domingo, 31 de março de 2019

Receita de soneto

Receita de soneto

Receita de soneto


Rogel Samuel

Em "Para fazer um soneto" descreve Carlos Pena Filho como se deve escrever um poema.
Mas a receita é difícil de seguir.
Pois o primeiro passo diz: "Tome um pouco de azul, se a tarde é clara". Sorver o azul da tarde, tarefa complicada de realizar à risca. Mas é aí que aparece a "palavra inicial" (dada por Deus). Depois, segure bem esta palavra (divina) com uma "atitude avara", ou seja: a partir daí passe a usar apenas o sol que bate na sua cara! Claro, o poeta é de Recife, terra do sol.
Com esta palavra primeira, com o sol e com um pedaço do quintal o poema se constrói.
Mas se não der certo, há uma solução de emergência.
Em vez da luz clara e azul, passe a trabalhar com o tom cinzento e meio obscuro e vago, com o pó que ainda resta em nossas vidas, com os resíduos da memória, a combustão, a borralha de certas substâncias da nossa memória.
Ali está o aniquilamento da nossa infância, o luto da lembrança, a destruição, a humilhação, a dor cinza dessa coisa vaga que são as lembranças da infância.
Não, não se apresse. O curso do rio da voz vai levá-lo ao cerne do poema, àquela escuridão onde se tece a certeza.
Aí sim. Aí o poema começa. Eis:

“Tome um pouco de azul, se a tarde é clara
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.”

sábado, 23 de março de 2019

GABRIELA MISTRAL - O PENSADOR

GABRIELA MISTRAL - O PENSADOR
Rogel samuel
Pois ali, enquanto repete ela, e quatro vezes repete, a voz da
«carne», - «carne sem defesa», carne da cova», «carne que odeia
a morte e tremeu de beleza», «carne sulcada», aquela substância
se opõe ao noturno bronze, à morta matéria, que por duas vezes
no poema tremeu de prazer, de orgasmo, beleza, amor, vida,
daquele homem nu, implantado sobre seu soneto, traduzido por
Manuel Bandeira, sentado no alto daquele pedestal de pedra
sulcada, repassada de seus horrores, seus terrores, seus músculos
sofredores, seus humanos sentimentos - culminando com aquela
figura de bronze de Rodin dos versos de Gabriela Mistral - feita
da ferro e angústia das eróticas fesceninas massas de músculos
contorcidos, o torso se contorce, o nervo falo coberto, a fala cala,
o pensamento pende, e indefeso se exibe, se internaliza, se
outoniza, no bronze se consome, se mata, se traspassa, de verdade,
de rudeza, de certeza e tristeza:
"Apoiando na mão rugosa o queixo fino,
O Pensador reflete que é carne sem defesa:
Carne da cova, nua em face do destino,
Carne que odeia a morte e tremeu de beleza.
E tremeu de amor toda a primavera ardente,
E hoje, no outono, afoga-se em verdade e tristeza.
O "havemos de morrer" passa-lhe pela mente
Quando no bronze cai a noturna escureza.
E na angústia seus músculos se fendem sofredores.
Sua carne sulcada enche-se de terrores,
Fende-se, como a folha de outono, ao Senhor forte
Que o reclama nos bronzes. Não há árvore torcida
Pelo sol na planície, nem leão de anca ferida,
Crispados como este homem que medita na morte."
É estátua mas, Gabriela Mistral insiste, de homem, de gente,
de «carne», que o reclama no vivo bronze.
É imagem triste, ou antes, entristecida, entretecida,
mergulhada na sua tristeza intestina.
É escultura masculina, ou seja, de homem escultural, mas já
envelhecido por vistos femininos olhos de mulher, que o «vêem»
como o que se passa em sua mente que mente, ou melhor, se
exteriora, só para ela, se encarna: másculos músculos se fendem
em folhas de outono, mãos crispadas rugosas de árvore torcida
«em face do destino», anca de leão eriçado e ferido.
Gabriela Mistral o transforma no Amado sem defesa,
submetido ao Amor da Primavera ardente, ao Senhor forte, - ela
o ama porque o vê tão triste, e o sabe indefeso e afogado na
verdade de sua lembrança dele da Amada vaga, quem sabe
tristeza apensada destino imóvel fixidez vocabular forma fixa do
soneto, na casa do soneto onde vive, na casaca da forma e fôrma
em que criado foi, cristalizado, anelizado.
Ele o Amado que encontra em transe e em museu, já morto
sarcófago, múmia, mas vivíssimo, que não é um poema, mas
interpretação fenomenológica a dela, encontro estético, e todo
encontro de amar deve ser, e preso ao orgasmo torneado noturno
e escuro daquele ser fixo e submisso à forja morta em fogo
formado na tensão explosiva de estertor e prestes a se levantar em
fúria e ira, a se erguer da sua meditação mortal em revolta,
revolução do condenado à materialidade que ejacula na
conquistar, abraçar o ente, o vivente, petrificado, congelado,
existente, apossado porém ainda logo a se contorcer na libertação
do seu invólucro de ser de imóvel estatuária fixa fria frígida
tumular e plana.
Pois tudo aquilo está aberto ali, em perigoso mistério que
treme, freme, geme, o másculo músculo se fixando e torce, o pênis
que vibra, a pele se dilata e estica, e a respiração embora contida
se pode pressentir naquele varão muito vivo e muito tido, muito
mais intensamente vivo e ativo do que se pode esperar de um ser
feito de bronze, na intensa materialidade de arame árvore
retorcida e barroca, massa que guarda da carne a articulação e o
sentir, pulsação em puro sangue humano e no tormentoso
esplendor do amor, da dor, do prazer, do desejo do seu prazer ali
contido, comprimido, explosivo.
O Pensador reclama ter de morrer em metal, reclama do
seu, da nudez de seu destino de congelado gozo, de se expor assim
nu para todos e não só para ela, e Gabriela Mistral o captou em
sua completa e elétrica e interna e febril concretude de cimento
armado pelo pulsar do músculo macho que quente sêmen freme
escondido, enquanto medita no pleno acontecimento da sua
obscura e incompleta morte.

