.

E as famílias que moravam
(ainda algumas demoram)
nos tempos do berimbau?
Lembro: Cabelo-de-Fogo,
família Boca-Medonha,
a família Macaxeira
e a família Bacurau
das 13 casas da rua.

Das 13 só restam 11:
2 foram demolidas
pra dar lugar a um convento
de padres redentoristas
que, não contentes com isso,
de Tocos para Aparecida
mudaram o nome do bairro
das 13 casas da rua.

Numa delas eu vivi,
numa outra me criei,
e talvez venha a morrer;
quanto às outras, pelos donos
foram sendo reformadas,
gente próspera e "elegante"
como atestam as fachadas
das 13 casas da rua.

Apenas esta onde moro
de casa velha coroca
conservou a identidade
ainda usa arandelas,
calhas, tabiques, escápulas,
com manias e pirraças
de quem "viveu" outra idade
das 13 casas da rua.

Senhora Dona Donana
(Anna Henriqueta da Cunha),
ex-dona do quarteirão
irmão no estilo e argamassa,
a vós dedico e consagro
esta balada sem graça
em memória das antigas
fachadas, já derrubadas,
das 13 casas da rua.





( "Frauta de Barro", 1963)

terça-feira, 23 de outubro de 2018

A PANTERA - CINCO

A PANTERA - CINCO

ROGEL SAMUEL

“E então” – disse-me ela – “vou em busca de alguma fruta”. Mas da pantera o suspiro rouco ouvindo: “Não” – me diz – “se desvaneça o susto. Ela nada fará contra você, em si mesma consome o seu furor injusto” - mas de repente, com uma onda do mar crescendo e se embatendo, quebrando-se espumante, assim uma turba de aves negras se agiganta, aves em cópia, quase do céu escurecendo parte, nunca vistas antes, fardos de um lado e outro em grita ingente, rolando com suas asas ofegantes, como se de um grande mal fugissem e em volteios não soubessem para que rumo fugir, assim no teto em círculo volteando que iam ao ponto oposto de todo o espaço nos semicírculos: - “Que são?” – a Jara perguntei, “que razão há para aqui estarem?” E ela respondeu: -“Não sei, de algo muito terrível estão fugindo!”.
Até que aquilo passou, anoiteceu e numa lapa fomos dormir.
No dia seguinte me acordou ela dizendo: “Desçamos agora e vamos esquivos que nossa demora aqui é perigosa”. E tiramos dali nossos passos da árvore onde nos abrigamos até uma fonte onde pudemos beber que de uma fenda as águas brotavam como se vinda de alguma torrente interna e a sede saciamos e ao longo do nosso curso prosseguimos por um caminho perigoso nos movendo, até que deparamos uma lagoa junto à encosta do penhasco e um triste ribeiro, que notamos dali seguia para um pântano, onde a tristeza parecia morar, e assim atravessamos e voltamos a descer o que seria uma verde encosta em direção a um lugar mais fresco e longínquo daquela montanha.

domingo, 21 de outubro de 2018

A PANTERA - QUATRO - ROGEL SAMUEL

 A PANTERA - QUATRO - ROGEL SAMUEL

Chegamos juntos, chegamos a uma íngreme pedra de umas grandes árvores cercada, cingida de um pequeno e claro córrego, que atravessamos com os pés nas pedras e caminhamos, graves, os nossos olhos meneando para aquelas árvores de aspecto majestoso, e com voz suave Jara me falava, mas eu o que ouvia não entendia, enquanto subimos aquela alta pedra pelos galhos, sobre um viso nós subíamos, e de lá, de cima, divisávamos dessas aves o bando numeroso, de verde esmalte - a guerreira me dizia e me indicava, egrégias aves inda me extasia o prazer com que vê-las exultava, relato não me dando fazer plena de todas, a comparsa então se dividindo por outra vereda comigo na trilha, do ar sereno ao ar que treme, vindo me diz, mas na sua língua adversa, que traduzo como: “Aqui chegamos, onde e quando a luz do dia não mais brilha e o espaço menos largo se compreende, mas onde o pungir da dor é mais profundo”.

E aqui quedamos, armando de enorme galho nossas redes, a esperar que da noite as sombras nos cobrissem e o sono, misterioso e leve, nos tomasse.

Mas logo conseguimos ouvir os infernais lamentos da onça negra que rugia como um mar combatido de ventos, de tormenta ou furor nos perseguindo, nunca abatida, que perpetuamente nos seguira em seu embate, recrescida, que à borda daquele abismo precipitava em ais, soluços, rompendo com blasfêmias, ouvindo então de Jara me dizer:  não se atemorize, pois como nós ela também está temendo ao capricho do vento, sem conforto nesta longa série de avanços com seu grasnido assim no gemer seu que não descansa com que o vendaval fustiga denegrida.

E em tumulto as invisíveis aves da noite volteavam ao capricho dos ventos, que as trazia no conforto e não lhes fazia mais agonia, como nos ares longa série de abutres avançando por trás do tufão de sombras, em vão pelo seu pavor como saídos da tumba de demônios.

