quarta-feira, 31 de agosto de 2016
terça-feira, 30 de agosto de 2016
FAZ ESCURO MAS EU CANTO
FAZ ESCURO MAS EU CANTO
THIAGO DE MELLO
Faz escuro mas eu canto,
porque a manhã vai chegar.
Vem ver comigo, companheiro,
a cor do mundo mudar.
Vale a pena não dormir para esperar
a cor do mundo mudar.
Já é madrugada,
vem o sol, quero alegria,
que é para esquecer o que eu sofria.
Quem sofre fica acordado
defendendo o coração.
Vamos juntos, multidão,
trabalhar pela alegria,
amanhã é um novo dia.
quarta-feira, 24 de agosto de 2016
A RUA DAS FLORES
A rua das flores
NEUZA MACHADO
Assinalo a palavra “solidamente”, porque ela está destacada no romance. A fortuna do personagem ficcional Ribamar de Souza, por vários motivos, é sólida. O dinheiro que amealhou, posteriormente, em Manaus, não poderá ser conceituado historicamente como ilegal. O fato de ter transformado as casas da Rua Frei José dos Inocentes - hipotecadas por Juca das Neves - em “puteiro”, não desmerece historicamente o talento comercial do personagem. À época, tal comércio, era considerado aceitável. Em verdade, a Rua das Flores - em sua exterioridade, como retrato ficcional da prostituição, ou mesmo interiormente, enquanto criação literária - realça um dos maiores negócios da crise amazonense pós-borracha.
O que ocorreu na tenção [sic] ficcional rogeliana: Depois do falecimento de Juca das Neves, Ribamar de Souza, como sócio do patrão, herda as dívidas do velho, resgata as hipotecas e compra os terrenos da Rua Frei José dos Inocentes, transformando-os em “puteiro”. Por meio de uma transação comercial com a dona do prostíbulo de Transvaal, traslada as “meninas” de “D. Conchita” para Manaus. Posteriormente, induzido naturalmente por Maria Caxinauá (que o enviou para Manaus, depois do declínio econômico do Seringal Manixi), casa-se com Diana d’Artigues, neta da Caxinauá, herdando - por intermédio do casamento - a fortuna “roubada” pela índia, e, com isto, tornando-se um dos maiores novos ricos da Cidade.
O fogo da labareda da serpente
Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel
terça-feira, 23 de agosto de 2016
segunda-feira, 22 de agosto de 2016
FESTA
Agora tu, Calíope, me ensina
O que dizer dessa bela Olimpíada
Vivida no coração dessa praia
De Copacabana a senhorita do mar...
Foi uma festa de cores e falares
Ao som do azul do mar profundo...
Nenhuma briga, nenhum ataque
Que não fosse de riso, de gol e caipirinhas
Foi uma celebração, foi uma conquista
Do lábaro estrelado brasileiro
ROGEL SAMUEL
VALEU
Agora tu, Calíope, me ensina
O que dizer dessa bela Olimpíada
Vivida no coração dessa praia
De Copacabana a senhorita do mar...
Foi uma festa de cores e falares
Ao som do azul do mar profundo...
Nenhuma briga, nenhum ataque
Que não fosse de riso, de gol e caipirinhas
Foi uma celebração, foi uma conquista
Do lábaro estrelado brasileiro
ROGEL SAMUEL
quarta-feira, 17 de agosto de 2016
A NOITE SOBRE A NOITE
Rogel Samuel
Toda
vez que se lê o poema se tem dele outro sentido, diferente lógica.
O texto se abre para todos os lados dos pontos cardeais, e
tudo, cada leitor pode ler-se ali, ver-se ali, ir por ali para um ponto
desconhecido.
É o poema 'Pedra e água', de Murillo Mendes:
Esta mulher sem fim e a noite sobre a noite
E esta fome de ti, meu Deus talvez de mim.
Quem sabe eu já morri, meu esqueleto eterno
Em pé nos séculos e nas ondas me reveste.
E esta fome de ti, meu Deus talvez de mim.
Quem sabe eu já morri, meu esqueleto eterno
Em pé nos séculos e nas ondas me reveste.
O mar, a escuridão, esta fome de amor,
Esta noite sem fim e o X de Deus
Que em nós todos vive, morre e renasce
Espuma do mar eternamente e a pedra
Esta noite sem fim e o X de Deus
Que em nós todos vive, morre e renasce
Espuma do mar eternamente e a pedra
Ora, o que é esta 'mulher sem fim'?
Será a
mulher sempre e infinitamente amada? Ou a mãe natureza eternamente produtiva e
úbere de vida renovável, abundante, cascatarante e oceânica, que em ondas se
inunda no infinito universo de seus múltiplos seres coloridos de flores frutos
sabores novos e eternamente renascidos, renovados sempre porque sempre
morrendo, multiplicando-se no tempo e na atemporalidade, no espaço largo e no
espaço tão amplo quanto o sem-fim do começo das estrelas, na escuridão luminosa do Universo?
Ou é a mulher básica e buscada, retratada na memória, a
mulher futura ou possível, a que vive dentro de nós mesmos como o Outro Obscuro
e Insaciável, aquela que não existe no mundo externo, porque no externo não
está mais do que no aquém do objeto, do lado de cá, no amante e não no amado?
Que mulher é essa que é sem fim, e portanto sem começo, que
tudo o que termina começou um dia, e se não tem término não nasceu, é a
não-nascida, a que não é ainda porque não está lá, nem ainda virá, se virá, a
ser, a aparecer, a crescer.
Oh
amada infinita, quem és? Onde estás? Em que céu ou em que terra tu te
encontras? Por quem és, responde, acontece, mostra-me o mapa e o rosto da rota
a via de acesso para a tua realidade, infinita amada?
Esta
mulher sem fim não será aquela de uma única noite, mas a que sobreviverá a
todas as noites, nas noites insaciadas sobre outras noites, aquelas que se
sobrepõem, sem o espaço intermediário de um dia, aquela escuridão noturna que
nunca amanhece, que nem termina, nem se esgota senão em si mesmo e se renova e
se refaz e não se retira nunca?
Ela é a musa, o motivo do poeta, o amor em pessoa, a onda do
mar, a fonte do ser, a oriunda matriz, o ventre da fecundidade, o abrigo da
maternidade nunca perdida, o leito da vida e da morte, o refrigério do cansaço
e da proteção, a criadora e a mãe que socorre.
'Essa
mulher sem fim, e a noite sobre a noite'- só, em si, é uma incógnita
esclarecedora de todas as nossas vicissitudes e vivências, de todas as nossas
lástimas e alegrias, das sexuais às espirituais porque também são gozosas.
Oh,
Amada imortal! Oh, Pátria de meu espírito e de minha inspiração!
Por
isso me calo.
Por
isso fico apenas no primeiro verso.
Porque
mesmo me esgoto no primeiro verso.
Porque
daqui não passo, daqui não posso.
Sim,
essa mulher é a fome de Deus, a fome de amor, a fome, o amor. Morrer é
mergulhar no fundo do seu ser e no mar de sua absorção, na escuridão de sua
benfazeja fosforescência e nas profundezas de suas instabilidades, nas suas
carícias e idas, superfícies e sedas, nas redes, máscaras e laços dos seus
cabelos e tranças, seus sonhos e necessidades.
Somos
todos descendentes dessa mulher sem fim, dessa maternidade original e nunca
esquecida, dessa raiz funda no coração de nossa matéria e de nossa
sensibilidade, de nome familiar em solidão,
Caminhamos
a passos largos nesses rumos, navegamos nas vagas desse mar e nas vagas desse trafegar oceânico pelos descaminhos de
nossas aspirações e esquecimentos.