terça-feira, 19 de março de 2019

O IMPÉRIO AMAZÔNICO




Manaus rica, copia Paris. Comerciantes enriquecem. Ostenta o Teatro Amazonas os seus espelhos de cristal. Os milionários jogam cartas com anelados dedos pesados de diamantes, arriscando fortunas no Hotel Cassina, no Alcazar, no Éden, no Cassino Julieta. Telhas de Marselha ao luar na Rua dos Remédios, na Rua da Glória. Arquitetura art-nouveau do palácio de Ernest Scholtz - depois Palácio Rio Negro, sede do Governo. Arandelas, bandeiras, implúvio. Intercolúnio. O cunhal, o lambrequim, a voluta, o capitel, a cornija. Arquitrave. Barrete de clérigo, adufa, muxarabi, água-furtada, muiraquitã, envasadura, atleta, estípite. O enxalso, o frontão de canela. Galilé. Pequena Manaus, grande Paris!. Lojas, magazines, charutarias, livrarias, alfaiatarias, ourivesarias. Bissoc. Pâtisserie. Du sucre, des fruits, de la crème. A la ville de Paris, Au bon marché, Quartier du temple, Damas do Gabinete Villeroy, Casa Louvre, Livraria Palais Royal (na rua Municipal, n0 85, as novidades literárias), Livraria Universal, Agência Freitas, Casa Sorbonne (dentro do Grande Hotel), a Confeitaria Bijou, a Padaria Progresso. Faroletes de pedra de morona e de puraquequara. A bela Villa Fany, luxuosíssima. O Cais dos Barés, a Biblioteca Provincial (que incendiou fraudulentamente, para destruir os Arquivos Públicos, nos fundos). O prédio dos Educandos Artífices que deu nome ao bairro. Amazon Steamship Navigation Co. Um prédio importado, peça por peça, da Inglaterra: a Alfândega, montada aqui. Outro, projeto do próprio Gustavo Eiffel, de ferro: o Mercado Municipal. Um Serviço Telefônico serve a cidade. A eletricidade ilumina as ruas de Manaus no início do Século, talvez das primeiras cidades brasileiras a ter este serviço. Calçadas da Praça São Sebastião, em pedras portuguesas pretas e brancas, em ondas que alegorizavam o “encontro das águas” do Negro e Solimões (posteriormente imitadas na praia de Copacabana). Bondes elétricos da Manaus-traways. Bebe-se Veuve Clicquot, truffes, champignon. Huntley & Palmers, Cross & Blackwell. A Cork, a Pilsen, o Bordeaux, o fiambre, o Queijo da Serra da Estrella. Lagostas, a Goiabada Christalizada. Charteuse, Anizette. Champagne Duc de Reims. O Vermouth. Água de Vichy. Leite dos Alpes Suíços. Casacas inglesas, o H. J., o pongê, o filó. Bengalas de castão de ouro. Cartolas, luvas, perfumes franceses, lenços de seda. Pistolas de prata e cabo de marfim. Gramophones de Victor. Discos duplos de Caruso. Casas aviadoras. O Amazonas participa da Exposição Comercial de St. Louis, no Missouri, e posteriormente da Exposição Universal de Bruxelas, onde ganha 32 medalhas de ouro, 39 de prata, 70 de bronze, 6 Diplomas de Honra e os 13 Grandes Prêmios. Manaus-Harbour. Tabuleiro de Xadrez. Óperas, óperas, óperas. Diariamente. Prostitutas importadas. A Cervejaria Miranda Correia.
