sábado, 29 de outubro de 2016

foi numa noite de agosto

foi numa noite de agosto


foi numa noite de agosto
que apareceu a tal lua
os lábios naquela água
o corpo dado aos amantes
amantes não sabem nada
que há tempos não se via
a gargalhada menina
da lua de rica rima
poetas que não se fiem
poetas nada sabem
que é até mesmo uma pena
que esta caneta tão prima
não seja feita mais fina
como ponta de punhal

(rogel samuel)

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Drummond entrou pela porta dos fundos!

Drummond entrou pela porta dos fundos!

Rogel Samuel


Lembro-me de Drummond. Um dia, quando éramos aluno da FNFi, e como estudássemos sua obra, conseguimos que Drummond aceitasse a vir, na nossa sala, para conversar. Ele exigiu que ninguém soubesse, e que pudesse entrar pela porta dos fundos!
Incrível: um dos maiores poetas entrou pela porta dos fundos da nossa faculdade de letras. Mas Drummond não grande coisa. Parecia um funcionário público (que era), conversando. Trazia um guarda-chuva preto e vestia um terno cinzento. Sério, magro, seco, quase mal humorado. Disse, por exemplo, que perdia belas imagens e versos que lhe ocorriam no caminho de casa para o trabalho. Parece que ele andava de ônibus, de Copacabana para o Centro, no Rio. Quando eu lhe perguntei por que ele não tinha consigo um caderninho de notas, ele respondeu que "não fica bem alguém ficar escrevendo". Lembro-me de que nossa professora, D. Cleonice Berardinelli, que ia passando no corredor, o viu e, espantada, logo entrou na sala. Drummond, o gênio da nossa poesia, discorria singelamente, prosaicamente sobre sua obra. Nenhum brilho, nada de demonstrações de grandeza. Disse: "não sei por que fazem tanto barulho pela minha poesia, eu não vejo nada de especial nela" (as palavras eram mais ou menos assim). Disse horrores sobre o verso "no meio do caminho tinha uma pedra". E no fim, quando se despediu, eu lhe pedi um autógrafo. Ele logo se irritou comigo ao ver, na folha de rosto do seu livro, após o seu nome, que eu tinha escrito, a mão: (1920 - ..... ). "Esse aqui já está esperando a minha morte!", disse.
A última vez que o vi, foi em Copacabana. Eu bebia um cafezinho num botequim do Posto Seis que existe até hoje, quando ele passou. A cabeça pensativa, meio cabisbaixo. Eu fiquei extático, boquiaberto, imóvel, reverente, e mentalmente me curvava à Grande Poesia que passava.

domingo, 23 de outubro de 2016

A ESTRANHA CIDADE DE MANAUS



A ESTRANHA CIDADE DE MANAUS


Texto antigo de Rogel Samuel

        Manaus é uma cidade estranha. Por tudo. Ali uma estátua da Justiça tem nas mãos uma balança que pende mais para um lado do para que o outro. Aparece em cima do imponente prédio do Tribunal da Justiça, construído por Eduardo Ribeiro, o construtor da cidade. Aquele que fez o Teatro Amazonas. Quando naquela cidade – dizem – se acendiam os charutos com dinheiro.
        Estive recentemente lá.
E assisto, debaixo de uma chuva miúda, ao escritor Marcio Sousa subir a rua Saldanha Marinho, no dia das mães. Agora mora lá, no centro da cidade. Ele, famoso escritor, voltou.
Quando estive em Portland, acompanhado do pianista Christopher Schindler, e de sua mulher, a artista plástica Chrystal Zachary, fui à melhor livraria da cidade.
O único escritor brasileiro que ali encontrei foi Márcio Sousa.
        Sim, Manaus é uma cidade estranha.
Já foi mais bela, menos quente.
Segundo se diz, um prefeito de Manaus, hoje nome de bairro, mandou cortar milhares de árvores que embelezavam as ruas e nos davam sombras.
Eram mangueiras asiáticas, fícus indianos. Desapareceram. Segundo ele, sujavam a cidade. Estavam infestadas de insetos, «lacerdinhas».
        Por isso, quando, ao sair para caminhar na raiz daquelas ruas, eu canto de Luiz Bacellar a Balada da rua da Conceição (hoje rua Isabel) no devaneio do percorrer as instabilidades pós-industriais, reinventando a cidade dos meus dias de infância na grande Dúvida,

                        (Mas será mesmo que existe
                        essa rua na cidade?
                        ou é rua da Conceição
                        no velho Cais da Saudade?)

Aquelas são ruas de uma metafísica urbana transfigurante,  reflexos das garrafas estilhaçadas, das letras enferrujadas, que etiquetavam o nome, o sobrenome dos ricos, dos becos, dialeticamente traçados no alargamento de uma cidade em interna ruína (mas inteiro espetáculo), nos axiomas da decadência da economia da borracha no Amazonas.
A cidade guardou no interno intestino o esplendor dos velhos e áureos momentos que Bacellar nunca cantou ("nunca escrevi um poema sobre o Teatro Amazonas", - disse-me ele). 
Mas, nas árvores, cansadas, as epifanias, as trilhas, as colhidas, os duendes, os enforcados, os relatos, os obstáculos, o saber, as caras, o antes, as obsessões citadinas, a onisciência, os pássaros e papagaios de papel, a Neca, a verdade certeira, a prudência, a vigilâncias, o risco, o dragão, a vida cartesiana: fatos acumulados em "lírios" e "peitinhos", "rosa menina", que levam a marca de saias levantadas da imensa tradição de uma sociedade fossilizada no Século Dezenove.
Lá estão todos os meus fantasmas infantis.
A razão humana abandona para sempre aqueles versos de finados, de fraque, de orações  pressurosas, de sepulturas e beatas cobertas, "de cera e de fogo", em que se constitui o livro de Luiz Bacellar.
Podemos dizer que, fora de suas páginas, a cidade de Manaus nem mesmo existe.
Como na «Balada das 13 casas, são 13 casas unidas,  nascidas  no mesmo lance de rua,  com as mesmas paredes-meias,  os mesmos oitões de taipa,  a mesma fachada nua  e as mesmas janelas tristes  de 13 casas na rua.  «Unidas? Bem... desunidas  nos problemas dos que habitam  suas paredes estanques;  mas juntas, pelo beiral, pelos caibros de itaúba,  pelas telhas de canal  de 13 casas na rua.  «E as famílias que moravam  (ainda algumas demoram)  nos tempos do berimbau?  Das 13 só restam 11:  2 foram demolidas  pra dar lugar a um convento  de padres redentoristas  que, não contentes com isso,  de Tocos para Aparecida  mudaram o nome do bairro  das 13 casas da rua.  «Numa delas eu vivi,  numa outra me criei,  e talvez venha a morrer;  quanto às outras, pelos donos  foram sendo reformadas,  gente próspera e "elegante"  como atestam as fachadas  das 13 casas da rua.  «Apenas esta onde moro  
de casa velha coroca  conservou a identidade  ainda usa arandelas,  calhas, tabiques, escápulas,  com manias e pirraças  de quem "viveu" outra idade  das 13 casas da rua. 