Essa
mãe é a família e a natural beleza da nossa moldura e mito, pátria e lar.
Oh,
espuma do mar eternamente e a pedra.
domingo, 14 de agosto de 2016
VIDA E GLORIA
Vida e glória
GRAVURA DE GOELDI
Rogel Samuel
Vida de monge? Vida gloriosa. A grande tarefa da vida: fazer o que aparece para ser feito.
Nada buscar tudo ter. O acontecimento glorioso da vida, tudo aquilo que é para ser vivido. O experimento da paz, a paz na ação, a paz ativa. Sem julgar que é bom ou mal, nada escolhe nem rejeita. Oh vida gloriosa sem outra dificuldade além do acontecimento diário de que cada coisa e cada fato é o que é, sem deslize. A maior glória do poder mágico é que as montanhas azuis, as colinas verdejantes. A luz da prática espiritual consiste nisso: levar água, juntar lenha. Quem consegue fazer sem pensar, avaliar, delirar já está na mais alta realização.
“Na minha vida diária não há nenhuma outra tarefa
Além do que acontece cair em minhas mãos.
Não escolho nada, não rejeito nada.
Em nenhuma parte há dificuldade, em nenhuma parte um deslize.
Eu não tenho nenhum outro emblema de minha glória
Além das montanhas e colinas sem uma mancha de pó.
Meu mágico poder e exercício espiritual consiste nisso:
Levar água e juntar lenha.”
(P'ang Chü-shih, A Idade Dourada do Zen 94, 304 n.5)
GRAVURA DE GOELDI
Rogel Samuel
Vida de monge? Vida gloriosa. A grande tarefa da vida: fazer o que aparece para ser feito.
Nada buscar tudo ter. O acontecimento glorioso da vida, tudo aquilo que é para ser vivido. O experimento da paz, a paz na ação, a paz ativa. Sem julgar que é bom ou mal, nada escolhe nem rejeita. Oh vida gloriosa sem outra dificuldade além do acontecimento diário de que cada coisa e cada fato é o que é, sem deslize. A maior glória do poder mágico é que as montanhas azuis, as colinas verdejantes. A luz da prática espiritual consiste nisso: levar água, juntar lenha. Quem consegue fazer sem pensar, avaliar, delirar já está na mais alta realização.
“Na minha vida diária não há nenhuma outra tarefa
Além do que acontece cair em minhas mãos.
Não escolho nada, não rejeito nada.
Em nenhuma parte há dificuldade, em nenhuma parte um deslize.
Eu não tenho nenhum outro emblema de minha glória
Além das montanhas e colinas sem uma mancha de pó.
Meu mágico poder e exercício espiritual consiste nisso:
Levar água e juntar lenha.”
(P'ang Chü-shih, A Idade Dourada do Zen 94, 304 n.5)
MEU PAI
MEU
PAI
Rogel Samuel
Um homem corta a grama
Do outro lado da rua.
Meu pai se foi há muitos anos,
Mas a lembrança dele me desperta.
Vem de certa cena antiga
Onde aparece com seu sorrir
E o mesmo jogo de andar
Lançando os braços para trás.
Um homem corta a grama no seu quintal.
E muito tempo se passou
E não sei por que subitamente
Choro sua morte.
Tudo está em seu lugar
E por que me vejo triste?
Meu pai já não existe
Ele se decompôs no ar.
Um velho corta a grande grama
Da outra margem desta rua.
(Walden, New York, julho 2003)
FOTO DE "ANANDA"
ÚLTIMA BARCA DE MEU PAI
Rogel Samuel
Um homem corta a grama
Do outro lado da rua.
Meu pai se foi há muitos anos,
Mas a lembrança dele me desperta.
Vem de certa cena antiga
Onde aparece com seu sorrir
E o mesmo jogo de andar
Lançando os braços para trás.
Um homem corta a grama no seu quintal.
E muito tempo se passou
E não sei por que subitamente
Choro sua morte.
Tudo está em seu lugar
E por que me vejo triste?
Meu pai já não existe
Ele se decompôs no ar.
Um velho corta a grande grama
Da outra margem desta rua.
(Walden, New York, julho 2003)
FOTO DE "ANANDA"
ÚLTIMA BARCA DE MEU PAI
PAXIÚBA
QUATRO: PAXIÚBA.
E CHEGA que alguém diz: “Bons dias” (a voz como era?) - sim, que quem se introduz nesta estória e então fala é o enorme bugre caboclo Paxiúba, naquela época com cerca de dezenove anos, mas já bem dotado de grande, de fome, de alto, de um metro e noventa e dois de altura, ah, bem me lembro inteiro dele sim, a gente fica velho mas, antes de morrer, a memória a gente aviva, e nela vive, até o tampo do tempo nos apagar, gatão lustroso que passa sua língua, nada, no para, o esquecido, tal que logo desaparecemos que vai ser como se nem nunca tivéssemos existido, nem mesmo como personagem de ficção que é o que é. Mas o olho burro tudo vê, e registra - mosca da vida sobre a rosa de sangue e da conversa vã. Pois sim. Que diz-que Paxiúba era filho de um negro barbadiano da Madeira-Mamoré com uma índia Caxinauá que não conheci, e se tomou lendário e eterno - ele-mesmo se aproximando assim, remando silencioso e feroz pela face da manhã, no luxo de frente do porto do Laurie Costa, que ficava na margem esquerda do Igarapé do Inferno, submerso e distribuído pelo prestigioso vale.
Pois se aproximava somente para dizer: “Bons dias”, e assim se referia a uma certa e acocorada Zilda, esposa do Laurie Costa, lavadeira das roupas, agachada sobre a prancha lisa, lixiviada, de Itaúba, tabuão de sabão, - ela nem o tinha visto e pressentido em suas costas feito um jacaré inteiro estirado imenso - Paxiúba na montaria, espetáculo bom de ver, mas literário, mas enorme de belo, que já o conheci assim, escuro caboclo e tigre, grandão, desenvolto, olho de cobra, de bicho, poderosamente selvagem, no vivo, no ensolarado do olho amarelo, luminoso, feroz, sobre musculatura nobre de dar inveja às estátuas do Louvre, erguida cabeça sobre o pescoço grosso, sólido, de muito viva, e guerreira, assassina, arisca subjetividade - era assim que ele vinha, cínico, atravessador, a ninguém poupando ou aturando, nem a juiz, como se dissesse: “te conheço: sei quem és” - o certo da culpa, gesto indecente e ameaçador, de assustar policial - seu poder vinha do cheiro de camaru que arrancava da vítima fácil confissão antecipada, sim, enfraquecia e anestesiava a gente, nos dando um sono sob seu pulso, que se sabia dele em quem nunca se pôde confiar - impondo mole aquilo que o sustentava nos seus sangrentos desígnios e poderes, saberes e prazeres, o que encontrava no fundo de nós-mesmos, arrancados e submetidos à acessibilidade, ah, o bruto, mas fundamental, da impressão fugidia para a certeza, correta e culposa, que coage, que oprime, na lógica da nossa tenebrosa região infantil, a revelar-se, impelida, à força hipnótica, para fora, para novas submissões, e sorrisos, se infiltrando nas fendas do poder de onde imperava, ardiloso e interno, na interseção vazia e na interdição da resposta, na inversão das forças a ré, malandragem desmascarava única nobreza, qualquer dignidade sobrevivente: “Diga sua verdade” - era a linguagem da ordem de seus olhos no risco do seu sorriso sensual e perverso, sublinhado por esboço de pecado que nos fotografava, que nos dizia, no espelho avaliado das baixezas. Paxiúba era bom de não se encontrar de repente, na estrada deserta. Exigia prudência, medo e prática muda da obscura familiaridade com a ternura se via na transmissão de seu segredo. Em uma palavra: explícito. Quando se retirava, a gente se persignava. Porque se efetivava guerreiro de épocas irregulares, de tempo inverso, remotíssimos mecanismos ardilosos, das possibilidades do corpo, privilegiadas, sexuais, capazes de muito realizar, sedimentando o músculo vivo e assumido. Paxiúba, emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva. E a montaria, transpostos os espaços da vigilância, esbarrava nela, na prancha do cais onde Zilda lavava roupa branca e pura, iluminada, a espuma saindo e se indo assim de sabões e bolhas de vidro, se esparzindo na bordadura branca da superfície do rio espelhado de sol e na purificação religiosa da água.
