quinta-feira, 24 de novembro de 2022
RATOS
RATOS.
CHEGAMOS ao ponto deste caminho em que digo que, certa vez, eu me lembro bem que vi primeiro um risco preto entre as tábuas do chão. Era algo que passava como uma linha reta móvel preta. Um traço cinematográfico, contínuo. Depois se pareceu com minúscula cobra reta que se infiltrava entre as frestas da construção carcomida, algo que percorria o tempo, que atravessava o mundo, fluindo como se deslizasse para furar e vazar a terra. Aí então chegou a aparecer como um corpo maior, um corpo duro - um cabo, um rabo. Sim, aquilo era um rabo de rato.
TALVEZ que uma ratazana saísse dali diante de mim, de sua ratada. Talvez. Ratânia-do-Pará. Talvez um ratão, um rato enorme, como ratão-d’água, ratão do banhado, roendo, moendo sob a terra, corroendo a casca, mascando e carcomendo a crosta, consumindo, devorando por baixo de numa mastigação constante. Ou mais. Ou o dorso preto, ou cinza escuro, de quase 15 centímetros de rabo, couro, rabo-de-couro e arganaz, murídeo - e atrás vinham outros, catitas, ratinhos, e mais um rato preto, de pilosidade eriçada, um camundongo quase gordo, coró, toró, curuá, sauiá, e mais. E mais. E eram muito mais ratos vindo chegando entrando no barracão, imburucus, gabirus, dezenas, centenas, milhares - o Manixi estava sendo consumido por ratos, e não só de noite como a qualquer hora do mesmo dia.
Revelo que isso se passou naqueles anos, depois, em 1925. Quando presenciei o processo de decadência e morte do Manixi. Para tudo descrever do que então vi direi que os ratos, atrevidos, vorazes, famintos, se multiplicavam, agressivos. Todo o empenho de João Beleza, que administrava o espólio, toda a sua luta contra os ratos de nada adiantava, os ratos não desapareciam e aumentavam, dia a dia, não havia como salvar nada, nem quando conseguiu gatos, os gatos nada puderam fazer, acabaram mortos, os cadáveres dos gatos saqueados e comidos por ratos famintos, ávidos, múltiplos, como se fosse o Juízo Final.
Dominado pelo furor, João Beleza arranjou uma jibóia para espantá-los, aos ratos, e salvar o barracão, mas a cobra sumiu e aí apareceu o regatão Saraiva Marques, homem que valia por muitos, e que recomendou e vendeu para João Beleza um veneno de rato a base de verde-da-Prússia. João Beleza passou a assim proceder, alimentando os ratos, todas as noites, servindo-lhes comida num tacho. Os ratos comiam um purê de mandioca, durante dias, cada vez mais, cada vez mais, até que se empanturraram que no último dia comeram purê envenenado.
JÚLIA ria-se. Júlia a princípio anunciou. Depois sorriu, e logo já gargalhava, alto, nervosamente, ih ih ih em delírio, e os ratos iam morrendo na sua frente, e ela os via com interesse amistoso morrerem, um a um, e os via com afeto, Júlia tratava-os, embevecida e louca, via morrerem à luz do dia, tocava-os, ninhada aqui e ali, à beira do Igarapé punha-se às gargalhadas - os ratos parecendo decorar tudo com o colar de ratos mortos na linha d’água, e eram dezenas e centenas e milhares de ratos mortos, e Júlia ria-se com aqueles seres moribundos, e pegava-os e falava delicada, pelo rabo, exibia-os e envolvia-os e rindo os lançava nas águas condenadas do Igarapé do Inferno.
Depois houve uma estranha paz no Seringal Manixi.
A PATRIA IMAGINÁRIA
A pátria real e a pátria imaginária
Rogel Samuel
Por: Rogel Samuel
Em: 09/06/2008, às 01H59
“Não sejas um escritor, mas um profeta”, diz o verso de Antonio Quadros (1923-1993), o poeta português. Certamente assim os poetas eram conhecidos, na Grécia antiga. Que é um profeta? Profeta é o indivíduo que prevê o futuro, o que diz o que vai acontecer. “Não digas o que sabes nos teus versos, / Deixa para trás a ciência e a consciência; / Tudo aquilo que em ti não for ausência / São ideais perdidos, ou submersos.” É o poema. Não dizer o que sabe significa não repetir o passado, mas proferir o futuro, inaugurá-lo, fundá-lo. Falar do ausente, construir a presença daquilo que ainda não existe ou do que não está lá. O poema assim se chama “Poética contraditória”:
Não digas o que sabes nos teus versos,
Deixa para trás a ciência e a consciência;
Tudo aquilo que em ti não for ausência
São ideais perdidos, ou submersos.
Abandona-te às vozes que não ouves,
E liberta os teus deuses nos teus dedos;
Não busques os sorrisos, mas os medos,
E o que não for ignoto e só, não louves.