NOTURNO DO BAIRRO DOS TOCOS

Há tanta angústia antiga em cada prédio!
Em cada pedra nua e gasta. E agora
em necessário pranto que demora
o amargo verso vem como remédio
pelos sonhos frustrados em cada hora
da ingaia infância. Madurando o tédio
nos becos turvos, porque exige e pede-o
inquieta solidão que assiste e mora
em cada tronco e raiz, calçada e muro:
Chora-Vintém, O-Pau-Não-Cessa* . Impuro
se derrama um palor de lua morta
nas crinas tristes, no anguloso flanco:
memória e angústia fundem-se num branco
cavalo manco numa rua torta.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

NUMAS

NEUZA MACHADO: O FOGO DA LABAREDA DA SERPENTE



“Não ficavam visíveis, às claras”. Como posso detectar o sentido oculto dos invisíveis e indomáveis Numas desta narrativa? Que são os Numas? Seriam eles, verdadeiramente e geograficamente, por via de acomodamento fonético-vocabular, os inconfundíveis Iauanauas (ou Yamináua ou Jaminaua ou Jamináwa) do Rio Gregório, detectados etnograficamente? Ou seriam o subgrupo isolado também chamados de Iauanauas, da cabeceira do Rio Acre, mas tribo diferente da população do Rio Gregório? Segundo dados governamentais, existe também um grupo indígena, peruano e boliviano, chamado Iauana, não reconhecido pelos governos de lá, mas incluído na relação de índios brasileiros do subconjunto Pano setentrional, isolado, dos Rios Jandiatuba e Jataí. No âmbito das suposições teórico-interpretativas, os Numas mítico-ficcionais poderiam provir dessas tribos isoladas, as quais viviam, e ainda vivem em menor número, em jurisdições estabelecidas na região interregno do Estado do Acre com o Departamento Ucayali, no Peru.
Entretanto, de acordo com esta narrativa histórico-mítico-ficcional, especialmente, os Numas “não ficavam visíveis, às claras”. Seriam eles os míticos Numes de passados relatos simbólicos, aquelas aéreas divindades mitológicas que se elevavam no ar por meio de influição divinizadora? Seriam eles os antigos gênios alados, só perceptíveis por meio de espiritualíssima intuição? Ou foram germinados e multiplicados, simbolicamente e criativamente, a partir da deusa suméria Inanna, protetora da guerra e do prazer sexual, associada ao vento, enquanto divindade mítica? Se por vezes penso nas genealogias dos diversos arcabouços míticos-religiosos da humanidade, percebo sempre uma espécie de confluência aproximando os relatos.
“Não ficavam visíveis”: repenso a informação reflexivamente, porque esta fase do romance se desenvolverá por intermédio do patrocínio de reminiscências caprichosas do imaginário mítico-familiar, todas interligadas aos diversos narrares tradicionais da realidade mítico-indígena-e-social brasileira. Tais narrativas, indiscutivelmente poderosas, heroicamente/simbolicamente personificadas por criaturas aladas extraordinárias, foram, são e sempre serão representativas das potências da natureza e das incríveis incomuns qualidades do ser humano. Em outras palavras, os Numas ascendem, ficcionalmente e miticamente, por intermédio do poderoso tronco familiar, primitivo e ímpar, do índio amazonense, oriundo das altas e inóspitas regiões andinas. O mencionado tronco, certamente, no meio dos infindáveis inter-relacionamentos sócio-culturais, foi realçado como fundamento sanguíneo intercambiável, digno de ser aceito como altamente proveitoso no âmbito da real miscigenação da sociedade manauara e brasileira, altiva e historicamente preconceituosa, uma vez que o glorioso mito do ativo exercício do poder estará sempre e indissoluvelmente interligado às grandes alturas, pouco hospitaleiras.

sábado, 15 de outubro de 2016

FARIAS DE CARVALHO

Meu cavalo chegou

 

 

Meu cavalo chegou

Rogel Samuel



Leio o belo soneto de Farias de Carvalho (1930-1997), o poeta amazonense, o poeta maior, tão bom quanto os maiores. Leio o soneto. Farias meu professor de literatura no colégio. Farias genial poeta:




Meu cavalo chegou


Farias de Carvalho (1930-1997)


Meu cavalo chegou (memória e nuvem),
a aurora derramada sobre a crina.
Meu cavalo chegou. Fome de tudo
estou também: engoliremos mundos.

Meu cavalo chegou. E, pressentidos,
os caminhos me espiam de suas rédeas.
Meu cavalo chegou. Há quanto tempo
gasto-me em pés e olhos nesta espera...

Meu cavalo chegou. Eu despertava
quando o vento falou-me de seus cascos
e a poeira garantiu-me sua presença.

Meu cavalo chegou. Cumprir-me-ei.
Tanta gente cansada nessas cruzes...
Meu cavalo chegou. Mortos, montai!...


Leio o belo soneto e mergulho na sua simbologia, na sua mitologia. Cavalo, signo quente, masculino, sexual. Memória e nuvem, desejos na aurora, sobre a crina. Desejo, fome de tudo, engoliremos mundos. Pressentimentos dos caminhos, de suas rédeas de virtude e de vício, de seus cascos, da poeira, da presença. Meu cavalo chegou para acordar os mortos, tema sempre constante em Farias d'Ouro de Carvalho, tanta gente morta, tanta gente cansada nessas cruzes. O ponto é aqui. A vida contra a morte. O cavalo contra a poeira esquecida do caminho...

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

ÚLTIMO FANTASMA

ÚLTIMO FANTASMA 

CASTRO ALVES

Quem és tu, quem és tu, vulto gracioso, 
Que te elevas da noite na orvalhada? 
Tens a face nas sombras mergulhada... 
Sobre as névoas te libras vaporoso... 

Baixas do céu num vôo harmonioso!... 
Quem és tu, bela e branca desposada? 
Da laranjeira em flor a flor nevada 
Cerca-te a fronte, ó ser misterioso!... 

Onde nos vimos nós?... Es doutra esfera? 
És o ser que eu busquei do sul ao norte... 
Por quem meu peito em sonhos desespera?... 

Quem és tu? Quem és tu?—Es minha sorte! 
És talvez o ideal que est'alma espera! 
És a glória talvez! Talvez a morte!... 