E após aquelas aves foi o silêncio feito, que perguntei: “Que aconteceu agora?”

– E Jara respondeu com um suspiro:

“Cruel destino, triste congitar! Procederam do mar do fim do mundo”.

Disse-lhe eu: “Oh Amiga, teus martírios me angustiam”, pois tinha nascido a flor do nosso afeto, como namorados éramos a sós naquele monte, e um ponto só nos deu guarida, pois a boca me beijou estremecida que tombei como corpo morto, mas:

“Espera!” – me disse ela, subia ao alto da colina onde da árvore pode observar uns novos clarões que vislumbrava.


Enquanto que eu da pantera a respiração ouvia por toda parte ao longe e ao lado.

quarta-feira, 17 de outubro de 2018

A PANTERA 3

TRÊS

E assim Jara me impeliu como se dissesse algo, e saímos dali pelo caminho alto e selvagem na noite sem estrelas, no mundo sem nome, sem traço, sem norte, na morte acreditando, que eu sentia, às margens de um igarapé que descia veloz, me dirigindo Jara que me fez parar para então, baixando os olhos, vi uma flecha especada, mas ela, Jara, serena e bela, o gesto me fazia, sem vozes, sem medo, arco em punho:
- Por aqui, por aqui - dizia ela - e quando assim dizia a terra tremeu num solavanco rouco mas tão forte que do medo da terra lacrimosa rompeu um vento e um clarão avermelhado, como se de um som profundo, o gemido das profundezas, tirado por aquele hórrido estampido, estremecendo todas árvores.
Jara continuava calma e, parando, perscrutou por saber por onde se achava a passagem e o caminho que a tudo no lugar sinistro se mostrava atenta.
- Temos de partir, temos de partir, - me disse ela, na sua linguagem selvagem, impulsionando-me com força para aquele vale tenebroso:
- Sim – disse ela, nos afastemos da treva do mundo – ela me disse, enfiando-se por uma subida: “Eu subirei primeiro, tu segundo”.
Tornei-lhe, vendo a sua palidez, pensei:- “Como hei-de ir, se é de espanto dominada, quando a segurança e conforto estou dela esperando”?
- “Vamos, - disse-me ela, sem se deter – essa jornada exige pressa, porque o abismo a estreitar-se já começa -  e escutei, vibrando no ar do espaço inteiro os murmúrios longínquos das bombas que estrugiam, e eu vi que no meio da selvagem terra nós fugíamos de uma grande guerra, sem parar, na selva penetrando e longe ainda divisando o hemisfério das trevas que alumiava, dali distante de onde nos achávamos, mas não tanto que não discerníssemos em parte uma luminosidade brilhando longínqua e o rumor que nos vinha, como que fugíssemos cercados por sombras inimigas e malévolas.

ROGEL SAMUEL

terça-feira, 16 de outubro de 2018

NEUZA MACHADO: A DESTRUIÇÃO PELO FOGO

Os dois personagens jamais ultrapassarão as barreiras que separam o mundo conceitual do mundo amorfo (não-dito), e terão de findar suas vidas, socialmente e miticamente, por intermédio do fogo. Mas, como personagens mitificados, representantes da chave para um novo recontar ficcional, poderão renascer ou não, sair das cinzas ou não, a cada leitura, a cada leitor que obtiver o privilégio de interagir com o texto receptivo de Rogel Samuel. Enquanto houver leitores reflexivos, a oferecer-lhes vida ficcional, Genaro e Antônio partirão “para a estrada como para a morte” , e, páginas adiante, “no meio da noite, (...) toda a floresta em chamas, na claridade aberta e vermelha, entre rolos negros de fumaça” , os dois terão de desaparecer (morrer) miticamente, e o personagem-narrador continuará “vivo e não ferido”, para (depois da extinção dos adjuvantes) modificar e amplificar o curso narrativo.

(...) o fogo sugere o desejo de mudança, de forçar o correr do tempo, de chegar imediatamente ao termo da vida, à outra vida. Neste caso, o devaneio é verdadeiramente empolgante e dramático; amplifica o destino humano; liga o que é pequeno ao que é grande, a lareira ao vulcão, a vida de uma acha à vida de um mundo. O ser fascinado escuta o apelo do braseiro. Para ele, a destruição é mais do que uma mudança, é uma renovação. 


Com o fogo tudo se modifica. Quando queremos que tudo se modifique apelamos para o fogo. O fenômeno inicial é não só o do fogo contemplado numa hora de ociosidade em toda a sua vivacidade e brilho, mas também o fenômeno que se passa graças ao fogo. O fenômeno pelo fogo é o mais sensível de todos; é aquele que mais precisamos de vigiar; tem de ser ativado ou retardado; temos de captar a ponta do fogo que marca uma substância como o instante do amor que assinala uma existência.  

