NUMAS: ONDE HÁ RESISTÊNCIA, HÁ PODER?
Francisca de Lourdes Souza Louro (UEA)
Resumo: O amante das Amazonas(2005),de Rogel Samuel, é um romance composto de vinte e três capítulos deforma bastante incomum, todos enumerados em modelo cardinal, porém, destaca-se na leitura de todo o textoque este autor, prima também pelo inusitado e o diferente. Escolheu-se o capítulo de número “Três – NUMAS” – por nos surpreendercom a beleza ímpar e com a forma particular de inventar a narrativa. Samuel articulaa obra com especial característica de linguagem barroca nos primeiroscapítulos e, na representação idílica da natureza, o arcadismo está visceralmente presente na paisagem por ele desenhada, para dar contorno de realidade. Escolheu-se, para analisar o processo poético desta leitura a Hermenêutica Filosófica de Paul Ricoeur, por responder à necessidade, sentida, pelo advento da reflexão sobre a comunicação, história e a ação, de redefinir as condições do pensamento da alteridade.
Palavras-chave: Narrativa; Numa; Paraíso; Seringal; Amazônia.
INTRODUÇÃO
A verdade é que livros determinados emprestam
certas características a leitores
determinados (MANGUEL, p.30).
Sem narrativa não há acesso ao tempo, tal é o pressuposto de como encontrei coragem de ler e analisar o texto de Rogel Samuel, mesmo sabendo que ele poderá ser meu algoz se não estiver bem feito. Sim, ele já foi meu professor em algum tempo do passado, isso me dáa certeza de que ele me ensinou muitas coisas, inclusive, ler e saber o limite da interpretação que as palavras sugerem. O coração está transtornado de alegria e, para falar a verdade, sei o peso que o texto tem, e, por isso, ouso desafiar o autor a me perdoar caso vacile no desacerto do contexto.
E, inicio com os questionamentos do narrador, ou são nossos? Como podem as palavras impactar o mundo do leitor? Ou é a Filosofia com arte que faz esse esforço dentro da linguagem de advogar e tomar posição importante e consequente? A carreira do texto subtrai-se ao horizonte finito vivido pelo seu autor. Hoje, porém, o que o texto significa interessa agora mais do que o autor quis dizer quando o escreveu. Literatura é um mundo de palavras, melhor, usarei o narrador que assevera “a poesia apronta um mundo, a prosa outro” (SAMUEL,2005, p.32), é este “outro mundo”,humano,criado na prosa, que os Numas vão ressurgir para antagonizar o outro invasor, Pierre Batallion. Sim, invasores, os Numas também chegaram de longe e se impuseram na severidade de ações dominantes de arte e terror para a sobrevivência.“Dez anos depois, voltando os Numas das montanhas peruana, o quadro mudou molecularmente” (SAMUEL, 2005,p. 25). O narrador (Ribamar de Sousa) é um adolescente viajante que saiu de Pernambuco até o Amazonas buscando refúgio e trabalho. A viagem é um diário de bordo, vai mapeando os horizontes encontrados, nominando os lugares e as pessoas. “Confesso (que todo este livro é a confissão de minha vida) uma família fodida e quebrada, assim que depois vi, me deixava sozinho, comigo, no horror de Deus” (SAMUEL,2005, p.14).
Embora o romance tenha destruído o mito e a epopeia, mas, fala-se nos nossos dias do retorno do romance ao mito. Esse retorno, cuja importância é capital para a nossa civilização, não entra no âmbito da nossa investigação, nem o antigo “Romantismo” alencariano, mas trago Francisco Gomes de Amorim, com a obra Os selvagens (1875)que, “quase”, na mesma perspectiva, trouxe, também, a questão da identidade dos índios na Amazônia. “É necessário re-descobrir a influência dos relatos na configuração de identidades e por meio deles o conjunto de laços e raízes que condicionam a possibilidade da humanidade racionalidade” (PORTOCARRERO, 2005, p.59).