sábado, 13 de agosto de 2016
Maria Caxinauá
Maria Caxinauá
NEUZA MACHADO
Aquele caminhar ficcional de dentro para fora, aquele percorrer pelos infernais e mortíferos caminhos fluviais do Amazonas (um Caronte pós-moderno), que custou ao escritor dez anos de pesquisas históricas e reformulações narrativas, para a elaboração de sua proposta de criação ficcional (sem nenhuma dúvida, uma diferenciada criação ficcional), favoreceu ao narrador principal, aquele que viria em seguida, a possibilidade de singular rendimento ficcional e de fixar as bases verossímeis de seu ato de narrar, para, com este favorecimento ímpar, convencer o leitor do valor de sua Verdade.
No segundo instante metafísico, suspenso entre o antes e o depois[liii], no momento de um segundo renovado impasse narrativo (o primeiro foi depois da morte dos “parentes” e o surgimento de Paxiúba, o conhecimento do arcabouço mítico silvícola e universal, de dentro para fora), surge o comando de Maria Caxinauá, enviando-o para Manaus (o retorno de fora para dentro). O Manixi ficcional já estava em ruínas, acenando para a possibilidade de um final narrativo não condizente com as propostas criativas do segundo narrador. O acionamento da figura mítica de Maria Caxinauá foi de fundamental importância, porque foi, por intermédio dela, que o narrador principal intuiu/intui a finalização de seu romance. Neste segundo e último impasse narrativo, novamente evidencia-se a extraordinária força do arcabouço mítico (repito, agora de fora para dentro). A deusa lunar Maria Caxinauá reenviou o personagem Ribamar até às citadinas dimensões interiorizadas e ensolaradas de Manaus (a guardiã das trevas do Manixi, a plenipotenciária das mortes dos algozes de seu povo, os seus próprios cruéis carcereiros, a poderosa agenciadora da destruição do Manixi - destruição da dimensão infernal da Floresta -, cuja missão mítico-ficcional foi/é representar seu povo, dominado por potências estrangeiras, e destruí-las), foi exatamente ela a induzir o personagem-narrador a buscar “o dinamismo dos corredores e dos labirintos da imaginação dinâmica”[liv] de quem narra.
Por que Maria Caxinauá incentivou Ribamar de Sousa a mudar-se para Manaus? Não há como negar o fato de que ela, a Maria Caxinauá, escolheu o seu máximo vingador. E este rigoroso vingador teria de ser um representante do povo (o primeiro narrador-personagem), o ungido, o assinalado pelo narrador principal para destronar as familiares potências capitalistas estrangeiras que sugaram as reservas produtivas do Estado do Amazonas (e, por extensão, do Brasil, e dos Países do chamado Terceiro Mundo) e, assim, por acréscimo, teria de ser ele, o Ribamar de Sousa, o representante da burguesia manauara da segunda metade do século XX, o escolhido para reerguer a moral de seus desesperançados e escravizados parentes retirantes e dos indígenas martirizados, fossem eles Caxinauás ou não. No titânico e histórico duelo entre classes sociais discordantes, o representante do povo - dos subjugados retirantes nordestinos e dos índios dizimados - haveria de sair vencedor, de acordo com as novas leis da recente pós-modernidade socialista.
O fogo da labareda da serpente
Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel
NEUZA MACHADO
Aquele caminhar ficcional de dentro para fora, aquele percorrer pelos infernais e mortíferos caminhos fluviais do Amazonas (um Caronte pós-moderno), que custou ao escritor dez anos de pesquisas históricas e reformulações narrativas, para a elaboração de sua proposta de criação ficcional (sem nenhuma dúvida, uma diferenciada criação ficcional), favoreceu ao narrador principal, aquele que viria em seguida, a possibilidade de singular rendimento ficcional e de fixar as bases verossímeis de seu ato de narrar, para, com este favorecimento ímpar, convencer o leitor do valor de sua Verdade.
No segundo instante metafísico, suspenso entre o antes e o depois[liii], no momento de um segundo renovado impasse narrativo (o primeiro foi depois da morte dos “parentes” e o surgimento de Paxiúba, o conhecimento do arcabouço mítico silvícola e universal, de dentro para fora), surge o comando de Maria Caxinauá, enviando-o para Manaus (o retorno de fora para dentro). O Manixi ficcional já estava em ruínas, acenando para a possibilidade de um final narrativo não condizente com as propostas criativas do segundo narrador. O acionamento da figura mítica de Maria Caxinauá foi de fundamental importância, porque foi, por intermédio dela, que o narrador principal intuiu/intui a finalização de seu romance. Neste segundo e último impasse narrativo, novamente evidencia-se a extraordinária força do arcabouço mítico (repito, agora de fora para dentro). A deusa lunar Maria Caxinauá reenviou o personagem Ribamar até às citadinas dimensões interiorizadas e ensolaradas de Manaus (a guardiã das trevas do Manixi, a plenipotenciária das mortes dos algozes de seu povo, os seus próprios cruéis carcereiros, a poderosa agenciadora da destruição do Manixi - destruição da dimensão infernal da Floresta -, cuja missão mítico-ficcional foi/é representar seu povo, dominado por potências estrangeiras, e destruí-las), foi exatamente ela a induzir o personagem-narrador a buscar “o dinamismo dos corredores e dos labirintos da imaginação dinâmica”[liv] de quem narra.
Por que Maria Caxinauá incentivou Ribamar de Sousa a mudar-se para Manaus? Não há como negar o fato de que ela, a Maria Caxinauá, escolheu o seu máximo vingador. E este rigoroso vingador teria de ser um representante do povo (o primeiro narrador-personagem), o ungido, o assinalado pelo narrador principal para destronar as familiares potências capitalistas estrangeiras que sugaram as reservas produtivas do Estado do Amazonas (e, por extensão, do Brasil, e dos Países do chamado Terceiro Mundo) e, assim, por acréscimo, teria de ser ele, o Ribamar de Sousa, o representante da burguesia manauara da segunda metade do século XX, o escolhido para reerguer a moral de seus desesperançados e escravizados parentes retirantes e dos indígenas martirizados, fossem eles Caxinauás ou não. No titânico e histórico duelo entre classes sociais discordantes, o representante do povo - dos subjugados retirantes nordestinos e dos índios dizimados - haveria de sair vencedor, de acordo com as novas leis da recente pós-modernidade socialista.