A Praça da Saudade. O Roadway, o Trapiche. Sífilis. Malária. Vidros de Quinino Labarraque. Óleo de Fígado de Bacalhau. Vinho Silva Araújo. Regulador da Madre. Pílulas Rosadas. Café Beirão. Winchesters cabo encerado de mogno. Asilo de Mendicidade (construído pelo Comendador). Ponte da Imperatriz, Igarapé da Cachoeira Grande. A Serraria, no Igarapé do Espírito Santo. Banhos de do, no Igarapé das Sete Cacimbas. Buritizal. Jogos, no Parque Amazonense. Ida a Barcelos. Noite no Jirau. Muro do Leprosário do Aleixo. No recanto - o Chalé. Vista da Bomba d’Água. Viagens. Linhas. Manaus-Belém, Manaus-Santa Isabel, Manaus-Iquitos, Manaus-Marari, Manaus-Santo Antônio do Madeira, Manaus-Belém-­Baião. Gonçalves Dias no Hotel Cassina. Coelho Neto no palacete da rua Epaminondas. Euclides da Cunha no chalé da Villa Municipal. O Amazonas Comercial, O Imparcial, O Rio Negro, Jornal do Comércio. 126 navios trafegam no interior do Amazonas. Vaticanos, gaiolas e chatas. Inaugura-se, às custas de 3,3 milhões de dólares, o Teatro Amazonas, em 1896 - a mais cara e inútil obra faraônica da História do Brasil, milionária e importada, com painéis, centenas de lustres de cristal venezianos, colunas de mármore de várias cores, estátuas de bronze assinadas por grandes mestres, espelhos de cristal visotados, jarrões de porcelana da altura de um homem, tapetes persas - tudo o que, aliás, em 1912 desapareceu, esvaziando-se o Teatro para transformá-lo num depósito de borracha de uma firma americana. Ali o erário público foi enterrado em 10 mil contos de réis: o Teatro Amazonas custou o preço de 5 mil casas luxuosas. O dólar a 3 mil réis. Por 900 contos de réis se constrói o Palácio da Justiça. E por 1 mil e seiscentos contos de réis se constrói o Palácio do Governo; nunca concluído. O Teatro custou 10 mil vidas. Sim: Em 1919 no Amazonas já tinham chegado 150 mil emigrantes. A borracha naqueles anos foi tão importante quanto o café. O Amazonas exportou 200 mil contos de réis em borracha, contra 300 mil contos do café paulista na mesma época. Em 1908 é fundada a mais antiga universidade do Brasil, em Manaus, com cursos de Direito (o único que sobreviveu), Engenharia, Obstetrícia, Odontologia, Farmácia, Agronomia, Ciências e Letras. Nessa época 12 milhões de francos franceses sumiram, roubados no Governo de Constantino Nery. Encampa-se, fraudulenta e inutilmente, a Manaos Improvements, por 10.500 contos de réis - o preço do Teatro Amazonas. A história do Amazonas é um acúmulo de loucuras corruptas.