... os tapajós traziam presentes na memória os motivosda sua expatriação, e a necessidade obrigou-os a aproveitar a lição recebida dos conquistadores do Peru. Expulsos, roubados e tratados cruelmente, expulsaram, roubaram e aniquilaram por sua vez os habitantes das regiões em que iam penetrando...Senhores da duas margens do rio, que deles tomou então o nome de Tapajós que tomaram emprestado o nome do rio que fugiram do atroz colonizador.Das duas raças tapajós e tupis, misturadas desse modo, pretende descender a maior parte dos índios, que atualmente habitam a vasta região compreendida entre o Madeira, o Juruena e o Tapajós; porém, os mundurucus deste último rio julgam ter mais do que ninguém indisputável direito a tão ilustre origem(AMORIM, 2004, p. 21-22).
Este aspecto teórico da literatura vai mais diretamente se inspirar na sociologia e na geografia do texto que vê estas particularidades do romance, e esse processo de mutação não dá uma forma conclusa como os outros gêneros literários. Para Ricoeur (1995),a “Orientação no mundodescreve que o laborioso nascimento do existente humano está nos limites dos saberes positivo”.Ainda, segundo Ricoeur,
A noção de trazer a experiência é a condição ontológica da referência, uma condição refletida dentro da linguagem como um postulado que não tem justificação imanente; o postulado segundo o qual pressupomos a existência de coisas singulares que identificamos (RICOEUR, 1976, p. 32).
“Onde há poder, ele se exerce? Para mim elas estavam uma na outra, se abraçando dentro d’água por baixo o que era tão fácil as mãozinhas tal como eu enxergava na minha perspectiva sexualizada. Reais, humanamente reais, lá, do outro lado - as primeiras fêmeas Numas que apareceram em todo o mundo, belas como o sol sobre a risca da Terra.E eu sufoquei de emoção. E fui largando o anzol. E fui empurrado, abaixado chulo sobre a terra, e protegido pelo capão de mato. Era o êxtase! (SAMUEL, 2005, p.32).
No textoTeoria e política da ironia de Linda Hutcheon (2000,p.16), encontrei que [...] “a ironia possui uma aresta avaliadora e consegue provocar respostas emocionais dos que a “pegam””, nosso problema não é pegar e tratar da ironia, no texto, mas perceber que poderia o narrador induzir o leitor a esse viés, e vemos, nesta cena do capitulo Três, uma força com enorme significado verbal e estrutural no desenvolvimento da civilização deste espaço amazônico.
Sem exagero, pode-se dizer que nesta obra a paisagem apresentada é discutível, pelos olhos do narrador, um de fora, um invasor do espaço reservado aos Numas, índios “arredios, móveis, vigilantes, foragidos dos Andes, empurrados por perigoso inverno, permaneceram perdidos e livres, animais persistentes, se impuseram como resistência. Não e não. Reagiram ao pacto, ao toque, ao contato”(SAMUEL,2005,p.25).