NOVO LIVRO DE MARIA AZENHA

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

O AMANTE DAS AMAZONAS




ERA no apogeu do preço da seringa, cotada a 655 libras a tonelada na Bolsa de Londres, cotação especulativa, que beneficiava o interesse das empresas inglesas no Oriente. Foi o último ano do império amazonense. Depois, o Teatro Amazonas cerrou suas portas, abrindo somente dois anos depois para Villa-Lobos dar um concerto de violoncelo, que foi no dia 12 de junho de 1912. Imediatamente à tragédia o jovem Bataillon chegou de Paris e recebeu Antônio Ferreira a bordo: ali mesmo vendia o Manixi, menos o Palácio, numa transação comercial nunca esclarecida. José foi para o Igarapé do Inferno sem pisar no solo de Manaus, como fazia sempre.

Era Zequinha um belo rapaz, selvagem, culto, delicado, forte, corpo apolíneo mas adamado, pele de bronze dourado, misterioso, os olhos amendoados muito negros. Os cabelos finos esvoaçavam. Para alguns, um semi-índio. Para outros, um esnobe parisiense que penetrava a floresta com Paxiúba e homens sempre em busca de aventuras, como quando excursionou nas montanhas do rio Pique Yaco, na caça dos Numas, sem encontrá-los. Era solteiro e não tinha mulher, exceto Maria Caxinauá. Paxiúba dormia a seus pés, como um cão. Maria lhe dava banho. Ele nasceu no meio do rio, em 1890, a bordo do Adamastor, nascimento anunciado pelos pajés como o de um deus que veio de uma estrela distante chamada Thar. Em 1854, o Visconde de Mauá bloqueava as nações estrangeiras de navegarem o Amazonas e resistiu até sua falência. O Santa Maria de la Mar Dulce cruzava com o Adamastor poucos meses depois de ter nascido José e para onde, a fim de salvá-lo da malária, que dizimava as crianças da região, foi ele trasladado e transbordado com sua mãe, seguindo para Inglaterra, e de lá para Estrasburgo, onde foi deixada a criança com o tio Levy, com quem morou os anos de sua infância, primeiro na Praça Kleber n0 9, depois em cima da Pharmacie du Dome, até que, em 1894, é trazido de volta ao Manixi, onde fica mais 3 anos até partir de vez, em 97, para Paris, onde morou no Boulevard Saint Germain, e de onde só retomou com 15 anos de idade, em 1905, pouco antes do ataque dos Numas, que foi em meados de novembro. Em 1906 foi de regresso para Paris, para os estudos.

ROMANCE DO CASARÃO (JORGE TUFIC)



ROMANCE DO CASARÃO (JORGE TUFIC)
Terá dormido o operário
cujos pés calcaram notas
de alguma valsa perdida?
E os persistentes fantasmas
que moram nas dobradiças,
quantas pragas não rogaram?
De tudo oca, no entanto,
a foto já esmaecida
de um rosto branco, insepulto.
Perfil de brumas, rosal
de sonhos que se andaram.
Mãos que ainda tocam nos fusos
e ossadas em dispersão;
estes soluços discretos
ouvidos por trás da queda
do perempto casarão.

quarta-feira, 5 de outubro de 2016

DOIS GÊNIOS SE ENCONTRAM....

DOIS GÊNIOS SE ENCONTRAM....
Johannes Brahms Concerto pour violon et violoncelle en la mineur opus 102 I - Allegro 00:00 II - Andante…

terça-feira, 4 de outubro de 2016

DEL SENTIMIENTO TRÁGICO DE LA VIDA

(FOTO DE R. SAMUEL)