“O fogo sugere o desejo de mudança”. A morte dos dois personagens pelo fogo (arma-de-fogo, flechas incandescentes, fogo na floresta) possibilita a alteração no rumo da primeira seqüência narrativa (sedimentada em princípio pelo arcabouço histórico) para uma segunda etapa ficcional (“a outra vida” gerenciada pela forma do narrar mítico). Com esta atitude, o proprietário da arte de narrar orienta o primeiro narrador para uma segunda dimensão ficcional (auxiliado pelo conhecimento do mito). Submetido à fervura ígnea de seu cogito diferenciador, percebe-se impelido à uma significação calamitosa (tio Genaro e Antônio consumidos pelo fogo) que anime o desenrolar do narrado. O fogo mítico, circunstancial, promove uma espécie de liberdade transitória, em busca das inovações do imaginário-em-aberto da consciência singular, interativa, porque o elemento rigorosamente indispensável ao escritor da pós-modernidade, propulsor de renovados juízos de descoberta, é o ar. O Manixi, a Cidade de Manaus e todos os personagens rogelianos que por ali transitam exalando dinamismo, se refortaleceram ao longo daqueles muitos anos de pesquisa (revelados nas Entrevistas do escritor amazonense), e se animam de um jeito incomum pela “força de elevação psíquica”  do escritor.

A CATEDRAL

A imagem pode conter: céu e atividades ao ar livre












A CATEDRAL
Entre brumas, ao longe, surge a aurora.
O hialino orvalho aos poucos se evapora,
Agoniza o arrebol.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu risonho,
Toda branca de sol.
E o sino canta em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
O astro glorioso segue a eterna estrada.
Uma áurea seta lhe cintila em cada
Refulgente raio de luz.
A catedral ebúrnea do meu sonho,
Onde os meus olhos tão cansados ponho,
Recebe a bênção de Jesus.
E o sino clama em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
Por entre lírios e lilases desce
A tarde esquiva: amargurada prece
Põe-se a lua a rezar.
A catedral ebúrnea do meu sonho
Aparece, na paz do céu tristonho,
Toda branca de luar.
E o sino chora em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
O céu é todo trevas: o vento uiva.
Do relâmpago a cabeleira ruiva
Vem açoitar o rosto meu.
E a catedral ebúrnea do meu sonho
Afunda-se no caos do céu medonho
Como um astro que já morreu.
E o sino geme em lúgubres responsos:
"Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!"
Publicado no periódico Vida de Minas (Belo Horizonte, 30 set. 1915).
In: GUIMARAENS, Alphonsus de. Obra completa. Organização de Alphonsus de Guimaraens Filho. Introdução de Eduardo Portella. Notas biográficas de João Alphonsus. Rio de Janeiro: J. Aguilar, 1960. p. 289. (Biblioteca luso-brasileira. Série brasileira, 20).

sábado, 13 de outubro de 2018

Noite negra

Noite negra


Noite negra
Noite. Noite negra, nessa montanha.
Negra noite
Unidos pelo mesmo hálito,
o mesmo manto sem estrelas.
Nesse mundo, onde estamos nós?
Nessa noite negra. Tão negra
que deixamos acesa aquela luz.
Entre nós. Nossas luzes.
Negra noite.

ROGEL SAMUEL

sexta-feira, 12 de outubro de 2018

Farias de Carvalho - OCASO

Farias de Carvalho - OCASO
Meus mortos hão de vir no fim da tarde
molhados da ferrugem liquida do rio
que banha as margens deste meu silencio, 
deste silencio 1úcido e sonoro
que embala na praia ao fim das tardes
os olhos de éter dos defuntos tortos
que lambem com o olhar a praia longe.
Meus mortos hão de vir no fim da tarde
mordendo a pele aquática do vento;
(vento, vento de tíbias descarnadas
arrepiando o pelo das vidraças).
Meus mortos hão de vir no fim da tarde.
Aguçai vossos dentes, cães do tempo,
vamos comer a morte no crepúsculo.
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terça-feira, 9 de outubro de 2018