Ser misterioso e triste, é ser poeta:
Mesmo a luz que palpita nos teus cantos.
É uma imagem heróica dos teus prantos.
Percorre o teu caminho até ao fundo,
E com os versos que achaste, aumenta o mundo.
Não sejas um escritor, mas um profeta.
É um poema do livro de António Quadros “Viagem desconhecida”, de 1952. Nesta região desconhecida do porvir o poema se lança, ouvindo as vozes, liberando os seus deuses, os seus medos, o seu mistério, o seu pranto. É um mergulho no caminho do herói, ou seja, do profeta. Do que profere. O que diz o que não sabe, o que ouve o que não foi dito, o que vê o que não está na frente de seus olhos. Ou seja, entra nos portal heróico e perigoso do mito.
“António Quadros (1923-1993) defende que a nação portuguesa na sua essência (...) é dotada de um eschaton, de uma razão teológica, que consiste num diálogo ou numa dialética entre o humano e o divino: «Talvez nenhuma história humana, como a portuguesa, em seu esplendor, em seu claro-escuro e em seu negrume, seja tão dramaticamente exemplar desta dialéctica.» (...), escreveu Antonio Quadros Ferro (que deve ser seu filho). Ele chama isso de dialética entre Pátria Real e Pátria Imaginária.
“As caravelas já não partem deslumbradas a desvelar o Cabo. Não. O tempo é outro. Mas os pescadores portugueses continuam na praia a fixar com olhos estáticos o mar infindável e a viver e a lutar e a sofrer e a morrer o destino do mar.
E na imaginação das crianças e dos adolescentes, no inconsciente dos adultos frustrados numa fixação à terra que lhes parece injusta e odiosa, a ideia da aventura, da viagem, do descobrimento palpita como uma promessa e como uma fascinação" escreveu António Quadros.
Confira em:
http://antonioquadros.blogspot.com/
quinta-feira, 10 de novembro de 2022
PRIMAVERA
A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.
CASIMIRO DE ABREU
sexta-feira, 4 de novembro de 2022
O AMANTE DAS AMAZONAS
NUM movimento brusco, aquele guerreiro Numa voltou-se com as mãos crispadas e gritou som próprio dos felídeos, e ouviu-se pela floresta o rufar rumoroso no chão árido e uma comoção de olhos sangüíneos sob cabelos e tremor bélico da pele. Todo o seu poder cresceu e parecia precipitar-se com o fogo que ele despejara e se alastrava na paxiúba da maloca. Sua arma de longa sombra propagou-se no ar e abriu o crânio de um jovem Caxinauá que apareceu ao lado, precipitando-o ao fundo do solo - de uma órbita o globo ocular saiu, cuspido ao chão, como um ovo cozido rolando, uma bola, na poeira do chão. Arremessou uma pesada pedra sobre o inimigo que pula como tigre ferido e acossado, e com a carne rasgada ele grita, voz de trovão castigado. Sua face crispada de ódio, seus ombros afastados, ergue o braço com a pesada arma e avança para matar como um guindaste, erguido, o casco de enorme navio retirado do fundo das águas, as águas escorrendo como baba de um muco escuro e podre. Outros gritam e correm. O incêndio se desenvolvia largo, alto, e rasga e vence o ar da noite com suas asas de fogo, borboletas abertas. Grande e inexplicável medo se abate e se apodera sobre os Caxinauás assustados por algum Deus, e sobre todos a morte ia descendo e se espargindo com funesta noite de cólera paralisante, ausente toda força e toda coragem, neutralizados. Oh!, ela estava completamente queimada, envolta em chamas, nua, mas não sentia dor ou medo. Desapareceu na direção da sombra, esperando lá com as mãos vazias o adversário que persegue. Sim, ele vinha. E vinha com disposição de matar, com a escuridão. Procurou no agoureiro leito do Igarapé do Inferno uma pedra, mas só esbarrou com cadáveres esfacelados dos irmãos Caxinauás que o vulto do escuro sangue sepultava. O Numa tinha vindo buscar e procurava na água. Ela tinha dificuldade de limpar o sangue empastado nos seus olhos, isto que a oferecia ao inimigo próximo e audível, à sua procura, com a arma na mão. A hora era dele, do inimigo. O sangue queimava os olhos e ela estava desarmada. Silêncio. O inimigo escuta e espera a efetiva reação, mas não sabe onde estava, não a sente, e avança no escuro. Foi então que houve a intercepção de um guerreiro Caxinauá que se precipitou fugindo covardemente e foi atacado. Foi a hora de sair dali pois os dois se abraçaram para se matar e o Inferno os tragou. Ela estava mais distante do que pensava? Trezentos irmãos de raça exterminados. O incêndio iluminava a floresta e era visto do Palácio. Ela não estava preparada para o sacrifício? Frei Lothar, que apareceu de repente, a recebeu. Nunca mais olhou seu rosto num espelho. Zeca Batelão, não a quis mais, como mulher.
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