O fogo da labareda da serpente
Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel
quinta-feira, 11 de agosto de 2016
O além narrativo
O além narrativo
Neuza Machado
A barca do Caronte/Narrador Ribamar de Sousa vai singrando desafiadoramente em direção ao Igarapé do Inferno. Que é o Igarapé do Inferno? Seria o rio/“Inferno” de Dante Alighieri localizado no Amazonas? Seria um rio-Inferninho localizado nos limites do fim do mundo da floresta amazonense? Uma região do deus-me-livre onde nenhum humano conseguiu colocar os pés, a não ser o personagem ficcional Pierre Bataillon e sua família, os seus subordinados brancos, caboclos, bugres e índios, acrescentando o contra-ponto das visitas esporádicas de Frei Lothar, representante de uma religiosidade cristã há muito afastada das primitivas leis disciplinatórias da Igreja de Cristo?
De acordo com a minha assertiva anterior, o Caronte/Pierre Bataillon (assim como o Ribamar de Sousa) é o barqueiro-guardião do mistério númico. Para solucioná-lo, Pierre Bataillon (acompanhado pelo narrador Ribamar de Sousa, momentaneamente atingido pelos valores do inconsciente do narrador principal) avançou “na parte mais secreta da floresta”, penetrou a região dos Numas, de barco (imaginário que seja), costeou “os limites imprecisos da morte”, ofereceu miçangas e outros objetos aos Numas e estes não aceitaram a oferenda (ritual mítico-religioso), e, assim, os Numas continuaram Numes (seres espiritualizados), e Pierre, apesar da recusa numística, postou-se poderosamente humanizado, tornou-se o guardião de um segredo concernente ao homem da floresta - o índio, o retirante nordestino, o caboclo e o bugre - enquanto personalidade ativada.
Então, vou ao mistério: Pierre Bataillon dominava o homem da floresta (o povo silvícola subjugado residente no Manixi), mas não pode dominar os Numas enquanto seres espiritualizados. E eis a pergunta a incomodar a História do grandioso Amazonas, a História do imenso Brasil, a incomodar principalmente o(s) narrador(es) ficcionais pós-modernos: Como um pequenino estrangeiro europeu, pode dominar a nação Caxinauá (nação silvícola brasileira) e não conseguiu dominar os Numas/Numes (espaço universal)? “Entre a tropa de guerra [os Caxinauás domesticados de Pierre Bataillon] e a floresta dos Numas se estabelecia uma reciprocidade tática de respeito e de raivas”. A “tropa de guerra” já não possuía a floresta como lar, seus componentes, os Caxinauás domesticados, submissos a um tirano pré-capitalista, eram a milícia da “floresta”/prisão de Pierre Bataillon. “Os Numas, não”. Os voluntariosos Numas ainda tinham a Floresta do Fim do Mundo como lar, pois eram livres. Por tais motivos, não havia canal entre o Manixi social e os Numas/Numes, enquanto dimensões substanciais diferentes, alternadas e não compatibilizadas.
O fogo da labareda da serpente (Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel)
Neuza Machado
A barca do Caronte/Narrador Ribamar de Sousa vai singrando desafiadoramente em direção ao Igarapé do Inferno. Que é o Igarapé do Inferno? Seria o rio/“Inferno” de Dante Alighieri localizado no Amazonas? Seria um rio-Inferninho localizado nos limites do fim do mundo da floresta amazonense? Uma região do deus-me-livre onde nenhum humano conseguiu colocar os pés, a não ser o personagem ficcional Pierre Bataillon e sua família, os seus subordinados brancos, caboclos, bugres e índios, acrescentando o contra-ponto das visitas esporádicas de Frei Lothar, representante de uma religiosidade cristã há muito afastada das primitivas leis disciplinatórias da Igreja de Cristo?
De acordo com a minha assertiva anterior, o Caronte/Pierre Bataillon (assim como o Ribamar de Sousa) é o barqueiro-guardião do mistério númico. Para solucioná-lo, Pierre Bataillon (acompanhado pelo narrador Ribamar de Sousa, momentaneamente atingido pelos valores do inconsciente do narrador principal) avançou “na parte mais secreta da floresta”, penetrou a região dos Numas, de barco (imaginário que seja), costeou “os limites imprecisos da morte”, ofereceu miçangas e outros objetos aos Numas e estes não aceitaram a oferenda (ritual mítico-religioso), e, assim, os Numas continuaram Numes (seres espiritualizados), e Pierre, apesar da recusa numística, postou-se poderosamente humanizado, tornou-se o guardião de um segredo concernente ao homem da floresta - o índio, o retirante nordestino, o caboclo e o bugre - enquanto personalidade ativada.
Então, vou ao mistério: Pierre Bataillon dominava o homem da floresta (o povo silvícola subjugado residente no Manixi), mas não pode dominar os Numas enquanto seres espiritualizados. E eis a pergunta a incomodar a História do grandioso Amazonas, a História do imenso Brasil, a incomodar principalmente o(s) narrador(es) ficcionais pós-modernos: Como um pequenino estrangeiro europeu, pode dominar a nação Caxinauá (nação silvícola brasileira) e não conseguiu dominar os Numas/Numes (espaço universal)? “Entre a tropa de guerra [os Caxinauás domesticados de Pierre Bataillon] e a floresta dos Numas se estabelecia uma reciprocidade tática de respeito e de raivas”. A “tropa de guerra” já não possuía a floresta como lar, seus componentes, os Caxinauás domesticados, submissos a um tirano pré-capitalista, eram a milícia da “floresta”/prisão de Pierre Bataillon. “Os Numas, não”. Os voluntariosos Numas ainda tinham a Floresta do Fim do Mundo como lar, pois eram livres. Por tais motivos, não havia canal entre o Manixi social e os Numas/Numes, enquanto dimensões substanciais diferentes, alternadas e não compatibilizadas.
O fogo da labareda da serpente (Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel)
sábado, 6 de agosto de 2016
CARTA DE FERNANDO PESSOA
Fernando Pessoa
[Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935]
[Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 Jan. 1935]
Caixa Postal 147
Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.
Meu prezado Camarada:
Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.
Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.
Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.
Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.
Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas — , englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.
Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária — da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.
(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha — e fará bem em supor, porque é verdade — que estou simplesmente falando consigo).
Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.
Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem» , que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista, essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente). Depois — e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia — tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.
Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!
Creio que respondi à sua primeira pergunta.
Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo... E tenho saudades deles.
(Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar — , custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).
Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.
Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeiro de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o que é facto — que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.
Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.
Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.
Fernando Pessoa
Caixa Postal 147
Lisboa, 13 de Janeiro de 1935.
Meu prezado Camarada:
Muito agradeço a sua carta, a que vou responder imediata e integralmente. Antes de, propriamente, começar, quero pedir-lhe desculpa de lhe escrever neste papel de cópia. Acabou-se-me o decente, é domingo, e não posso arranjar outro. Mas mais vale, creio, o mau papel que o adiamento.
Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que nunca eu veria «outras razões» em qualquer coisa que escrevesse, discordando, a meu respeito. Sou um dos poucos poetas portugueses que não decretou a sua própria infalibilidade, nem toma qualquer crítica, que se lhe faça, como um acto de lesa-divindade. Além disso, quaisquer que sejam os meus defeitos mentais, é nula em mim a tendência para a mania da perseguição. À parte isso, conheço já suficientemente a sua independência mental, que, se me é permitido dizê-lo, muito aprovo e louvo. Nunca me propus ser Mestre ou Chefe-Mestre, porque não sei ensinar, nem sei se teria que ensinar; Chefe, porque nem sei estrelar ovos. Não se preocupe, pois, em qualquer ocasião, com o que tenha que dizer a meu respeito. Não procuro caves nos andares nobres.