VIEIRA: A MULHER NO EVANGELHO

VIEIRA - A MULHER DO EVANGELHO

VIEIRA; A oração da mulher do Evangelho foi altíssima na consideração do que louvou, a quem louvou e por quem louvou; do mesmo modo é altíssima a voz do Rosário na consideração do que pede, a quem pede, e por quem pede. A oração panegírica ou laudatória, e a oração deprecatória.
Extollens vocem.
Para compreender a excelência e alteza de qualquer oração vocal, nas mesmas vozes ou palavras de que é composta, se devem considerar três respeitos ou três partes essenciais: o que se pede, a quem se pede, e por quem se pede; o que, a quem, e por quem. Esta mesma distinção observou a mulher do Evangelho. A sua oração foi panegírica e laudatória, e na voz que levantou: extollens vocem - tocou os mesmos três pontos e os mais altos a que podia chegar o mais levantado espírito. O que louvou foi o mistério altíssimo da Encarnação; a quem louvou foi a pessoa do mesmo Verbo encarnado; e por quem o louvou foi pela Mãe que o concebeu em suas entranhas e o criou a seus peitos: Beatus venter qui te portavit. Não pudéramos desejar nem melhor texto para dividir o nosso discurso, nem melhor guia para o seguir. A oração vocal do Rosário só se distingue desta do Evangelho pelo fim porque o fim, desta oração, como panegírica, foi louvar e a do Rosário, como deprecatória, é pedir. Aquela voz foi altíssima na consideração do que louvou, a quem louvou, e por quem louvou; e do mesmo modo é altíssima a voz do Rosário na consideração do que pede, a quem pede, e por quem pede. E estas serão as três partes do nosso discurso. Alta e altíssima a oração vocal do Rosário pela alteza das petições que nela fazemos: extollens vocem; alta e altíssima pela alteza da Majestade, a quem as presentamos: extollens vocem; e alta, finalmente, e altíssima pela alteza da intercessão de que nos valemos: extollens vocem. Ouçam agora com atenção os devotos do Rosário, e com inveja e arrependimento os que o não forem.
§ III
Primeira parte: É alta e altíssima a oração vocal do Rosário pela alteza da majestade a que presentamos nossas petições. A oração de Davi. A esfera da vista e a esfera da voz. Os céus, onde chegam os anjos com a vista, chegam os homens com a voz. Ana, mãe de Samuel, excelente figura dos que rezam o Rosário. Por que oramos a Deus enquanto está no céu? A oração do fariseu e a oração do publicano. A presença de Deus na terra e a Majestade de Deus no céu considerados na oração do Filho Pródigo.
Considerando, pois, em primeiro lugar, a alteza da majestade a que presentamos nossas petições, e começando - para maior clareza - por onde começa o Rosário, qual é a sua primeira voz? A primeira voz do Rosário é: Pater noster qui es in caelis (Mt 6, 9): Padre Nosso, que estás em os céus. - E voz que chega da terra ao céu, e ao céu onde está Deus, vede se é alta e altíssima: extollens vocem?
Nós não reparamos nesta que parece vulgaridade; mas o maior mestre de orar, que foi Davi, faz grande reparo nela: Voce mea ad Dominum clamavi, et exaudivit de monte sancto suo ( 3 ). Davi era grande contemplativo, mas nesta ocasião - que foi quando fugia de seu filho - orou vocalmente. Isso quer dizer voce mea, oração vocal. E o que muito pondera é que esta voz, saindo do vale do Cedrão, por onde caminhava, fosse ouvida no Monte Tabor da glória, onde Deus tem o trono de sua majestade: De caelo et sublimi throno gloriae suae (4) comenta S. Atanásio. O céu, onde Deus tem o trono de sua majestade, não é algum dos céus que vemos, senão outro céu sobre estes, quase infinitamente mais levantado e sublime; por isso não dizemos: qui es in caelo, senão: qui es in caelis. Da mesma frase usou Cristo, quando disse que os anjos que assistem na terra em nossa guarda sempre vêem a Deus que está, não no céu, senão nos céus: Semper vident faciem Patris, qui in caelis est (5). E, combinando um texto com outro, é prerrogativa verdadeiramente admirável que, onde chegam os anjos com a vista cheguem os homens com a voz. A esfera da voz é, sem comparação, mais limitada que a da vista. Mas isto se entende da voz com que falamos, e não da voz com que oramos. A voz com que falamos mal se estende a toda esta igreja; e a vista tem tanto maior e mais alta esfera que chega ao firmamento, onde vemos as estrelas. Porém, a voz com que oramos, não só chega ao firmamento, que vemos, que é o céu das estrelas, mas ao mesmo empíreo, que não vemos, que é o céu de Deus. O céu que vemos é o céu da terra; o céu onde está Deus é o céu do céu: Caelum caeli Domino (6). E isto é o que ponderava e admirava Davi na voz da sua oração: Voce mea ad Dominum clamavi, et exaudivit me de monte sancto suo.
Mas daqui mesmo se vê que a alteza desta voz ainda é mais maravilhosa nos que rezam o Rosário. Davi diz que clamou e bradou com a sua voz: Voce mea ad Dominum clamavi - e no Rosário não é necessário clamar, nem ainda soar. Ana, mãe de Samuel, foi uma excelente figura dos que rezam o Rosário. Dela diz o texto sagrado que, multiplicando as preces, somente se lhe viam mover os beiços, mas a voz de nenhum modo se ouvia: Cum multiplicaret preces coram Domino, tantum labia illius movebantur, et vox penitus non audiebatur (7). 0 mesmo passa cá pontualmente. Ana multiplicava as suas preces, e quem reza o Rosário também as multiplica, porque repete muitas vezes a mesma oração. A Ana só se lhe viam os movimentos da boca, porém a voz não se ouvia; e vós rezais o vosso Rosário com uma voz tão interior - e por isso mais devota - que nem os que estão muito perto vos ouvem, nem vós mesmos vos ouvis. E quando vós não ouvis a vossa mesma voz, é ela tão alta, e sobe tão alto: Extollen vocem - que chega ao céu dos céus, onde está Deus: Qui es in caelis.
Não faltará, porém, quem diga que esta circunstância de orarmos a Deus enquanto está no céu parece uma cerimônia supérflua, e não só não necessária, mas nem ainda conveniente. Comentando Santo Agostinho estas palavras, que em seu tempo ainda não eram do Rosário, mas eram as mesmas, diz assim: Non dicimus Pater noster, qui es ubique, cum et hoc verum sit, sed Pater noster, qui es in caelis ( 8 ). Deus, por sua imensidade, está em toda a parte, e não só conosco, senão em nós, em qualquer lugar onde estivermos. Logo não é necessário invocar a Deus enquanto está no céu, pois também o temos na terra quanto mais que invocá-lo no céu, parece que é afastarmos a Deus de nós, e orar de longe, quando fora mais conveniente e mais conforme ao afeto da devoção fazê-lo de perto. Não é mais conveniente falarmos com Deus onde ele está e nós estamos, que onde ele está e nós não? O mesmo Davi, tão grande mestre desta arte, pedia a Deus que a sua oração chegasse muito perto do seu divino acatamento: Appropinquet deprecatio mea in conspectu tuo (9). E o Rosário, antes de as Ave-Marias convertidas em rosas lhe darem este nome, chamava-se o Saltério da Virgem, porque o de Davi se compõe de cento e cinqüenta salmos, e o da Senhora de outro tanto número de saudações angélicas. Pois, se Davi, no seu Saltério, pede a Deus que a sua oração chegue muito perto dele: Appropinquet deprecatio mea in conspectu tuo - como nós, no Saltério da Virgem, nos pomos tão longe de Deus, ou a Deus tão longe de nós, quanto vai da terra ao céu: Qui es in caelis?
(BICO DE PENA: R. SAMUEL)