Miguel de Unamuno

DEL SENTIMIENTO TRÁGICO DE LA VIDA

EL HOMBRE DE CARNE Y HUESO


Homo sum: nihil humani a me alienum puto, dijo el cómico latino. Y yo diría más bien, nullum hominem a me alienum puto; soy hombre, a ningún otro hombre estimo extraño. Porque el adjetivo humanus me es tan sospe choso como su sustantivo abstracto humanitas, la humanidad. Ni lo humano ni la humanidad, ni el adjetivo simple, ni el sustantivado, sino el sustantivo concreto: el hombre. El hombre de carne y hueso, el que nace, sufre y muere -sobre todo muere-, el que come y bebe y juega y duerme y piensa y quiere, el hombre que se ve y a quien se oye, el hermano, el verdadero hermano. Porque hay otra cosa, que llaman también hombre, y es el sujeto de no pocas divagaciones más o menos científicas. Y es el bípedo implume de la leyenda, el ~aov zoAtrucóv de Aristóteles, el contratante social de Rousseau, el homo oeconomicus de los manchesterianos, el homo sa piens de Linneo o, si se quiere, el mamífero vertical. Un hombre que no es de aquí o de allí ni de esta época o de la otra, que no tiene ni sexo ni patria, una idea, en fin. Es decir, un no hombre. El nuestro es otro, el de carne y hueso; yo, tú, lector mío; aquel otro de más allá, cuantos pensamos sobre la Tierra. Y este hombre concreto, de carne y hueso, es el sujeto y el supremo objeto a la vez de toda filosofía, quiéranlo o no ciertos sedicentes filósofos. En las más de las historias de la filosofía que conozco se nos presenta a los sistemas como originándose los unos de los otros, y sus autores, los filósofos, apenas aparecen sino como meros pretextos. La íntima biografía de los filósofos, de los hombres que filosofaron, ocupa un lugar secundario. Y es ella, sin embargo, esa íntima biografía la que más cosas nos explica. Cúmplenos decir, ante todo, que la filosofía se acuesta más a la poesía que no a la ciencia. Cuantos sistemas filo sóficos se han fraguado como suprema concinación de los resultados finales de las ciencias particulares, en un período cualquiera, han tenido mucha menos consistencia y menos vida que aquellos otros que representaban el anhelo integral del espíritu de su autor. Y es que las ciencias, importándonos tanto y siendo indispensables para nuestra vida y nuestro pensamiento, nos son, en cierto sentido, más extrañas que la filosofía. Cumplen un fin más objetivo, es decir, más fuera de nosotros. Son, en el fondo, cosa de economía. Un nuevo descubrimiento científico, de los que llamamos teóricos, es como un descubrimiento mecánico; el de la máquina de vapor, el teléfono, el fonógrafo, el aeroplano, una cosa que sirve para algo. Así, el teléfono puede servirnos para comunicarnos a distancia con la mujer amada. ¿Pero esta para qué nos sirve? Toma uno el tranvía eléctrico para ir a oír una ópera; y se pregunta: ¿cuál es, en este caso, más útil, el tranvía o la ópera? La filosofía responde a la necesidad de formarnos una concepción unitaria y total del mundo y de la vida, y como consecuencia de esa concepción, un sentimiento que engendre una actitud íntima y hasta una acción. Pero resulta que ese sentimiento, en vez de ser consecuencia de aquella concepción, es causa de ella. Nuestra filosofía, esto es, nuestro modo de comprender o de no comprender el mundo y la vida, brota de nuestro sentimiento respecto a la vida misma. Y esta, como todo lo afectivo, tiene raíces subconscientes, inconscientes tal vez. No suelen ser nuestras ideas las que nos hacen optimistas o pesimistas, sino que es nuestro optimismo o nuestro pesimismo, de origen filosófico o patológico quizá, tanto el uno como el otro, el que hace nuestras ideas. El hombre, dicen, es un animal racional. No sé por qué no se haya dicho que es un animal afectivo o sentimental. Y acaso lo que de los demás animales le diferencia sea más el sentimiento que no la razón. Más veces he visto razonar a un gato que no reír o llorar. Acaso llore o ría por dentro, pero por dentro acaso también el cangrejo resuelva ecuaciones de segundo grado. Y así, lo que en un filósofo nos debe más importar es el hombre. Tomad a Kant, al hombre Manuel Kant, que nació y vivió en Koenigsberg, a forales del siglo xviII y hasta pisar los umbrales del XIX. Hay en la filosofía de este hombre Kant, hombre de corazón y de cabeza, es decir, hombre, un significativo salto, como habría dicho Kierkegaard, otro hombre -¡y tan hombre!-, el salto de la Crítica de la razón pura a la Crítica de la razón práctica. Reconstruye en esta, digan lo que quieran los que no ven al hombre, lo que en aquella abatió, después de haber examinado y pulverizado con su análisis las tradicionales pruebas de la existencia de Dios, del Dios aristotélico, que es el Dios que corresponde al ~oov zoAlrlKóv; del Dios abstracto, del primer motor inmóvil, vuelve a re construir a Dios, pero al Dios de la conciencia, al autor del orden moral, al Dios luterano, en fin. Ese salto de Kant está ya en germen en la noción luterana de la fe. El un Dios, el Dios racional, es la proyección al infinito de fuera del hombre por definición, es decir, del hombre abstracto, el homb re no hombre, y el otro Dios, el Dios sentimental o volitivo, es la proyección al infinito de dentro del hombre por vida, del hombre concreto, de carne y hueso. Kant reconstruyó con el corazón lo que con la cabeza había abatido. Y es que sabemos, por testimonio de los que le conocieron y por testimonio propio, en sus cartas y manifestaciones privadas, que el hombre Kant, el solterón un sí es no es egoísta, que profesó filosofía en Koenigsberg a fines del siglo de la Enciclopedia y de la diosa Razón, era un hombre muy preocupado del problema. Quiero decir del único verdadero problema vital, del que más a las entrañas nos llega, del problema de nuestro destino individual y personal, de la inmortalidad del alma. El hombre Kant no se resignaba a morir del todo. Y porque no se resignaba a morir del todo, dio el salto aquel, el salto inmortal de una a otra crítica. Quien lea con atención y sin anteojeras la Crítica de la razón práctica, verá que, en rigor, se deduce en ella la existencia de Dios de la inmortalidad del alma, y no esta de aquella. El imperativo categórico nos lleva a un postulado moral que exige a su vez, en el orden teológico, o más bien escatológico, la inmortalidad del alma, y para sustentar esta inmortalidad aparece Dios. Todo lo demás es escamoteo de profesional de la filosofía. El hombre Kant sintió la moral como base de la escatología, pero el profesor de la filosofía invirtió los términos. Ya dijo no sé dónde otro profesor, el profesor y hombre Guillermo James, que Dios para la generalidad de los hombres es el productor de inmortalidad. Sí, para la ge neralidad de los hombres, incluyendo al hombre Kant, al hombre James y al hombre que traza estas líneas, que estás, lector, leyendo. Un día, hablando con un campesino, le propuse la hipótesis de que hubiese, en efecto, un Dios que rige cielo y tierra, Conciencia del Universo, pero que no por eso sea el alma de cada hombre inmortal en el sentido tradicional y concreto. Y me respondió: «Entonces, ¿para qué Dios?» Y así se respondían en el recóndito foro de su conciencia el hombre Kant y el hombre James. Sólo que al actuar como profesores tenían que justificar racionalmente esa actitud tan poco racional. Lo que no quiere decir, claro está, que sea absurda. Hegel hizo célebre su aforismo de que todo lo racional es real y todo lo real racional; pero somos muchos los que, no convencidos por Hegel, seguimos creyendo que lo real, lo realmente real, es irracional; que la razón construye sobre las irracionalidades. Hegel, gran definidor, pretendió reconstruir el universo con definiciones, como aquel sargento de artillería decía que se construyeran los cañones: tomando un agujero y recubriéndolo de hierro. Otro hombre, el hombre José Butler, obispo anglicano, qué vivió a principios del siglo xvni, y de quien dice el cardenal católico Newman que es el hombre más grande de la Iglesia anglicana, al foral del capítulo primero de su gran obra sobre la analogía de la religión (The Analogy of Religion), capítulo que trata de la vida futura, escribió estas pequeñas palabras: «Esta credibilidad en una vida futura, sobre lo que tanto aquí se ha insistido, por poco que satisfaga nuestra curiosidad, parece responder a los propósitos todos de la religión tanto como respondería una prueba demostrativa. En realidad, una prueba, aun demostrativa, de una vida futura, no sería una prueba de religión. Porque el que hayamos de vivir después de la muerte es cosa que se compadece tan bien con el ateísmo, y que puede ser por este tan tomada en cuenta como el que ahora estamo s vivos, y nada puede ser, por lo tanto, más absurdo que argüir del ateísmo que no puede haber estado futuro.» El hombre Butler, cuyas obras acaso conociera el hombre Kant, quería salvar la fe en la inmortalidad del alma, y para ello la hizo independiente de la fe en Dios. El capítulo primero de su Antología trata, como os digo, de la vida futura, y el segundo del gobierno de Dios por premios y castigos. Y es que, en el fondo, el buen obispo anglicano deduce la existencia de Dios de la inmortalidad del alma. Y como el buen obispo anglicano partió de aquí, no tuvo que dar el salto que a fines de su mismo siglo tuvo que dar el buen filósofo luterano. Era un hombre el obispo Butler, y era otro hombre el profesor Kant. Y ser un hombre es ser algo concreto, unitario y sustantivo es ser cosa, res. Y ya sabemos lo que otro hombre, al hombre Benito Spinoza, aquel judío portugués que nació y vivió en Holanda a mediados del siglo XVII, escribió de toda cosa. La proposición 6.a de la parte III de su Ética dice: unaquaeque res, quatenus in se est, in suo esse perseverare conatur, es decir, cada cosa, en cuanto es en sí, se esfuerza por perseverar en su ser. Cada cosa es cuanto es en sí, es decir, en cuanto sustancia, ya que, según él, sustancia es id quod in se est et per se concipitur; lo que es por sí y por sí se concibe. Y en la siguiente proposición, la 7.a , de la misma parte añade: conatus, quo unaquaeque res in suo esse perseverare conatur nihil est praeter ipsius rei actualem essentiam; esto es, el esfuerzo con que cada cosa trata de perseverar en su ser no es sino la esencia actual de la cosa misma. Quiere decirse que tu esencia, lector, la mía, la del hombre Spinoza, la del hombre Butler, la del hombre Kant y la de cada hombre que sea hombre, no es sino el conato, el esfuerzo que pone en seguir siendo hombre, en no morir. Y la otra proposición que sigue a estas dos, la 8.a , dice: conatus, quo unaquaeque res in suo esse perseverare conatur, nullum tempus finitum, sed indefinitum involvit, o sea: el esfuerzo con que cada cosa se esfuerza por perseverar en su ser, no implica tiempo finito, sino indefinido. Es decir, que tú, yo y Spinoza queremos no morirnos nunca y que este nuestro anhelo de nunca morirnos es nuestra esencia actual. Y, sin embargo, este pobre judío portugués, desterrado en las tinieblas holandesas, no pudo llegar a creer nunca en su propia inmortalidad personal, y toda su filosofía no fue sino una consolación que fraguó para esta su falta de fe. Como a otros les duele una mano o un pie o el corazón o la cabeza, a Spinoza le dolía Dios. ¡Pobre hombre! ¡Y pobres hombres los demás! Y el hombre, esta cosa, ¿es una cosa? Por absurda que parezca la pregunta, hay quienes se la han propuesto. Anduvo no ha mucho por el mundo una cierta doctrina que llamábamos positivismo, que hizo muy bien y mucho mal. Y entre otros males que hizo, fue el de traernos un género tal de análisis que los hechos se pulverizaban con él, reduciéndose a polvo de hechos. Los más de los que el positivismo llamaba hechos, no eran sino fragmentos de hechos. En psicología su acción fue deletérea. Hasta hubo escolásticos metidos a literatos -no digo filósofos metidos a poetas, porque poeta y filósofo son hermanos gemelos, si es que no la misma cosa- que llevaron el análisis psicológico positivista a la novela y al drama, donde hay que poner en pie hombres concretos, de carne y hueso, y en fuerza de estados de conciencia las conciencias desaparecieron. Les sucedió lo que dicen sucede con frecuencia al examinar y ensayar ciertos complicados compuestos químicos orgánicos, vivos, y es que los reactivos destruyen el cuerpo mismo que se trata de exami nar, y lo que obtenemos son no más que productos de su composición. Partiendo del hecho evidente de que por nuestra conciencia desfilan es tados contradictorios entre sí, llegaron a no ver claro la conciencia, el yo. Preguntarle a uno por su yo, es como preguntarle por su cuerpo. Y cuenta que al hablar del yo, hablo del yo concreto y personal; no del yo de Fichte, sino de Fichte mismo, del hombre Fichte. Y lo que determina a un hombre, lo que le hace un hombre, uno y no otro, el que es y no el que no es, es un principio de unidad y un principio de continuidad. Un principio de unidad primero, en el espacio, merced al cuerpo, y luego en la acción y en el propósito. Cuando andamos, no va un pie hacia adelante, el otro hacia atrás: ni cuando miramos mira un ojo al Norte y el otro al Sur, como estemos sanos. En cada momento de nuestra vida tenemos un propósito, y a él conspira la sinergia de nuestras acciones. Aunque al momento siguiente cambiemos de propósito. Y es en cierto sentido un hombre tanto más hombre, cuanto más unitaria sea su acción. Hay quien en su vida toda no persigue sino un solo propósito, sea el que fuere. Y un principio de continuidad en el tiempo. Sin entrar a discutir -discusión ociosa- si soy o no el que era hace veinte años, es indiscutible, me parece, el hecho de que el que soy hoy proviene, por serie continua de estados de conciencia, del que era en mi cuerpo hace veinte años. La memoria es la base de la personalidad individual, así como la tradición lo es de la personalidad colectiva de un pueblo. Se vive en el recuerdo y por el recuerdo, y nuestra vida espiritual no es, en el fono, sino el esfuerzo de nuestro recuerdo por perseverar, por hacerse esperanza, el esfuerzo de nuestro pasado por hacerse porvenir. Todo esto es de una perogrullería chillante, bien lo sé: pero es que, rodando por el mundo, se encuentra uno con hombres que parece no se sienten a sí mismos. Uno de mis mejores amigos, con quien he paseado a diario durante muchos años enteros, cada vez que yo le hablaba de este sentimiento de la propia personalidad, me decía: «Pues yo no me siento a mí mismo, no se qué es eso.» En cierta ocasión, este amigo a que aludo me dijo: «Quisiera ser fulano» (aquí un nombre), y le dije: Eso es lo que yo no acabo nunca de comprender, que uno quiera ser otro cualquiera. Querer ser otro, es querer dejar de ser uno el que es. Me explico que uno desee tener lo que otro tiene, sus riquezas o sus conocimientos; pero ser otro, es cosa que no me la explico...

