A GARÇA
A GARÇA
Rogel Samuel
O sol na linha do horizonte é uma bola de fogo.Do outro lado está a Ilha do Fundão. E a lua. Estou indo para o aeroporto. O mar estende seu manto por toda parte. Uma leve aragem vem vindo devagar. Mas o calor se anuncia. Pássaros pelo ar sujo. Quando jovens, nadávamos naquela praia, hoje vala negra. No caminho do Galeão havia uma praia que desapareceu. Diziam que ali estavam as perigosas viúvas negras. Mortais. Meu amigo pescava ali. Fomos, pelo meio do capim, até uma outra ilha, hoje desaparecida. Na Freguesia havia um cinema de espelhos. Era o mais belo cinema do Rio. Havia espelhos de cristal até no teto. Os astros. À noite:
A gentileza da lua
no espelho das águas
brilha, nua.
Quando eu cheguei ao Rio, vindo do Norte, passei por ali. Trazia esperanças no bolso, a juventude dos dezoito anos. Tinha uma carta para o Diretor Comercial da TV Rio, escrita por sua irmã e minha amiga Alice Senna. Logo ganhei um emprego na Redação da TV, onde trabalhavam vários rapazes desconhecidos, hoje famosos. Mas não fiquei muito tempo no emprego, porque o trabalho era de noite e eu tinha aula na Faculdade pela manhã. A TV ficava no Posto Seis, defronte do mais belo mar. Foi lá que vi Juscelino pela primeira vez. Alguns anos depois ele falou na nossa FNFi. Entrou sob vaia. Demorou para conseguir iniciar. Sua fala durou uma hora. Depois respondeu às perguntas, todas contra. Não perdia o sorriso, a gentileza. Foi o homem mais educado que conheci. Saiu dando autógrafo.
Naquele mesmo salão devia falar Lacerda, como paraninfo da ala da Direita que se formava. Nós o impedimos de entrar. Fechamos as portas. Lá de cima, gritávamos: "assassino!" Lacerda, impaciente, do outro lado da rua, mandou que a PM arrombasse a porta. Nós chamamos o Exército! De Jango. Foi terrível: de um lado o Exército, armado. Do outro a PM, chefiado pelo Governador Lacerda. Penso que o Golpe de 64 nasceu ali, no meio da rua, em frente ao prédio da Faculdade Nacional de Filosofia, hoje Casa de Itália. Depois, os dois comandantes se encontraram e evitaram o pior. O Exército se retirava, e a PM também se retirava, mas sob grande vaia. Lacerda, inconformado, queria briga. Pouco tempo depois aquela mesma tropa invadiu o prédio, quebrou tudo, bateu e prendeu. Ainda bem que, naquele dia, eu não estava ali. Mas perdemos a máquina datilográfica do centro de estudos, e os discos clássicos da discoteca. Até mulher grávida apanhou.
A política daquele tempo era assim. Assisti a Jânio Quadros em Manaus, na sua campanha à Presidência. Havia um palanque montado em frente à nossa casa, na Getúlio. Primeiro falou Plínio Coelho, hoje ainda vivo. Tinha a voz nasal e era um famoso orador. Depois Jânio. Os grande olhos abertos, a voz rouca. Alucinado, abria os braços com que dominava tudo. Como Hitler, batia frenético na plataforma: "O Brasil... já tem idade... de deixar de viver... da caridade internacional!" Era um delírio.
Impressionante foi ouvir o velhíssimo Sobral Pinto na abertura das "Diretas-Já!" Já estava curvado, já era muito frágil. "Silêncio!", ele disse. "Peço silêncio! Quero falar em nome do povo do Brasil!"
A branca e bela garça sobrevoa e baila, alcançando o escuro campo onde reina. Será mesmo uma garça? Ou será uma deusa tecida de estrelas? A massa de sua luz no céu subitamente se abre e desce, sobre a penumbra do Universo. E eu me esqueço. Me esqueço.
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