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

Estranho grande poema - Rogel Samuel

Estranho grande poema - Rogel Samuel
(MARIA BONITA, NA FOTO)

Escreveu Pedro Benjamín Palacios, conhecido como "Almafuerte", um estranho poema, próprio para o que vivemos nós:
"Não se dê por vencido, nem, se vencido, não se sinta escravo, nem, se escravo, não fique trêmulo de medo, imagine-se como um bravo, e ataque feroz, ainda que mal ferido, com a tenacidade do prego enferrujado que velho e gasto, mas volta a prego, sem a estupidez não covarde do pavão que amaina sua plumagem ao primeiro som, continuando como Deus que nunca chora, ou Lúcifer, que nunca lê, ou como o carvalho, cuja grandeza necessita de água, e não a implora ... que morda e se vingue rolando na poeira, sua cabeça!"


No te des por vencido, ni aún vencido,
no te sientas esclavo, ni aún esclavo;
trémulo de pavor, piénsate bravo,
y acomete feroz, ya mal herido.
Ten el tesón del clavo enmohecido
que ya viejo y ruin, vuelve a ser clavo,
no la cobarde estupidez del pavo
que amaina su plumaje al primer ruido.
Procede como Dios que nunca llora;
o como Lucifer, que nunca reza;
o como el robledal, cuya grandeza
necesita del agua y no la implora...
¡Que muerda y vocifere vengadora,
ya rodando en el polvo, tu cabeza!