sexta-feira, 30 de setembro de 2016

RÁPIDAS REFLEXÕES SOBRE HAIKAI

RÁPIDAS REFLEXÕES SOBRE HAIKAI

ROGEL SAMUEL


Se mira na poça
 de lama no pátio
 a lua vaidosa.
(Luiz Bacellar: Satori)

Um dia, durante um Kalachakra, alguém perguntou ao Dalai Lama:
- Sua Santidade, o que é a Iluminação?
Ele explodiu uma grande gargalhada e disse:
- Mas eu não sei...
Assim é a noção de Haikai que aqui vamos investigar teoricamente outra vez, em fragmentos de reflexão. Ela já nos foi pedida certa vez como prefácio ao livro “Satori”,  de Luiz Bacellar, já falecido, publicado em Manaus pela Editora Valer (2000), um livro de haikais. É em homenagem à memória do grande poeta amigo que vamos retomar aqui.

A arte faz saltar a verdade, já disse Heidegger.
A lua se vê no chão, a gloriosa lua. A luz pura da lua se vê naquele espelho, “um espelho de boas qualidades”, que jaz no chão, a sabedoria do espelho puro da água.
Do céu à terra, a glória da lua se vê na lama.
Mas a lama não polui a lua, nem a lua purifica a água.
Isto, diz Takuzo Igarashi, representa o estado de mente onde se encontra o espírito do Zen, quando todas as coisas se refletem entre si na sabedoria que é como espelho.
Tão simples e tão claras, as coisas aparecem na água da lama como puras de um céu sem nuvens.

Se mira na poça
 de lama no pátio
 a lua vaidosa.

A lua não está na vaidade da água, nem a água está coberta do glorioso céu. A água podia estar correndo lentamente, de acordo com outra expressão do Zen: “um movimento em tranqüilidade”.
Porque se pode dizer que o Haicai é a súbita visão de espelho da mente do poeta quando nasce o olho da sabedoria.