“Onde há resistência, há poder?”(SAMUEL,2005, p.25). Sim, havia o poder de muitos e, entre estes,“Pierre Bataillon que chegou em 1876, estabeleceu seu domínio sobre as terras dos apacificados Caxinauás. Aquela era uma das inúmeras aldeias Caxinauás da Amazônia. Pierre impôs a paz, a ordem. Destruiu a cultura Caxinauá pelo progresso, novo deus que era, e a quem se submeteram sem reclamos, quase alegres” (SAMUEL,2005, p.25), bem antes de os Numas, pois, “somente dez anos depois que esses voltando das montanhas peruanas, o quadro mudou molecularmente”(p.25). Então, neste capítulo da obra de Samuel, a abordagem gira em torno dessas duas naturezas, Numas vistos como terríveis e dominadores, e os Caxinauás que foram destruídos em sua cultura ao “submeteram-se sem reclamos, quase alegres” à cultura do invasor. Duas tribos indígenas, os Numas, estão representados pelas duas crianças tomando banho no rio:
São duas minúsculas meninas, nuas, no outro lado do rio, entre as árvores. Na outra margem do Igarapé do Inferno estão, vejo-as, entre as colunas das árvores, Vêm da curva descendente que sai do verde-escuro para o verde-cré até a fímbria da saia do aço da fria lâmina do rio. Como nessa matéria nada é absoluto, comece afirmando que as imagens dos seus lábios são, elas mesmas, somente belas. Pois o que faz a beleza é a beleza de sua aparição, naquele momento, da realização, lá, no inesperado, e surpresa. Quê! E elas vieram de lá. Estão na minha frente. São duas meninas. Duas índias Numas, inconfundivelmente Numas. Desafio. Indução. Paixão e banho clássico. Estão lá, em movimento lento. Silenciosíssimas. Que uma é menina. Outra, adolescente. Perfumam o ar em que se movem. Balanço. As pernas longas. Descendo esguias, virgens, na arqueologia da margem, o delicado encanto, e cuidado. Sim, e sim. Agora – e que sorriso se desenha nos seus olhos... (SAMUEL, 2005, p.22).
O discurso refere-se ao seu locutor ao mesmo tempo em que se refere ao mundo. Esta correlação não é fortuita, porque é sempre o locutor que ao falar, se refere ao mundo que o cerca. É o discurso da ação - As meninas sendo observadas de longe, do esconderijo pelo viés da curiosidade e surpresa do narrador exteriorizando o intencional. A escrita toma o lugar da fala, é como se tomasse uma espécie de atalho entre a significação do discurso e o meio material, é a literatura no sentido original da palavra, o destino do discurso é confiado à littera, não a vox. Este narrador é um personagem rico de contradições, rebelde e extrovertido, cínico e, ao mesmo tempo, delicado e sentimental, quando reverberana visão idílica sobre as meninas e a natureza.
São duas meninas. Duas índias Numas, inconfundivelmente Numas. O uso das repetidas palavras “duas” e “Numas”, corre o risco de o narrador dar valor de significação exagerada a ambas as palavras, uma hemorragia de sentidos para representar a historiografia dos Numas. Sem contar a musicalidade da linguagem, os jogos aliterativos constituídos para oferecer sugestão ao universo profundo que geram sentidos ao leitor. Ora, isto exige que se encare de modo sério, “a linguagem como verdadeiro fio condutor de um tipo de pensar explorando dimensão semântica de toda Hermenêutica que procura caminhar entre a epistemologia e a ontologia” (SILVA, 1992, p.20).
Pois o que faz a beleza é a beleza de sua aparição, naquele momento, da realização, lá, no inesperado, e surpresa. Digo que é sempre bom captar uma forma em seu verdadeiro ponto de realização, melhor dizendo, um que nos confira uma orientação. E eis que surge: a beleza é a beleza, mas, o que é a beleza? Se pensarmos em Estética, a beleza corresponde ao sentido e a sua forma. Exatamente como o narrador determina ao usar o verbo “fazer e o verbo ser”. Fui buscar o sempre Hênio Tavares, com sua Teoria Literária que assevera:
Na beleza residem dois elementos: o objetivo, que se fundamenta na coisa, e o subjetivo, ligado diretamente ao sujeito. Na coisa, objeto da elaboração artística, não há malícia, maldade, moralidade ou imoralidade, quando realmente ela reponta como genuína obra de arte. È no sujeito que tais sentimentos se agasalham (TAVARES, 1996, p. 11).