domingo, 7 de outubro de 2018

O mundo da literatura esquecida

O mundo da literatura esquecida
Rogel Samuel*
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Acabo de ver que não há nada sobre Mavignier de Castro na web. Nem no meu antigo site aparece, onde eu o coloquei. Meu "Site do escritor" foi o primeiro a colocar na web autores amazonenses antigos, como Mavignier de Castro. Seu melhor livro - verdadeira obra-prima - é Amazônia panteísta, com capa de Moacir Andrade.
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Antonio Mavignier de Castro nasceu no Ceará, no dia 21 de novembro de 1895; fez curso primário em Belém. Com nove anos de idade, em companhia da tia, seguiu para a França até concluir o Curso de Bacharel em Ciências e Letras. Regressando ao Brasil, entrou para a redação do jornal “A Época”, em Manaus. Em 1916, foi nomeado chefe de revisão do Diário Oficial do Estado do Amazonas. Foi repórter do jornal “O Tempo” e no “Jornal do Comércio”, de Manaus. Como Promotor Público, atuou nas Comarcas de Eirunepé, Tefé e Manacapuru, deixando-as para ser nomeado Prefeito de Moura, no interior do Amazonas. Foi professor de Francês na Escola de Comércio “Solon de Lucena”. Escreveu Síntese Histórica e Sentimental da Evoluçao de Manaus e Amazônia Panteísta. Era membro da Academia Amazonense de Letras, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas e sócio-correspondente da Academia de Letras do Ceará.
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Ele era um escritor forte, à moda antiga, naquele estilo que chamo de art nouveau, como Euclides da Cunha, Eça, Rui Barbosa, Coelho Neto, os escritores impressionistas, imitadores dos franceses. Até mesmo Barthes escrevia assim. Eu os imitei no meu pobre O amante das amazonas.
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Transcrevo um capítulo de Amazônia panteísta:
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Orfeu das selvas amazônicas
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“Leucolepia arada modulatrix”... Na classificação dos milhares de pássaros existentes nas selvas, nos campos e nos montes de todos os continentes, talvez nenhuma especificativa se ajuste melhor que a do uirapuru amazônico. Até a terminologia tupi interpreta a vulgaridade que o torna conhecido - “uirú”, (boca) e “purú”, (ruidosa, cantora).
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É na quietude balsâmica das manhãs luminosas, antes do sol atingir o zênite, que, invariàvelmente, na copa de uma árvore altíssima da terra firme, um gorjeio harmonioso se faz ouvir em escala crescente de acordes enleantes, de sonidos puríssimos, tal um conjunto inefável de notas metálicas e cristalinas vibradas ao mesmo tempo, num misto aproximado de arpejo eólio e avena pastoril, cuja gama de sublimada consonância nenhum instrumento musical, por mais sonoroso, pode imitar.
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Então, como que atraídos pela suave melodia, ora evanescente, ora altissonante, centenas de pássaros revoam transpondo os recessos florestais. Suas asas não tatalam e nenhum pipilo lhes sai da garganta. Crer-se-ia que temendo profanar a serenidade panteística do momento, eles se aproximam silenciosos do minúsculo orfeu plumiliforme, e, pousados a seu redor, vão matizando os ramos com as suas plumagens azuis, citrinas, purpúreas, brancas e negras.
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Terminada a fantasia de cores esvoaçantes com a quietude embevecida dos alígeros ouvintes, o gorjeador faz pausa, voeja para empoleirar-se na ramagem de outra árvore, seguido triunfalmente pela profusão de penas deslumbrantes que lembram a policromia de um fogo de artifício caindo na penumbra do matagal silente.
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Na sucessão desses rápidos intervalos, é possível, de relance, vislumbrar a tonalidade barrosa do corpo do pequeno virtuose ornitológico. Quem jamais ouviu as modulações do mago passarinho, dificilmente acreditará no estranho fascínio que a sua harmonia exerce sobre os seres alados e, também, na extraordinária influência que ela desperta em nosso espírito.
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Excluída a prodigiosa propriedade do canto inimitável, pouco se sabe dos hábitos do “Leucolepia arada modulatrix”. Jamais um exemplar de qualquer idade resistiu ao cativeiro. Pacientes observações, entretanto, revelaram que ele é insetívoro, nunca se alimentando com gramíneas ou frutos silvestres. A plumagem do casal é uniforme, — cor de argila escura, mais carregada que a do vulgaríssimo “joão-de-barro”. Não possuem, ambos, os soberbos reflexos metálicos vistos nas asas dos rouxinóis do Rio Negro; não lhes ornam as cabeças penachos carmesins como os dos “galos-de-campina”, e suas gorjeiras não ostentam as cintas douradas que refulgem no peito dos “japiins”. Em compensação, quando eles nidificam, no período nupcial, a capacidade vocal se lhes desenvolve de modo tão imprevisto que a melodia patética do gorjeio adquire, dentro do místico recolhimento da natureza, surpreendente motivo de elevação hierática, somente comparável aos temas poéticos que nos levam aos paroxismos da emotividade, como quando ouvimos, sublimadas, a execução suave, espiritualística, das extasiantes músicas sacras.
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sábado, 6 de outubro de 2018

COMO CONHECI NEUZA MACHADO


COMO CONHECI NEUZA MACHADO

ROGEL SAMUEL

Estive relendo os blogs da Neuza e resolvi contar uma história de um passado já longínquo.
Entrei na Faculdade de Letras da UFRJ com a cara e a coragem por concurso.
Estava passando pela secretaria da Faculdade com uma amiga que me perguntou:
- Você não fazer o concurso?
- Quem sou eu, respondi.
Mas ela, tomando-me pelo braço, me fez entrar na sala da Secretaria e perguntou:
- Dona Clotilde, o que é preciso para ele inscrever-se no concurso de Teoria Literária?
A amável senhora foi lá dentro e voltou com uma lista gigantesca de documentos necessários.
- Ah, não, fui logo negando e preparando-me para sair (tenho horror à burocracia).
- Espere, disse a Secretária: Como o senhor estudou aqui, basta assinar aqui...
E apontou com o dedo uma linha, passando-me a caneta esferográfica.
Eu assinei.
E foi assim que um ano e meio depois tornei professor da casa e logo professor da Neuza no mesmo tempo.


Dante, biógrafo permanente da existência humana



Dante, biógrafo permanente da existência humana


Otto Maria Carpeaux | Jornal do Brasil, 1976

A divina comédia, por Dante Alighieri. Integralmente traduzido, anotado e comentado por Cristiano Martins. Editora USP–Editora Itatiaia, 1976, São Paulo–Belo Horizonte. 824 pp. Cr$ 150,00.