Escreveu Santideva:
“ Yogacarin: Se a própria mente é uma ilusão, então o que é isto que é percebido?
“Madhyamika: A mente não percebe a mente. Da mesma maneira que uma espada não pode cortar-se a si mesma, assim é a mente.”

Se a lua se acredita no céu, está na lama.
Ou, como escreveu Wittgenstein: “o olho, que tudo vê, não se vê”. Pois “o que pode ser mostrado não pode ser dito”.

Aquela verdade salta aos olhos:

“El arte hace surgir la verdad. El arte salta hacia adelante y hace surgir la verdad de lo ente en la obra como cuidado fundador. La palabra origen [Ur-sprung] significa hacer surgir algo por medio de un salto, llevar al ser a partir de la procedencia de la esencia por medio de un salto fundador” (Heidegger. El origen de la obra de arte. Trad. de Helena Cortés y Arturo Leyte.  Caminos de bosque, Madrid, Alianza, 1996).

Por isso, a iluminação tem sido associada ao ver, ao Olho.
No Dhammacakkappauattanasutta se declara:
"Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do Sofrimento pode ser realizada, para mim, ó monges, com relação às outras doutrinas isto nunca foi ouvido antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu. Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do Sofrimento foi realizada".

Assim a iluminação de Buddha se fez em três etapas.
Na primeira parte da noite ele tomou conhecimento da existência do antes, antes dos estados de consciência. Na segunda parte da noite ele adquiriu o conhecimento de como os seres passam dum estado de consciência (existência) a outro. Neste ponto ele percebeu a lei de dukkha (a lei do Sofrimento) e a lei da Causa do Sofrimento, a primeira e a segunda Nobres Verdades.
Enfim, na ultima parte da noite, ele penetrou no conhecimento das causas subjacentes à existência, no processo das origens interdependentes explicadoras da existência, na origem de tudo, inclusive do Universo.

No Dhammapada, v. 153-154, se declara solenemente:
 “Na última vigília da noite, cheio de compaixão pelos seres vivos, fixando meu espírito nas origens interdependentes e meditando acerca da ordem do devir e de sua cessação, ao sol nascente alcancei a iluminação suprema”.
E iluminação pressupõe sempre luz.

Haikai seria a experiência feliz da surpresa do real da realidade que salta aos olhos, a percepção do instante significante da súbita e fragmentária cessação do processo de vir-a-ser, uma espécie de pseudo-iluminação em que o poeta vê naquele momento sem pensamento.

A paz, na tranqüilidade do céu sem nuvens, da água sossegada, mesmo em movimento. Quando o pensamento cessa, o mundo desperta, lúcido.

Se mira na poça
 de lama no pátio
 a lua vaidosa.  

A lama não enlameia a lua, nem a lua se banha ali. Mas há inteligência viva e suprema da Atenção (Sattipatana Suttra), que é a Quarta Nobre Verdade.
A visão repousa, assim, na existência da água na poça de lama em tranqüilidade refletindo um céu sem nuvens, ou na poça de lama do pátio onde a lua se vê radiante.

Se saber é sabor, a questão fica sem resposta.
Porque poucos a experimentaram.
É falar do que não se sabe.

No Budismo se diz: quem fala não sabe, quem sabe não fala. Só é possível a transmissão da lucidez através da poesia.
Sendo uma experiência, o haikai faz a apreensão da poça da água na lama do pátio num céu sem nuvens, onde a lua reina, vaidosa entre as estrelas, na visão do silêncio que tudo penetra.
Coisa súbita, abrupta.
Sem objetivo, nem proveito.

Quando o Buddha vinha de sua Iluminação suprema Ele encontrou um homem que, assustado ao vê-Lo com tanta luz, perguntou quem era e quem tinha sido seu mestre.
O Buddha, que não teve mestres, respondeu:
“Eu sou Aquele que compreendeu o que devia ser compreendido, e abandonou o que devia ser abandonado. Por isso Eu sou o Buddha, o Desperto”.

O haikai é despertar, aponta para a dignidade da realidade e toma cada atividade como um fim em si mesmo.

Na visão impura, há sofrimento e libertação do sofrimento, há céu e inferno.

Na visão impura, a lua está na imundície da lama do chão.

Na visão pura, não: não há puro ou impuro, nem sofrimento, nem libertação do sofrimento, nem céu, nem inferno, ou melhor, há sofrimento, mas não há sofredor.
Na visão pura não há certo ou errado.
Não há mesmo libertação, porque não há prisioneiro, nem o de que se libertar.
Não há dualidade.
Como se diz no Sutra do Coração:
“ Desta maneira, os sentimentos, a percepção, a formação e a consciência são vazio. Por isso, Shariputra, todos os dharmas são vazios. Não existem características. Não existe nascimento, nem cessação. Não existe impureza nem pureza. Não existe aumento nem diminuição. Por isso, Shariputra, no vazio não existe forma, nem sentimento, nem percepção, nem formação, nem consciência. Não existe olho, nem orelha, nem nariz, nem língua, nem corpo, nem mente. Não existe aparência, nem som, nem cheiro, nem sabor, nem tato, não existem dharmas”.

Satori é libertação?
E libertação de quê?
Talvez do próprio questionamento sobre o que satori seja.
Libertação do questionador, do sujeito que põe a questão, da dúvida e da certeza, o espanto da aparição misteriosa que salta ali como o surgir do límpido desconhecido.

Um dia alguém perguntou a Sua Santidade Sakya Trizin:
- Então, o que são as aparências?
- Um longo sonho, respondeu ele.

Quando o pensamento cessa a lua aparece.
Só a vemos quando a mente fica no estado de desapego, de silêncio, que é a realização profunda do Dzogchen.
Diz Santidade o Dalai Lama:
“A prática cotidiana do dzogchen consiste em cultivar simplesmente uma plena aceitação sem preocupação e uma abertura ante todas as circunstâncias. Devemos compreender que a abertura é o campo onde jogam todas as emoções e relacionarmo-nos com o próximo sem artificialidade, manipulação nem estratégias. Devemos experimentar tudo completamente”.

Dzogchen é a grande perfeição.
“A Grande Perfeição: o nono e o último veículo. Esta doutrina trata da pureza primordial dos fenômenos e da presença natural das qualidades de buda em cada ser. Ela traz o nome de Grande Perfeição para sublinhar que todos os fenómenos estão incluídos nesta perfeição primordial”, salientou Pema Wangyal Rinpochê.