Mas, o mesmo Hênio Tavares explica ainda pelo olhar do poeta Olavo Bilac, no texto A beleza e a graça, ao trazer Platão que assegura ser a beleza o esplendor da Verdade... e saiu do geral e foi ao absoluto e cuidou de chegar à beleza humana, mais restritamente“a beleza feminina, que é, e sempre foi, e sempre há de ser a inspiração, a tentação, a perdição, a salvação, o bem, o mal, a virtude, o vício, o encanto e o desespero dos homens. A beleza feminina existe e tem uma influência soberana” (TAVARES,1996, p.14).“Na obra literária está a verdade da ideologia: Elanos remete às fontes criadoras do conotado no texto e reconduz as elaborações linguísticas, psicológicas e sociais às suas fontes, isto é, à poesia como verdade do homem. A linguagem é a relação de possibilidade de estados de coisas”(SAMUEL, 1981, p.68).
Os Numas se submetiam a si mesmos, refugiavam-se em si... Eles não eram aparência, mas imanência, e quem viajou pela Amazônia sabe do que estou falando, na ambiguidade onde tudo é incerteza e não-saber herméticos, multiplicados e fortes... Seres frios, enevoados por lendas vindas das montanhas, deuses que descessem para nos justiçar das noturnas culpas. Pois era como se fossem olhos fixos em toda a parte, de tal modo a gente se sentia vigiado por aquelas estranhas criaturas. Ás vezes, deixavam entrever-se (SAMUEL, 2005,p.26-27).
Aqui, pode-se explorar a questão da ambiguidade que a frase comporta: “Eles não eram aparência, mas imanência”. A questão dos Numas, nesta obra, é a não aparência por não terem existência. Essa gente sem aparência é pelo fato de nunca terem existido. Daí o narrador afirmar que é imanência, pelo caráter de novidadeque tem de si próprio neste processo de criação, que “deslancha como experiência rara, da exceção e vem de longa habitação de um território, de um domínio específico” (KASTRUP, 2007,p.61). Daí o narrador completar com a ideia de que: quem viajou pela Amazônia sabe do que estou falando, na ambiguidade onde tudo é incerteza e não-saber herméticos, multiplicados e fortes.
Na medida em que o inventor realiza sua obra, ele abre mão de muitas coisas que inicialmente desejaria obter, ele renuncia a ser o piloto do processo de invenção. Aí entra o elemento de imprevisibilidade do processo. Na invenção, as coisas não vão por si. Há sentimento de dificuldade, incômodo, obstáculos. O processo de criação pode comportar um grande número de vaivéns, tal qual foi dito pelo próprio autor, foram dez anos de construção, de desmanchar e construir até ver a obra concretizada. A busca é ativa e muitas vezes, dura, envolvendo tensão e demandando esforço. Por outro lado, a criação não é apenas esforço, porque ela inclui o encontro. O encontro é o refluxo da busca, pois nele somos receptivos, “escritor/leitor”. Nesse encontro tem sempre uma margem de inesperado, um elemento de imprevisibilidade e de surpresa (KASTRUP,2007, p.66).Pois era como se fossem olhos fixos em toda a parte, de tal modo a gente se sentia vigiado por aquelas estranhas criaturas. Com esse exemplo percebe-se a performativa que o autor dá ao texto. Puro desafio de adaptação intercultural para interagir o significado social existentes nas narrativas expressas pelos povos ribeirinhos da Amazônia.
Nas transferências do modo de contar para “performatizar” a narrativa, as diferenças de filosofia, religião, cultural nacional, gênero ou raça podem criar lacunas que necessitam ser preenchidas por considerações dramatúrgicas que podem ser preenchidas por considerações dramatúrgicas que podem ser tanto cinéticas e físicas quanto linguísticas (HUTCHEON, 2013, p.201).
“Às vezes”, deixavam entrever-se. Eles estão lá, sem estar. Ágil nomadia perigosa. São homens nus, de enormes falos escuros... ou só vento, integrados nas folhas das árvores...belos, os olhos amendoados e escuros, grossos sexos expostos, corpos de criança graúda. De certa forma, delicados. Mas puros fantasmas.