Atradução completa da Divina comédia por Cristiano Martins, o inesquecido poeta da Elegia de Abril, talvez seja o maior acontecimento literário do ano. Não se sabe o que é mais estupendo: o imenso trabalho do tradutor ou o empenho corajoso da editora. A língua portuguesa no Brasil não dispõe, infelizmente, de maior número de traduções assim que em outras áreas lingüísticas têm contribuído tanto para ampliar os horizontes literários: basta lembrar o Shakespeare alemão e a Bíblia inglesa. E Cristiano Martins escolheu a mais difícil tarefa de todas! O trabalho realizado pelo poeta mineiro é enorme: proíbe apreciação superficial, segundo primeiras impressões. Não poderia fazê-lo logo e agora. Só nos cabe agradecer. E acrescentar algumas palavras sobre o próprio Dante. Mas que dizer sobre Dante?

Galileu, na mocidade, exercitou sua imaginação de matemático, calculando os espaços fantásticos do Inferno. Assim, um físico de hoje poderia calcular a altura fantástica da montanha de livros e estudos que já se escreveram sobre a Divina comédia: o número resultante também seria astronômico. Acrescentar algo a essa infinidade seria inútil. Só peço licença para lembrar-me das minhas memórias pessoais de Dante, das leituras erradas dos primeiros anos e das leituras erráticas dos anos de atividade na vida e das leituras distraídas das horas de ócio, até que em boa hora se abrem ao leitor de Dante os olhos da compreensão, “nel mezzo del cammin di nostra vita”.

Meu primeiro Dante era uma edição para a mocidade, fartamente ilustrada por um artista medíocre e anônimo, mas — em compensação — cuidadosamente expurgada. Passaram-se, desde então, muitos, muitos anos, mas por um motivo especial, que vou logo revelar, consegui já então verificar os expurgos feitos. No episódio de Francesca da Rimini, no canto V do Inferno, os editores sacrificaram os “dubbiosi disiri” do verso 119 e o “placer si forte” do verso 104; e o verso 136 — “La bocca mi baciò tutto tremante” — caiu totalmente fora. Mas o expurgador também tremeu ao mutilar assim o poema; e para tranqüilizar sua consciência reuniu num apêndice, no fim do volume, os trechos suprimidos, para maior comodidade dos leitores juvenis. Se tivesse editado assim as obras de Shakespeare, teria saído um dos livros mais pornográficos do mundo, e isto “ad usum Delphini”. Mas Dante é casto. Tanto mais aquele ilustrador soltou as rédeas de sua imaginação sádica. Lembro-me como se fosse hoje de suas gravuras de mediocridade incrível: os diabos pareciam cozinheiros que com longas colheres remexiam os condenados em panelas ferventes; até os santos no Paraíso assustaram o leitor com barbas de tamanho sobrenatural. Quem me dera reaver agora esse livro feio, desaparecido junto com Robinson e Gulliver no naufrágio e esquecimento da infância!

Desaparecido aquele livro, surgiu outro Dante, o das edições para o uso no ensino secundário, inexpurgado e sem ilustrações. E neste exemplar um estudante que já tinha lido Flaubert e Zola, estava estupefato por reencontrar num poeta do século XIV o mais sugestivo realismo poético: o murmurar das águas frias do Adige e o “aere bruno” que antecipa as correspondances de Baudelaire, e a primeira metáfora de toda a literatura universal: tirada do trabalho industrial no arsenal dos venezianos. Dante foi realista; e o exercício de imaginação do jovem Galileu, calculando os espaços do Inferno, foi boa preparação para calcular a velocidade dos corpos na queda e a distância da lua. Não somente o Inferno de Dante é realidade. Também seu Paraíso é algo como uma science-fiction medieval, apenas mais perto da astronomia ptolemaica, então vigente, do que as fantasias da science-fiction de hoje que ignora soberanamente a astronomia.

Quem diz realismo, também diz humorismo. Nesse Dante, com sua ira contra as injustiças terrestres, havia algo do gran dispitto do seu Farinata e uma simpatia propriamente humorística para com os diabos aos quais inventou nomes tão pitorescos: Malacoda e Scarmiglione, Cagnazzo e Barbariccia, Graffiacane, Rubicante e Farfarello. Parecem os servidores, meio humorísticos e meio sinistros, do Castelo de Kafka, desse Castelo cujo dono tem alguma semelhança com o da città di Dite. Também poderiam ser os nomes de malandros num racconto romano de Moraria. Mas esse realismo de Dante, contemporâneo dos acontecimentos trágicos e sangrentos da Itália de então, só se me tornou vivo nas ruas de Florença.