O Satori vê dentro da verdadeira natureza, ou seja, da correta compreensão.
É considerado o primeiro passo para a budeidade.
É uma súbita iluminação, uma súbita intuição da verdadeira natureza, inexplicável e indescritível, e ininteligível.
Em “Viver através do Zen”, de Suzuki, se lê:
“O que significa "viver através do Zen"? Não estamos todos vivendo através do Zen, no Zen e com o Zen? Podemos escapar disso? Embora muito nos esforcemos para escapar dele, somos como aqueles pequenos peixes apanhados em quantidade; a luta não tem proveito algum, e termina por nos ferir gravemente”.
“Visto de outro modo, "viver através do Zen" é como pôr outra cabeça sobre a que nós já tínhamos antes mesmo de nosso nascimento. Qual a utilidade, então, de falar sobre isso?”

Fernando Pessoa, no seu famoso «O guardador de rebanhos», abre  sua técnica de meditação, na melhor tradição dos mestres Zen.
Ele diz: sou um pastor de pensamentos.

"Sou um guardador de rebanhos
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

«Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto.
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz."

É quando seu corpo está deitado na realidade que ele reúne os pensamentos como um pastor suas ovelhas, para que não se percam nem se extraviem, para que não divaguem, nem delirem.
Reúne suas ovelhas dentro de si.

É o que o Zen diz: "Viver dentro de casa". Dentro de casa é dentro de si. 

Diz Suzuki que o poeta Hakuin (1685-1768) cantava  assim:
"As formigas vagarosas lutam para carregar as asas de uma libélula morta; As andorinhas da primavera pousam lado a lado num ramo de salgueiro; as fêmeas dos bichos-da-seda, pálidas e cansadas, ficam imóveis segurando as cestas repletas de folhas de amora; os garotos da vila são vistos com rebentos de bambu roubados arrastando-se através das cercas quebradas.»

Mas não é para ser compreendido! Se for compreendido, terá outro sentido. Nossas experiências diárias «são de fato experiências do Zen, mas não conseguimos reconhecer isso porque nós, como seres intelectuais, perdemos algo que nos permitia entender o significado", diz Suzuki.

Que perdemos?
Perdemos a beleza, a claridade.

Não vemos a beleza dos pássaros no céu, das flores na terra, da luz sobre a montanha, das sombras estreladas da noite, da lua na poça da água.

Porque a vida em si é bela, é algo misterioso.
Escapa à compreensão intelectual.
Por isso um monge jardineiro aproximou-se certa vez do mestre e manifestou o desejo de ser iluminado no Zen.
O mestre disse: "Venha novamente quando não houver ninguém por perto".
No dia seguinte, o monge observou que não havia ninguém perto e implorou-lhe para revelar o segredo.
Disse o mestre: "Aproxime-se mais de mim".
O monge chegou mais perto dele.
Disse então o mestre: "O Zen é algo que não pode ser transmitido por palavras".

Como para o lutador de espadas. A alegria, a felicidade está no momento presente, no fragmento presente.

Uma realidade só se dá única.
Ver e estar consciente de que estou vendo, pensar e estar consciente de que estou pensando.

Como se diz no Zen: "Seguro uma espada em minhas mãos e fico com as mãos vazias".

Ou como o monge que chegou ao seu mestre e perguntou:
- Como posso atingir a Libertação?

- Quem te prende? - respondeu o mestre.

ANÍSIO TEIXEIRA

Na porta da FNFI
Rogel Samuel

A primeira pessoa que encontrei na porta da Faculdade foi Anísio Teixeira.

Mas eu não sabia. O primo de meu pai, Gervásio, me levou até bem perto do prédio e lá fui eu, com 18 anos de idade.

- Aqui é a Faculdade Nacional de Filosofia? – perguntei para aquele senhor mal-vestido, de óculos velhos de aros “de tartaruga”. Pensei que era o porteiro. Era Anísio Teixeira, conforme depois vi na sala de aula, meu professor de Filosofia da Educação.

Foi o único professor que vi baterem palmas depois da aula.

Ele me orientou, da porta, e eu fui inscrever-me no Vestibular, recém-chegado de Manaus.

Não passei, naquele primeiro vestibular. No dia da prova de francês, estava com febre de 40 graus e D. Marcella Mortara me reprovou, ou melhor, inutilizou minha prova com um risco diagonal e escreveu como nota: “Ilegível”, e aplicou um zero.

Sempre tive uma péssima letra. Até hoje. Eu devia ter estudado caligrafia, como se faziam os antigos.

Por isso, estudei ali no Curso Vestibular da própria Faculdade, gratuito, por um ano. E foi bom.

O curso era do Diretório Acadêmico (um ano depois eu era professor ali), e os professores eram os alunos... mas uns gênios.

Fui aluno do Antônio Pio (onde andará), de latim. Lia latim e grego como eu hoje leio jornal. Anos depois foi aposentado precocemente vitimado por misteriosa doença. Fui aluno de Antonio Augusto, depois assistente do Celso Cunha. Ali só havia gênios.

Eu morava em quartos alugados e comia no Calabouço, restaurante da UME, União Minicipal dos Estudantes, que ficava nas imediações do Aeroporto Santos  Dumont. 

O Aterro estava sendo feito.

Tive a sorte de passar em primeiro lugar (foi o que me disse depois Aluísio Trinta) para o Vestibular de Letras Clássicas. Pura sorte.

Havia 20 vagas, só passamos creio que 12. Provas escritas e orais.

Celso Cunha, na prova, mandou que justificássemos o verso de Camões: “Mas porém a que cuidados”. Ele queria se explicasse o “mas porém”.

E por aí foi.

O meu quarto, no Maracanã, dava para um beco e uma casa abandonada.

Dali eu só tinha a visão daquele muro velho e, à esquerda, uma árvore antiga daquela rua Eurico Rabelo.

Como eu precisava de mesa, comprei um “bureau” usado, antigo, de madeira preta, que pertencera a um ministério. Era gigantesco.

O Maracanã ficava em frente, e nos grandes jogos cada gol soava como uma onda que se elevasse saída de um vulcão furioso.

Era possível entrar no Maracanã vazio, ir até o gramado, olhar do centro para a periferia, para aquelas galerias monstruosas e vazias, descritas por Clarice Lispector num belo conto.

Passei a explorar o Rio, de ponta a ponta.

Nos dias livres tomava um ônibus e visitava Caxias, Meriti, São Gonçalo etc.

Chegava no fim da linha, pegava o ônibus de volta.

Foi aí que desenvolvi o espírito de viajante. Mais tarde percorri o Nordeste, o Sul, e depois o mundo, Katmandhu, Sydney, Paris...

O espírito de aventura. Que perdi, depois de velho.