Concordo absolutamente consigo em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz com um livro da natureza de «Mensagem». Sou, de facto, um nacionalista místico, um sebastianista racional. Mas sou, à parte isso, e até em contradição com isso, muitas outras coisas. E essas coisas, pela mesma natureza do livro, a «Mensagem» não as inclui.
Comecei por esse livro as minhas publicações pela simples razão de que foi o primeiro livro que consegui, não sei porquê, ter organizado e pronto. Como estava pronto, incitaram-me a que o publicasse: acedi. Nem o fiz, devo dizer, com os olhos postos no prémio possível do Secretariado, embora nisso não houvesse pecado intelectual de maior. O meu livro estava pronto em Setembro, e eu julgava, até, que não poderia concorrer ao prémio, pois ignorava que o prazo para entrega dos livros, que primitivamente fora até fim de Julho, fora alargado até ao fim de Outubro. Como, porém, em fim de Outubro já havia exemplares prontos da «Mensagem», fiz entrega dos que o Secretariado exigia. O livro estava exactamente nas condições (nacionalismo) de concorrer. Concorri.
Quando às vezes pensava na ordem de uma futura publicação de obras minhas, nunca um livro do género de «Mensagem» figurava em número um. Hesitava entre se deveria começar por um livro de versos grande — um livro de umas 350 páginas — , englobando as várias subpersonalidades de Fernando Pessoa ele mesmo, ou se deveria abrir com uma novela policiária, que ainda não consegui completar.
Concordo consigo, disse, em que não foi feliz a estreia, que de mim mesmo fiz, com a publicação de «Mensagem». Mas concordo com os factos que foi a melhor estreia que eu poderia fazer. Precisamente porque essa faceta — em certo modo secundária — da minha personalidade não tinha nunca sido suficientemente manifestada nas minhas colaborações em revistas (excepto no caso do Mar Português parte deste mesmo livro) — precisamente por isso convinha que ela aparecesse, e que aparecesse agora. Coincidiu, sem que eu o planeasse ou o premeditasse (sou incapaz de premeditação prática), com um dos momentos críticos (no sentido original da palavra) da remodelação do subconsciente nacional. O que fiz por acaso e se completou por conversa, fora exactamente talhado, com Esquadria e Compasso, pelo Grande Arquitecto.
(Interrompo. Não estou doido nem bêbado. Estou, porém, escrevendo directamente, tão depressa quanto a máquina mo permite, e vou-me servindo das expressões que me ocorrem, sem olhar a que literatura haja nelas. Suponha — e fará bem em supor, porque é verdade — que estou simplesmente falando consigo).
Respondo agora directamente às suas três perguntas: (1) plano futuro da publicação das minhas obras, (2) génese dos meus heterónimos, e (3) ocultismo.
Feita, nas condições que lhe indiquei, a publicação da «Mensagem» , que é uma manifestação unilateral, tenciono prosseguir da seguinte maneira. Estou agora completando uma versão inteiramente remodelada do Banqueiro Anarquista, essa deve estar pronta em breve e conto, desde que esteja pronta, publicá-la imediatamente. Se assim fizer, traduzo imediatamente esse escrito para inglês, e vou ver se o posso publicar em Inglaterra. Tal qual deve ficar, tem probabilidades europeias. (Não tome esta frase no sentido de Prémio Nobel imanente). Depois — e agora respondo propriamente à sua pergunta, que se reporta a poesia — tenciono, durante o verão, reunir o tal grande volume dos poemas pequenos do Fernando Pessoa ele mesmo, e ver se o consigo publicar em fins do ano em que estamos. Será esse o volume que o Casais Monteiro espera, e é esse que eu mesmo desejo que se faça. Esse, então, será as facetas todas, excepto a nacionalista, que «Mensagem» já manifestou.
Referi-me, como viu, ao Fernando Pessoa só. Não penso nada do Caeiro, do Ricardo Reis ou do Álvaro de Campos. Nada disso poderei fazer, no sentido de publicar, excepto quando (ver mais acima) me for dado o Prémio Nobel. E contudo — penso-o com tristeza — pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental, vestida da música que lhe é própria, pus em Álvaro de Campos toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida. Pensar, meu querido Casais Monteiro, que todos estes têm que ser, na prática da publicação, preteridos pelo Fernando Pessoa, impuro e simples!
Creio que respondi à sua primeira pergunta.
Se fui omisso, diga em quê. Se puder responder, responderei. Mais planos não tenho, por enquanto. E, sabendo eu o que são e em que dão os meus planos, é caso para dizer, Graças a Deus!
Passo agora a responder à sua pergunta sobre a génese dos meus heterónimos. Vou ver se consigo responder-lhe completamente.
Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histero-neurasténico. Tendo para esta segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriarmente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos — felizmente para mim e para os outros — mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo — os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher — na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas — cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem — e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais; assim tudo acaba em silêncio e poesia...
Isto explica, tant bien que mal, a origem orgânica do meu heteronimismo. Vou agora fazer-lhe a história directa dos meus heterónimos. Começo por aqueles que morreram, e de alguns dos quais já me não lembro — os que jazem perdidos no passado remoto da minha infância quase esquecida.
Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos). Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar.
Lembro, assim, o que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou, antes, o meu primeiro conhecido inexistente — um certo Chevalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos nitidez, de uma outra figura, cujo nome já me não ocorre mas que o tinha estrangeiro também, que era, não sei em quê, um rival do Chevalier de Pas... Coisas que acontecem a todas as crianças? Sem dúvida — ou talvez. Mas a tal ponto as vivi que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço para me fazer saber que não foram realidades.
Esta tendência para criar em torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu sou, ou a quem suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente, como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava, e cuja figura — cara, estatura, traje e gesto — imediatamente eu via diante de mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, oiço, sinto, vejo. Repito: oiço, sinto vejo... E tenho saudades deles.
(Em eu começando a falar — e escrever à máquina é para mim falar — , custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz).
Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis).
Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro — de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira — foi em 8 de Março de 1914 — acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.
Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir — instintiva e subconscientemente — uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos — a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.
Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.
Quando foi da publicação de «Orpheu», foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema «antigo» do Álvaro de Campos — um poema de como o Álvaro de Campos seria antes de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos, conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto com o seu mestre Caeiro. Foi dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive que desenvolver. Mas, enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão...
Creio que lhe expliquei a origem dos meus heterónimos. Se há porém qualquer ponto em que precisa de um esclarecimento mais lúcido — estou escrevendo depressa, e quando escrevo depressa não sou muito lúcido — , diga, que de bom grado lho darei. E, é verdade, um complemento verdadeiro e histérico: ao escrever certos passos das Notas para recordação do meu Mestre Caeiro, do Álvaro de Campos, tenho chorado lágrimas verdadeiras. É para que saiba com quem está lidando, meu caro Casais Monteiro!
Mais uns apontamentos nesta matéria... Eu vejo diante de mim, no espaço incolor mas real do sonho, as caras, os gestos de Caeiro, Ricardo Reis e Alvaro de Campos. Construi-lhes as idades e as vidas. Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro do dia e mês, mas tenho-os algures), no Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em 1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu quase toda a sua vida no campo. Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (às 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes; e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora, está certo). Este, como sabe, é engenheiro naval (por Glasgow), mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso), não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mas seco. Álvaro de Campos é alto (1,75 m de altura, mais 2 cm do que eu), magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada todos — o Caeiro louro sem cor, olhos azuis; Reis de um vago moreno mate; Campos entre branco e moreno, tipo vagamente de judeu português, cabelo, porém, liso e normalmente apartado ao lado, monóculo. Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma — só instrução primária; morreram-lhe cedo o pai e a mãe, e deixou-se ficar em casa, vivendo de uns pequenos rendimentos. Vivia com uma tia velha, tia-avó. Ricardo Reis, educado num colégio de jesuítas, é, como disse, médico; vive no Brasil desde 1919, pois se expatriou espontaneamente por ser monárquico. É um latinista por educação alheia, e um semi-helenista por educação própria. Álvaro de Campos teve uma educação vulgar de liceu; depois foi mandado para a Escócia estudar engenharia, primeiro mecânica e depois naval. Numas férias fez a viagem ao Oriente de onde resultou o Opiário. Ensinou-lhe latim um tio beirão que era padre.
Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê. (O meu semi-heterónimo Bernardo Soares, que aliás em muitas coisas se parece com Álvaro de Campos, aparece sempre que estou cansado ou sonolento, de sorte que tenha um pouco suspensas as qualidades de raciocínio e de inibição; aquela prosa é um constante devaneio. É um semi-heterónimo porque, não sendo a personalidade a minha, é, não diferente da minha, mas uma simples mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e a afectividade. A prosa, salvo o que o raciocínio dá de ténue à minha, é igual a esta, e o português perfeitamente igual; ao passo que Caeiro escrevia mal o português, Campos razoavelmente mas com lapsos como dizer «eu próprio» em vez de «eu mesmo», etc., Reis melhor do que eu, mas com um purismo que considero exagerado. O difícil para mim é escrever a prosa de Reis — ainda inédita — ou de Campos. A simulação é mais fácil, até porque é mais espontânea, em verso).
Nesta altura estará o Casais Monteiro pensando que má sorte o fez cair, por leitura, em meio de um manicómio. Em todo o caso, o pior de tudo isto é a incoerência com que o tenho escrito. Repito, porém: escrevo como se estivesse falando consigo, para que possa escrever imediatamente. Não sendo assim, passariam meses sem eu conseguir escrever.
Falta responder à sua pergunta quanto ao ocultismo (escreveu o poeta). Pergunta-me se creio no ocultismo. Feita assim, a pergunta não é bem clara; compreendo porém a intenção e a ela respondo. Creio na existência de mundos superiores ao nosso e de habitantes desses mundos, em experiências de diversos graus de espiritualidade, subtilizando até se chegar a um Ente Supremo, que presumivelmente criou este mundo. Pode ser que haja outros Entes, igualmente Supremos, que hajam criado outros universos, e que esses universos coexistam com o nosso, interpenetradamente ou não. Por estas razões, e ainda outras, a Ordem Extrema do Ocultismo, ou seja, a Maçonaria, evita (excepto a Maçonaria anglo-saxónica) a expressão «Deus», dadas as suas implicações teológicas e populares, e prefere dizer «Grande Arquitecto do Universo», expressão que deixa em branco o problema de se Ele é criador, ou simples Governador do mundo. Dadas estas escalas de seres, não creio na comunicação directa com Deus, mas, segundo a nossa afinação espiritual, poderemos ir comunicando com seres cada vez mais altos. Há três caminhos para o oculto: o caminho mágico (incluindo práticas como as do espiritismo, intelectualmente ao nível da bruxaria, que é magia também), caminho místico, que não tem propriamente perigos, mas é incerto e lento; e o que se chama o caminho alquímico, o mais difícil e o mais perfeiro de todos, porque envolve uma transmutação da própria personalidade que a prepara, sem grandes riscos, antes com defesas que os outros caminhos não têm. Quanto a «iniciação» ou não, posso dizer-lhe só isto, que não sei se responde à sua pergunta: não pertenço a Ordem Iniciática nenhuma. A citação, epígrafe ao meu poema Eros e Psique, de um trecho (traduzido, pois o Ritual é em latim) do Ritual do Terceiro Grau da Ordem Templária de Portugal, indica simplesmente — o que é facto — que me foi permitido folhear os Rituais dos três primeiros graus dessa Ordem, extinta, ou em dormência desde cerca de 1881. Se não estivesse em dormência, eu não citaria o trecho do Ritual, pois se não devem citar (indicando a ordem) trechos de Rituais que estão em trabalho.
Creio assim, meu querido camarada, ter respondido, ainda com certas incoerências, às suas perguntas. Se há outras que deseja fazer, não hesite em fazê-las. Responderei conforme puder e o melhor que puder. O que poderá suceder, e isso me desculpará desde já, é não responder tão depressa.
Abraça-o o camarada que muito o estima e admira.
Fernando Pessoa
1935
Escritos Íntimos, Cartas e Páginas Autobiográficas . Fernando Pessoa. (Introdução, organização e notas de Antoónio Quadros.) Lisboa: Publ. Europa-América, 1986.
- 199.
- 199.
AURORA
AURORA
AURORA
Rogel Samuel
Releio com assombro e delícia o poema “Aurora” de Adolfo Casais Monteiro de 1954:
“A poesia não é voz — é uma inflexão.
Dizer, diz tudo a prosa. No verso
nada se acrescenta a nada, somente
um jeito impalpável dá figura
ao sonho de cada um, expectativa
das formas por achar. No verso nasce
à palavra uma verdade que não acha
entre os escombros da prosa o seu caminho.
E aos homens um sentido que não há
nos gestos nem nas coisas:
voo sem pássaro dentro.”
(Adolfo Casais Monteiro in “Voo sem Pássaro Dentro”, 1954). Publicado por Maria Azenha, um marco na poesia da contemporaneidade, em:http://opodaescrita.blogspot.com/2008/06/aurora.html"A poesia não é voz — é uma inflexão", ou seja, um tom de voz, uma modalidade do dizer da voz. A poesia é uma modulação na voz. Quem diz é a prosa, no verso nada se diz, “nada se acrescenta a nada, somente / um jeito impalpável dá figura / ao sonho de cada um, expectativa / das formas por achar”. Depois, no poema, ele diz: “No verso nasce / à palavra uma verdade que não acha / entre os escombros da prosa o seu caminho”. Como vêem é pura estética, é teoria literária, no mais alto grau. Termina o seu poema reconhecendo o implacável: O homem não tem alma, não tem conteúdo, não tem destino, sentido e rumo – “E aos homens um sentido que não há nos gestos nem nas coisas: / vôo sem pássaro dentro.”
Adolfo Casais Monteiro sabia do que falava, pois ele era um excelente crítico literário. Em “Clareza e Mistério da Crítica”, de 1961, ele ataca o pedestal do maior crítico brasileiro, Afrânio Coutinho, razão por que foi odiado entre nós. Mas ele era um crítico independente e altivo! Foi perseguido por Salazar, refugia-se no Brasil, onde leciona Literatura Portuguesa. Em 1962, é professor titular em Araraquara. Mas morreu com 64 anos. Ele recebeu aquela famosa carta de Fernando Pessoa que hoje pode ser lida em:http://www.pessoa.art.br/?p=24
Professor visitante na Universidade de Wisconsin, em Madison, (1968/69), e na Universidade Vanderbilt (Nashville, Tennessee, 1969). Dele, disse Jorge de Sena: Homem de duas pátrias, soube, da maneira mais devotada e sensível, ser inteiramente fiel a ambas, para lá de todas as falácias do nacionalismo. Porque ele foi, acima de tudo e dos condicionalismos da vida, um cidadão do mundo em língua portuguesa, que é uma maneira de esse mundo não saber que possui tal cidadão, e de a língua, que o possui, presa aos seus provincialismos, não apreciar a grandeza que por ela se afirma e realiza. (Jorge de Sena).