O advérbio é a expressãomodificadora que por si só denota uma circunstância (aqui de possibilidade? Ou circunstancial?) está bem colocado, exatamente nas duas Numas que sedeixaram ver por Ribamar que tivesse a feliz ideia de como era essa civilização. E o narrador abriga esforços no interesse de fazer o leitor acreditar na existência do inexistente Numa. O esforço é sabedoria do tipo platônico, está temperada, sem dúvida, por uma sabedoria de tipo mundano, cética de dogmatismos, ciente do prazer, melancolicamente ligada às ideias utópicas, mas que deixa o leitor em prazer de saber, visualizar a esfinge edipiana. O temperamento, o estilo do narrador/autor intelectual performático, ludibria o leitor com temperança, sensibilidade e graça, e a agudeza é própria do amazônida com talento extraído da energia da selva, onde encontrou consolo nos vários verdes, do matiz ao cré, uma aquarela de saberes, onde avalia o mundo obtendo prazer e amor.
Eu deveria estar preparada para esta cena, o fascínio me envolve e assimilo o êxtase do narrador em verbalizar as lembranças do passado, das primeiras horas da descoberta sexual. Neste fragmento de texto, acomodei-me na arquibancada para assistir ao espetáculo. Julguei que estivesse em Roma para assistir Ovídio. n’Ars Amatoria. “Seria tudo isso, é certo: assim o haviam cantado, pelo menos, os poetas, muitos deles do seu tempo, como Propércio, Tibulo, até mesmo, Virgílio, e outros antes dele, como Catulo” (ASCENSO, p.9). Muitos cantaram o amor, o sexo, as armas, a fúria em Aquiles, e, em Samuel, a bolinação amorosa de duas índias dentro d’água assistida por um adolescente que transmite essa informação como verossímil e funciona como um índex de ideologia, valores e convenções através do qual ordenamos a experiência e predicamos a atividade. Essa história viaja e chama atenção pelo diferente processo de transformação que tem o texto sobre as naturezas humanas, um princípio de moral contra o obscurantismo de conceitos como liberdade, igualdade e amor universal que enche de fascínio o leitor.
O rio está cheio de óleos negros. Melpomene num plinto de coluna de terraço. Naquele movimento de mínima precipitação, qualquer erro é fulminante. Ato terminal. Calor, prazer. O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido. Curvas. Finas. Escreção brusca, violenta, do humor que escorre. Espuma de sangue. A vista cerrada não as consigo ver. Nuvens brancas, primeiro no corpo todo. Nas partes sólidas, estreitas. Elas não me veem. Não me sabem. Só desaparecem. Uma na outra. Se acariciam. Se tocam. Se introduzem no ar (SAMUEL, 2005,p. 22-23).
Ribamar de Sousa foi o amante das duas Amazonas, ele semantémescondido entre as árvores, assiste agoniado ao banho das duas Numas. A vista cerrada não as consigo ver. Nuvens brancas, primeiro no corpo todo. Nas partes sólidas, estreitas. Elas não me veem. Não me sabem. Este estudo caberia no argumento da ironia por ser um processo comunicativo. Porém, a cena é de cinema, e recorro à ekfrases da narrativa por reservar à literatura uma profunda reflexão, que se deve a uma tentativa constante de introspecção, de saber, de descobrir a força emocional, ainda potente liberada por essas memórias que tornamas arestas da vida tentadora tanto para interpretadores. Existem, neste fragmento, as circunstâncias que cercam o banho das duas Numas, a interpretadora deixa que a imaginação de sexualidade seja possível e plausível. “Uma na outra. Se acariciam. Se tocam. Se introduzem no ar”.
Outra beleza é perceber o sagaz autor mostrar essa vinheta; Naquele movimento de mínima precipitação, qualquer erro é fulminante. Ato terminal. Calor, prazer. O morno rio ressurge, como látex do sangue aquecido. Esta liberdade formal propicia, com extrema facilidade, diversas modulações, no que respeita às interferências da lírica e narrativa, bem como aos diversos graus de presença de cada um desse modo literário.