A porta da FNFi foi minha entrada para o mundo.



quinta-feira, 29 de setembro de 2016

FREI LOTHAR

FREI LOTHAR



Ainda não era passado muito tempo quando as sandálias afundando na lama de tabatinga ele via o carregamento da alvarenga que o Barão do Juruá puxava para a cidade de Manaus desde o Rio Jordão. Pois a velha batina fedia, estava molhada de suor. O suor escorria sobre outro mais antigo, encharcando os remendos. Debaixo de um grande, velho e aziago guarda-chuva preto, o Frei parecia ridículo no barranco, coisa estranha, exótica, à margem, na maior dificuldade. O Barão do Juruá carregava, e o Frei tinha descido para almoçar, trôpego, necessitando de terra firme e fugir do calor, os pés afundavam no barro mole. Subira com dificuldade a ladeira escorregadia da margem quando os primeiros cães apareceram. Primeiro foram dois, que desceram a ladeira com ódio. Depois vieram outros e Frei Lothar se viu finalmente cercado de cães, e usava a cruz do rosário para defender-se. As crianças e os homens se riam, velho imprestável. Alguns lhe deviam a vida. Mas Fernando Fialho, o dono do porto, apareceu de repente e o socorreu. Fialho estava atarefado no carregamento de juta que seguia para Manaus, pois a nova riqueza da economia da região era a juta. Pareceu-lhe que Frei Lothar não podia embarcar porque os carregadores retiraram a prancha, e pela prancha passavam fortes e baixos, arriados pelo peso dos fardos que afundavam no barranco. Frei Lothar olhava as águas barrentas que emporcalhavam suas sandálias. Os meninos desceram a ladeira. Já não lhe pediam a benção. Ninguém o respeitava, velho e difamado. Diziam dele que gostava de meninos, o que era mentira. Os meninos pulavam na água barrenta, perto dele. A água se esparzia, brilhante. Ameaçavam dar um banho no missionário. Frei Lothar não reclamava porque estava doente, a doença da velhice, sem forças, sem coragem, sem nervos, sem vida, sem ânimo, sem fé. Olhava com compaixão, suor e impaciência para tudo aquilo. Era em verdade um bem aquele respingo que o refrescava. Se pudesse tiraria a fedorenta batina e mergulharia feliz naquela água. Frei Lothar misturava todos os fatos: os escorpiões, os cães, o banho, a doença, e a velhice, a calúnia. O fim. O aniquilamento, a morte. Frei Lothar, as pernas a tremer, sentia uma ponta de desmaio, no calor. Miseráveis cães! Miseráveis moleques! Miserável vida! A tarde começava a cair e a noite se aproximava. O Barão do Juruá ia zarpar, finalmente, vazio - uma benção, que Antônio Ferreira proibira de levar passageiros. Não, não era verdade que o mundo estava contra ele. No dia anterior fôra mesmo bem tratado. Ferreira aturava o velho padre que medicava as gentes dos seringais. O Barão do Juruá e tudo e todos que pertenceram ao império Bataillon eram de propriedade de Antônio Ferreira. O Barão ia vazio, o Frei viajaria com sossego, com conforto. Ele conhecera viagens em embarcações cheias de porcos e de redes, fedendo a excremento e a peixe podre. O pescoço do padre ardia de calor, o suor escorria e arrojava-se no peito. Com que facilidade aqueles homens erguiam e carregavam os pesados fardos! Ah, juventude, juventude! Ah, força dos braços! Frei Lothar chegara de Tarauacá, que ele ainda chamava de Villa Seabra, tinha atravessado a pé o difícil Paraná São Luís e o Igarapé São Joaquim, passado por Universo, por Santa Luzia, por Pacujá, viera de canoa por aquele furo. Oh, não ... Ele já não era daquilo. Que se preparasse para morrer. E Frei Lothar não queria morrer, passara a vida combatendo a morte. Acabaria no fundo de uma rede em Manaus, na freguesia de Aparecida, no meio da caridade imprestável. Não, aquilo não era certo. Gostaria de morrer em sossego, ou de regressar à Europa, sonho que se dissipava, pois era pobre. Quarenta anos ali, no fundo daquele inferno, esquecido, reduzido, perdido na selva. Saberia viver longe daquele mundo selvagem? Como poderia chegar à Europa, à Estrasburgo, sua terra natal? Fizera tudo o que haveria para ser feito, lutara contra feras e febres, rezara missas no meio de índios, batizara curumins ilegítimos, nos barrancos. Que mais? Ainda o queriam? Como não podia agora montar, devido à ciática, tinha de viver a pé, envergado ao peso dos anos e da artrite - Deus meu!

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

LUA

lua (rogel samuel)

hoje em lua cheia 
lua de setembro, plena 
no meu lago vc aparece

No pátio, o luar 
passeia no silêncio 
do gato

domingo, 25 de setembro de 2016

O FURTO



- Sabe o que aconteceu então? - perguntou o velho.

E ficou em silêncio.

- Um furto, respondeu o velho. Fui furtado de um pequeno cofre.

E ergueu-se, levantou-se, pôs-se de pé e andou, solene, até um chiffonier encostado nas cortinas. De lá mostrou um cofre de metal. “Igual a este”, disse. Era um cofre de viagem médio. Media cerca de 30 centímetros cúbicos e se formava por revestimentos de ferro certamente separados por substâncias ignífugas. Abria-se por uma chave brocada artisticamente trabalhada.

- Eram jóias?

- Não - cortou o velho. Ali Ifigênia guardava ouro. Eram libras esterlinas, de ouro, do toque de 0,900. Foi o único furto que não consegui descobrir. Depois disto os valores todos eu os guardava no cofre grande. Nunca consegui saber, Ifigênia sempre disse que Maria Caxinauá era a culpada. Na época, ela foi amarrada a um formigueiro e quase morreu. Mas nada confessou. Meu filho, quando soube, foi em sua defesa. Mesmo que eu tivesse continuado as investigações e a mandasse supliciar até a morte, ela morreria sem nada confessar. O quê?

Tossiu. Pegou a taça, encostou as costas retas no espaldar e reinou o pescoço com um puxão. Ferreira incomodado, mexeu-se e perguntou:

- Algum empregado? Alguém pode ter ficado rico, gastando, dando sinais de riqueza...

Era como se o velho estivesse a um megaparsec:

- Ninguém. Nem pode ter sido um empregado qualquer ... dificilmente foi um Caxinauá ... O cofre está aqui, continua aqui, tenho certeza.

- Como sabe? perguntou Ferreira, apertando o laço da gravata.

- Por isso mesmo. Ninguém apareceu rico, e os Caxinauás não conhecem o valor do dinheiro. Além disso, é impossível para um Caxinauá viver fora da tribo. Eles constituem um povo simbiótico, um organismo só, vivo, único. Não são seres individuais. O indivíduo é o povo, a raça. Por isso foi tão fácil amansá-los. Um índio sozinho não poderia ter roubado o cofre e fugir para Manaus ou Belém. Não os Caxinauás.

Lentamente a grande porta se abria e a bela maacu apareceu.

- Venha cá, menina - disse-lhe Pierre. E quando a índia se aproximou, o velho franziu os sobrolhos, encarou a jovem de frente e perguntou: “Você conhece Maria Caxinauá? Você já a viu?”.