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sexta-feira, 5 de agosto de 2016
120 poemas de Rogel Samuel
FOI ONTEM QUE TUDO ACONTECEU
NEUZA MACHADO
Rogel Samuel (Manaus, 1943) não é um novo poeta: Desde os anos 60 escreve e publica -já em 1965 era incluído na antologia de Anísio Melo, Lira Amazônica, publicada em São Paulo; e aparece também na Grande Enciclopédia da Amazônia (Belém, 1968) de Carlos Rocque. Publicou muitos poemas em revistas e jornais, ainda que a grande parte de sua obra permaneça inédita (cerca de 200 poemas). E é como poeta que hoje aparece na Enciclopédia da Literatura Brasileira (Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa, MEC). Por isso é que, quando finalmente ele publica os seus Poemas (Rio de Janeiro, 1990, 120 poemas, edição limitada a poucos exemplares, encadernados) insistimos em comentar a sua poesia.
Os Poemas de Rogel Samuel estariam inseridos numa nova proposta literária? Seriam características de uma fase de transição na literatura, ou estariam inaugurando (talvez, com outros poetas das duas últimas décadas) uma mudança na História da Arte da Poesia? Poesia lírica ou poesia épica? Poesia épico-lírica?
O certo é que seus versos são incomuns, e o incomum não é privilégio de todos. Por ser incomum, ainda não há como caracterizar sua obra poética. Que é uma narrativa (ou várias) não há dúvida. Narrativa fragmentada, como fragmentado é o homem do século XX. Narrativa-ruptura contra o instituído, o tradicional, inclusive, contra as antigas rupturas da forma poética. O sujeito poético trabalha-batalha com o não-dito e é uma operação de vida e de morte. Ele vive e morre e renasce a cada verso, porque, ao nascer, uma fénix pronunciou seu nome e apresentou-lhe o tesouro do "vazio criador". Um não ao preenchimento instituído. O preenchimento instituído não faz parte de seu fazer literário. Seus versos navegam águas profundas: " Não velejarás/ por viajar/ não velejarás/ entre as paredes más". Não às formas instituídas e sem vida. Sim ao direito de dizer não. Ao direito de escrever só para leitores eleitos; sim ao direito de "escrever tão pouco/ que o verso/ não perturbe o silêncio". Sim ao direito de escrever só "quando as dores (o) assaltarem/ que é quando as folhas das (?)/ colhem palavras do não".
Eis aqui o sujeito que não aceita escrever por escrever:
Não. Não escreverás um
só texto
mas o que for dito
e luminoso.
Sujeito fragmentado, porque não se adapta às leis da continuidade estabelecida. Sujeito fragmentado, porque quase toas as suas faces/fases não pertencem à realidade: sujeito extra-realidade.
O sujeito poético retorna no tempo, porque quer desvendar as formas conceituais que propiciam culpa e castigo; retorna no tempo, porque há fragmentos de seu ser ainda presos à realidade, e ele quer libertar-se, assumir o não-constituído.
O sujeito poético é narrativo e lírico, mas não é ficcional. Sua narrativa é verdadeia são suas verdades mais íntimas reveladas aos arrancos: verdades fragmentadas. O sujeito é lírico, mas seus versos não são líricos, são verdades. Sãp épicos. Nova epopéia. Epopéia de 80. Epopéia lírica, poruqe o sujeito é lírico. Os poemas não. Aqui, ao contrário, há a objectividade, porque a realidade dos poemas faz parte da história pessoal do sujeito poético: é realidade pura. O sujeito quer enunciar/anunciar algo que fez/faz parte de sua história pessoal. Narratica épica, épica não-tradicional, porque é a verdade do sujeito, suas experiências de vida como ser que se obriga a ter uma existência concreta. O lado concreto do sujeito poético. A vida é curta, "Vadiemos, pois".
Não há deuses. Criemo-los, pois. Criemos o mítico, no subjectivoda História. Se não há mais como passar além do eu, coloquemos um eu sublimado no centro da História, um eu experiente pluralizado. Não há lugar no mundo para o individualismo, naveguemos, pois todos unidos, Artistas e leitores privilegiados.Não há lugares para super-heróis, sejamos, pois todos, heróis de uma epopéia de seres marcados por vivências desencontradas. Seres, habitantes de um Mundo fragmentado. Não há o tempo épico tradicional, não há demarcações explícitas, porque o tempo não se faz distante. Foi ontem que tudo aconteceu. Foi ontem, mas se encontra distante, temporalmente, dentro do mundo literário do sujeito poético. Se se encontra distante literariamente, nada mais justo do que uma apresentação dos fatos históricos/subjectivos que marcaram a realidade do sujeito. Apresentação: essência do épico, segundo Staiger. Apresentação fragmentada, descontínua, trechos de uma história pessoal, relato que unifica, que se faz ouvir apenas no âmbito do poético. Não há tempo definido, a não ser por datas que pouco esclarecem. Não há espaço, porque o espaço é uno. Não há antes. Não há depois. Há dores. Há sofrimentos. Há angústias. Há o sentimentodo irrealizável. Fragmentos de um cotidiano rico e absoluto para o Poeta. O Absoluto não se encontra mais aquém e além da realidade. O sujeito poético encontrou seu Absoluto no literário é verdadeiro em-si, completo.
E é substancial enquanto expessão da alma.
Se a narrativa é fragmentada, a verdade é inteira. Não há mentiras. Só não vê quem não quer. Os leitores eleitos vêem.
O sujeito é um ser extra-realidade, que assume suas experiências de vida, experiências comunitárias. O sujeito mitificou-se, para produzir o épico. Não há mitos clássicos numa realidade fragmentada. O herói é o sujeito poético, único herói, despersonalizado, porque somatório. Soma de desvalidos existenciais, buscando uma História que os componha, buscando sobreviver no Caos, heroicamente.
"Deixa de / lastimação/ que amanhã/ não acordarás"/, heroi. "Por perto/ ronda o céu/ aberto/ que é necessário ao/ heróico fugir".
Fuga do herói. Busca de céu aberto, com todos os eleitos, se por ventura (ainda) existirem. Busca e, com ele, todas as experiências literárias que se encontram na História.
NEUZA MACHADO
(Doutora em Teoria Literária (UFRJ), Professora Universitária, autora de "O narrador toma a vez": sobre "A hora e a vez de Augusto Matraga" de Guimarães Rosa).
(Doutora em Teoria Literária (UFRJ), Professora Universitária, autora de "O narrador toma a vez": sobre "A hora e a vez de Augusto Matraga" de Guimarães Rosa).
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120 poemas de Rogel Samuel
quinta-feira, 4 de agosto de 2016
LEOPARDI
Leopardi
CANTO XIV - À LUA
Ó graciosa lua, bem me lembro
que, faz um ano já, sobre este outeiro,
cheio de angústia, eu vinha contemplar-te:
e pendias então sobre esta mata,
tal como agora, e inteira a iluminavas:
mas nebuloso e trêmulo do pranto
que em meus cílios manava o teu semblante
aos olhos me surgia, que era triste
a minha vida e ainda é, sem ter mudado,
ó tão querida lua. E entanto agrada-me
relembrar esse tempo e enumerar
os estados de minha dor. Oh, como
no tempo juvenil, quando ainda é longa
a esperança, e a memória ainda curta,
grato é lembrar as coisas que passaram,
mesmo que tristes e que as mágoas durem!