Assim sendo, liberta do constrangimento das palavras resta dizer que elas não são hostis, muito pelo contrário, é neste capitulo que está a simbiose do romance, é onde se reconhece o grande esforço do autor de dar veracidade aos Numas, que nunca existiram, mas que este pequeno quadro pintado com as tintas da sexualidade faz o leitor sonhar com poesia, quando se vê a natureza humana se revela divertidamente impregnando o mundo de tempestade de desejos. A obra inteira oscila em sons arrastados de disparos de sêmen, de terçados, de tiros, de rasteiro das histórias que de fato ocorreram, em algum dia na Amazônia.
O rio está cheio de óleos negros. Melpomene num plinto de coluna de terraço.Esta frase confirma a sexualidade e erotismo na literatura de Samuel. A musa Melpomene de pé em seu pedestal, (plinto)não está por acaso na narrativa, é filha de Oceano e Tétis, recebeu a função de cantar a tragédia, apesar de sua alegria. Assim, esta narrativa canta a tragédia da época da extração do Látex, quando muitos nordestinos tiveram fome e desejo de enriquecimento e perecerão nas águas do grande rio, e perderam a vida na malária, ou na floresta.
Samuel manifesta uma preocupada atenção às circunstâncias, situando-se num plano de criação totalmente contrário ao que outros autores fizeram, condenando à Amazônia ao infernismo. Mesmo assim, confere à obra deste escritor, uma grande capacidade de imersão na “vida”, no tempo histórico e nas suas desencantadas circunstâncias em que está estruturada a narrativa. Por isso, se pode dizer “se quisermos a cicatriz pungente de um tempo que é o nosso eda cidade e perfídias que nos matam, é a Literatura em nosso escritores, os desta safra, que fazem relatos fotográficos de um tempo que onera o passado, mas engrandece a existência de todos que escreveram e teremos de recorrer para conhecer. Não como um bálsamo ou enquanto filosofia de salão, antes como uma ferida que sentimos próxima. “Mas a vida é um caminho que de repente se bifurca... E certo também que voltavam gigantescos e ferozes, movendo-se sempre nas igualmente imaginárias áreas do Rio Pique Yaco, do Rio Toro, e do além mais.Mas nunca apareciam...” (SAMUEL,2005, p.31).
Essa verdade de caminhos bifurcados é de longa data uma verdade absoluta, mas serve para o narrador reafirmar sua desorientação, lamentar de tempos em tempos, pode ser aflição por não ter compreendido os fatos ou o modo correto de agir. A sabedoria dos romances contemporâneos tem mais probabilidade de ser retrospectivo, este entra no estilo de romance “Histórico” como Marinho (1999) entende: “Na impossibilidade de repetir a História, tal como os historiadores a concebem, os romancistas arrogam-se no direito de narrar prioritariamente na convicção de que o leitor interessam sobretudo os pequenos incidentes da vida familiar”pela tonalidade íntima com o passado redesenhado. Adorno assevera que “a arte não deve reduzir-se à polaridade indiscutível do mimético e do construtivo como uma fórmula invariante de construção, não de correção ou certeza objetivante da expressão, deve acomodar-se sem planificação aos impulsos do mimético, aí está a superioridade sobre a construção”(ADORNO, 1970,p.58).
Após essa breve análise do romance de Rogel Samuel, faz-se necessário comentar sobre esse poeta, escritor, webjornalista, doutor em Letras, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro.Sócio Correspondente da Academia Amazonense de Letras.
Publicou as seguintes obras:
Crítica da Escrita. Edição do autor,1981.
Manual de Teoria Literária. 14. ed. - Petrópolis: Vozes.
Literatura Básica. 3 vol. Petrópolis: Vozes, 1985.
O que é Teolit? São Paulo: Marco Zero, 1986.