Numa das paredes laterais da catedral de Florença existe um afresco, não é de alta qualidade artística e o pintor, Domenico di Michelino, não deixou nome imortal. Mas imortal é o tema do quadro: à direita, a Cidade de Florença, circunvalada de seus muros medievais dentro dos quais se reconhecem as silhuetas características da cúpula de Brunelleschi e do Palazzo Vecchio; à esquerda, embaixo, o abismo aberto do Inferno; no alto, as esferas do céu; e no meio, o altíssimo Poeta, com seu livro aberto na mão, olhando para sua cidade e apontando-lhe com a outra mão a porta do Inferno. É um admirável resumo pictórico da Comédia e de sua significação, e não sei por que os guias, em Florença, não mostram esse quadro, antes de tudo, ao turista desejoso de compreender algo da incomparável grandeza dessa cidade, em vez de persegui-lo por toda parte com seus alto-falantes idiotas, chamando very nicea Noite de Miguel Ângelo e invaluable os quadros do humilde Fra Angélico. Só o barulho infernal que fazem lembra o Inferno.

Muitas vezes me demorei na quase vazia catedral em que Savonarola tinha lançado, do púlpito, suas imprecações contra a lascívia do Decamerone e das artes venais, e, contemplando aquele quadro, eu acreditava ver o poeta abrir a boca e lançar a sua terrível maldição contra a volubilidade política da Florença do seu tempo, as Constituições violadas e derrubadas por bandos armados, as revoltas e os golpes, a moneta mutata, isto é, as inflações que tornaram ao povo insuportável a vida, as convulsões de doença da vida pública da cidade: as leis tão sutis que, feitas em outubro, já não servem em novembro.

“Del tempo che rimembre”, desde os tempos de que Dante se lembra, sua cidade foi como uma enferma que não conseguiu encontrar o repouso em sua cama: “Quella inferma / che non può trovar posa in su le piume / ma con dar volta suo dolore scherma”.

“… del tempo che rimembre!” O Trecento, a época de Dante, é uma remota recordação histórica, mas os versos de Dante sobre o seu tempo e contra o seu tempo são de uma perfeita e terrível atualidade. Quando eu os recordei no silêncio da catedral de Florença, já tinha recomeçado lá fora a luta fratricida, apenas os Guelfos e os Gibelinos do século XX ostentavam outros rótulos e tinham outras cores suas bandeiras. Foram os anos de 1930: violação de Constituições, os golpes, convulsões e, enfim, milhares e milhares foram atingidos pelo mesmo destino de Dante e de tantos outros italianos nobres: o exílio.

São recordações que, ao ler o poema de Dante, ainda hoje me comovem: pois também experimentei o exílio, e no meio do caminho da vida encontrei-me numa floresta escura da qual nenhuma saída parecia possível: “Nel mezzo del cammin di nostra vida / mi ritrovai per una selva oscura / chi la diritta via era smarrita”.

No Evangelho, Jesus aconselha seus discípulos a rezar “para que vossa fuga não aconteça no inverno”. Pois bem, a minha fuga aconteceu no inverno, e tão impiedosa foi a perseguição que nem sequer consegui levar comigo o meu Dante, o volume tão usado que já estava em pedaços a encadernação barata. Mas já não precisava do livro pra recordar certos versos gravados para sempre na memória; como este que tantas vezes, durante a vida toda, me fortaleceu contra o tédio das controvérsias e contra a maledicência dos covardes e contra elogios e hostilidades efêmeras: “Non ragioniam di lor, ma guarda e passa”. E entre esses versos sempre recordados também me lembrei daqueles que descrevem a sorte do exilado, o sabor amargo do pão no estrangeiro e a dura vergonha de bater, em vão, a portas fechadas e descer as escadas, subidas com o último resto de esperança, assim como a Dante foi profetizado o caminho do calvário de fuoruscito: “Tu proverai sì come sa di sale / lo pane altrui, e come è duro calle / lo scendere e l’salir per l’altrui scale”.

São águas passadas. Achei a minha Verona, a nova pátria, no Brasil. Não era possível, então, imaginar que um dia eu iria ler em português do Brasil aqueles versos: “E quindi uscimmo a riveder le stelle”. São motivos pessoais que me levam a agradecer a Cristiano Martins o livro que ele nos dá agora. Mas esses motivos não são meramente pessoais. Tenho para mim que sem experiências daquelas ficaria incompleta a experiência de Dante. Só passando pelas malebolge, as ruas sinistras deste mundo, sem perder a vista para as stelle, se tem o Dante inteiro: o Inferno, o Purgatório e o Paraíso. Só então se compreende o sentido pleno da Divina comédia, autobiografia espiritual do poeta e biografia permanente da existência humana que é preciso decifrar atrás dos “versos estranhos”: “O voi ch’avete l’intelletti sani, / mirate la dottrina che s’asconde / sotto ’l velame de li versi strani”.

Otto Maria Carpeaux, ‘Dante, biógrafo permanente da existência humana’, Livro, suplemento do Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 3 out. 1976, p. 7. — Reescrito e editado como ‘Meu Dante’, em Reflexo e realidade (Rio de Janeiro, Fontana, 1978), p. 37ss.