Giacomo Leopardi
CANTO XIV - À LUA
Ó graciosa lua, bem me lembro
que, faz um ano já, sobre este outeiro,
cheio de angústia, eu vinha contemplar-te:
e pendias então sobre esta mata,
tal como agora, e inteira a iluminavas:
mas nebuloso e trêmulo do pranto
que em meus cílios manava o teu semblante
aos olhos me surgia, que era triste
a minha vida e ainda é, sem ter mudado,
ó tão querida lua. E entanto agrada-me
relembrar esse tempo e enumerar
os estados de minha dor. Oh, como
no tempo juvenil, quando ainda é longa
a esperança, e a memória ainda curta,
grato é lembrar as coisas que passaram,
mesmo que tristes e que as mágoas durem!
Giacomo Leopardi
quarta-feira, 3 de agosto de 2016
Raymundo Freitas Pinto
Raymundo Freitas Pinto
POR ROGEL SAMUEL
POR ROGEL SAMUEL
Ele é um poeta hoje quase desconhecido, seus poemas publicados (ou não) nos jornais amazonenses de sua época. Freitas Pinto nasceu em 1887 e faleceu em 1966. Nasceu no Ceará, mas foi cedo para Manaus, estudou medicina na Bahia, onde se formou em odontologia. Depois foi fazer Pós-graduação nos Estados Unidos, na Filadélfia. Foi professor de odontologia na Universidade do Amazonas, a antiga (dizem que é a mais antiga do Brasil). Mas abandonou a odontologia, virou inventor, industrializou o guaraná. Quando o conheci, ele era professor de inglês. Foi meu professor de inglês no “Colégio Brasileiro”.
Grande poeta, homem culto, conhecedor de música clássica. Era um “gentleman”. Elegante, cabelos brancos. Não precisava pressionar a turma para impor-se: sua figura impressionava.
Sua poesia repercute o seu gosto musical, como nesse seu “Wagner”.
Ninfas coloridas em vertiginosa carreira,
Pentagramas de luz, escalam, deslumbradas,
Plasmando em fios cristalinos luminosa esteira
Onde, estonteantes, cabriolam gnomos e fadas
Pentagramas de luz, escalam, deslumbradas,
Plasmando em fios cristalinos luminosa esteira
Onde, estonteantes, cabriolam gnomos e fadas
Nas montanhas coroadas de neve, despertam
Cheios de cólera os deuses adormecidos
Que amedrontados gritam e exclamam
Numa ameaça aos céus e campos coloridos
Cheios de cólera os deuses adormecidos
Que amedrontados gritam e exclamam
Numa ameaça aos céus e campos coloridos
Um mundo cheio de sons extravagantes
Onde serpentes de fogo em ziguezagues ritmados
Beijam fugitivas libélulas faiscantes
Riscando o céu em galopes compassados
Onde serpentes de fogo em ziguezagues ritmados
Beijam fugitivas libélulas faiscantes
Riscando o céu em galopes compassados
Seu mundo poético está cheio de sonoridades, de luzes, de figuras exóticas, curiosas imagens de gnomos, de ninfas, num pentagrama de luzes em vários sentidos, a pauta musical de cinco linhas onde as divindades dos rios, dos bosques e das florestas correm vertiginosas, e os poderes mágicos das cinco letras, dos cinco sinais.
Sua poesia tem magia, fadas, mundos diferentes, com nevadas montanhas, coroadas de deuses que despertam cheios de cólera, que dormiam na paz dos altos cumes de Wagner, que descem dos céus num mundo cheio de sons extravagantes.
E dragões com as labaredas dançarinas beijam as libélulas faiscantes que fogem, e riscam o céu wagneriano no galope das valquírias que escolhem os cadáveres dos campos de batalha, mensageiras do deus da guerra, de Odim, deus da guerra e da sabedoria, ele que decidia a sorte dos soldados e das batalhas e aponta na refrega aqueles que deveriam morrer.
No “Bailado dos sons” a sinfonia continua, em silfos de fulvas cabeleiras no horizonte, velozes, nos quatro cantos do mundo, trombetas, clarins wagnerianos, apunhalando o espaço, despertando o universo com sonoridades em todas as latitudes, no Sul, no Norte, em todo lugar, amazônicos rios embalsamados e mortos que se reanimam, cristalinas castanholas que repercutem e vibram, ventos que assobiam, traiçoeiros, agressivos, bailarinos, embalando as nuvens, as chuvas, sobre a choupana de palha, cantos de vento sem palavras, músculos másculos salientes, bigorna ferida de revoltas, corações nos campanários, a imagística do poeta canta reza e chora, no mundo bronzeado nordestino, cemitérios solitários, tristes, com ciprestes batidos dos ventos, o poeta faz a natureza falar, o mar rosnar, zangado, gigantesco monstro verde, mar que é um ondear de violoncelo colossal.
Mesmo nas florestas altaneiras árvores vêm ao chão com estrondosa gargalhada sinistra em escala sincopada, tudo é sonoro. Tudo é musicalidade.
E no templo surdo, na quietude do templo, os lábios sussurram preces, que são notas brancas de suspenso lírios que se evaporam.
Mesmo a natureza se transforma nessa orquestra, pois na palmeira há canções da graúna que flauteia suas canções sertanejas, e até no cais, no barulhento cais, vozes de comando de dentro do fumo branco trazem uma nota triste de adeus.
Enfim todos os sons reunidos fazem da poesia de Freitas Pinto uma universal orquestra em aleluia instrumental e coral ao um panteísta deus.
Silfos de fulvas cabeleiras,
velozes,
esquadrinham os horizontes.
velozes,
esquadrinham os horizontes.
Trombetas, clarins
apunhalam o espaço,
despertando os sons em toda as latitudes.
apunhalam o espaço,
despertando os sons em toda as latitudes.
No extremo Norte,
rios embalsamados reanimam-se,
castanholas de cristal vibram.
rios embalsamados reanimam-se,
castanholas de cristal vibram.
No extremo Sul,
ventos traiçoeiros
agridem, balançam as nuvens, assobiam.
ventos traiçoeiros
agridem, balançam as nuvens, assobiam.
Na choupana de palha,
pequenina,
a chuva canta sozinha... canção sem palavras.
pequenina,
a chuva canta sozinha... canção sem palavras.
Músculos salientes,
malho suspenso,
bigorna ferida, reage, grito de revolta.
malho suspenso,
bigorna ferida, reage, grito de revolta.
Nos campanários
corações pulsam,
cantam, rezam, choram... sons bronzeados.
corações pulsam,
cantam, rezam, choram... sons bronzeados.
Ciprestes esguios,
solitários, tristes,
açoitados pelos ventos... gemem em surdina.
solitários, tristes,
açoitados pelos ventos... gemem em surdina.
O Mar, gigante verde,
sempre zangado,
murmura, rosna... ciclópico violoncelo
sempre zangado,
murmura, rosna... ciclópico violoncelo
Na floresta, lenho altaneiro
vem ao chão,
gargalhada sinistra... escala sincopada.
vem ao chão,
gargalhada sinistra... escala sincopada.
Na quietude do templo
lábios balbuciam,
notas brancas, lírios suspensos... evaporam-se.
lábios balbuciam,
notas brancas, lírios suspensos... evaporam-se.
Na copa da palmeira elegante
a graúna
flauteia, descuidada, canções sertanejas.
a graúna
flauteia, descuidada, canções sertanejas.
No cais barulhento,
vozes de comando,
dentro de uma fumaça branca uma nota triste "Adeus"
Todos os sons reunidos,
Orquestra universal,
instrumentos e vozes... Aleluia do Criador.
vozes de comando,
dentro de uma fumaça branca uma nota triste "Adeus"
Todos os sons reunidos,
Orquestra universal,
instrumentos e vozes... Aleluia do Criador.
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