120 Poemas. 1991 (Além de centenas de artigos em revistas, jornais, vários romances publicados on-line).
Novo manual de teoria literária. 6. ed. - Petrópolis: Vozes, 2011.
O amante das amazonas. 2. ed. - Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005.
Fios de luz, aromas vivos. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2012.
Teatro Amazonas. Manaus: Edua, 2012.
Modernas teorias literárias. Teresina: Editora Nova Aliança, 2014.
Rogel Samuel tem seu nome registrado em verbete de Enciclopédia, como na Enciclopédia de Literatura Brasileira, de Afrânio Coutinho e J. Galante de Sousa (Editora MEC); seus poemas já foram incluídos na antologia de Anísio Mello, Lira Amazônica, publicada em São Paulo, em 1965. O Estado do Pará, na pessoa de Carlos Rocque, um diligente divulgador da literatura da grande região amazônica, também o destacou entre os principais poetas do Amazonas, em 1968, na Grande Enciclopédia da Amazônia (publicada em Belém, capital do Estado do Pará). Assis Brasil o incluiu na antologia A poesia amazonenseno século XX (publicada pela editora Imago do Rio de Janeiro em 1998).
O romance O amante das Amazonas publicado, em 2005,foi objeto de dissertação de mestrado da professora paraense Lucilene Gomes de Lima. Em seguida,foi analisado por Neuza Machado, nos livrosO fogo da labareda da serpente sobre O amante das Amazonas, de Rogel Samuel e Esplendor e decadência do império amazônico: o olhar interativo do narrador da pós-modernidade .Disponíveis apenas na internet. Assim sendo, a professora e críticaNeuza Machado é maior intérprete e divulgadora da obra de Rogel Samuel.Além das análises realizadas citadas anteriormente, o romance O amante das Amazonas é objeto de duas pesquisas na Universidade do Estado do Amazonas e de uma de tese doutorado em andamento na Universidade de Brasília.
BREVES CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considero este romance uma autobiografia da Amazônia, bem documentada e arranjada nos cenários de tristes casos.
O amante das Amazonas é uma obra relativamente curta, com 164 páginas de puro prazer, igualmente refinado e furtivo, assombrado. O cerne moral da obra é refigurar a época da borracha, porém, Rogel não se afogou na obediência de transformar o texto em uma tragédia do espaço, e sim revigora com prodígio uma época fracassada pelos ambiciosos especuladores da goma elástica, como ele diz: como o caráter de muitos que aqui estiveram. Traz um bocado de vidas afogadas no processo de extração, a histórica riqueza de um tempo, a construção do Palácio de Ernest Scholtz, os mortos na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 1908, em 1908 a fundação da mais antiga universidade do Brasil, em Manaus. A construção do Teatro Amazonas, em 1896 – a mais cara e inútil obra faraônica da História do Brasil, milionária e importada. E a presença feminina na figura de Maria Caxinauá, foi acolhida como ama e depois subiu de posto, passou a ser a amante da cria. E, sempre a referência do Igarapé do Inferno que representa a braveza dos Numas. Enfim, A história do Amazonas é um acúmulo de loucuras e corruptas aventuras.
REFERÊNCIAS
AMORIM, Francisco Gomes de. Os selvagens. 2 ed. Revista Manaus: Editora Valer/ Governo do estado do Amazonas, 2004.
CARLOS, Ascenso André. Ars Amatoria. Lisboa: Livros Cotovia, 2006.
DERRIDA, Jacques. Pensar a desconstrução. Trad. Evandro Nascimento. [Org.]. Trad, Evandro Nascimento...[et al.]. – São Paulo: Estação Liberdade, 2005, 352p.
GRIMAL, Pierre. Dicionário da mitologia grega e romana. Coord. Victor Jabouille. DIFEL Difusão Cultural, S.A. Lisboa-Portugal, 2009.
HUTCHEON, Linda. Teoria Política da Ironia. Tradução de Julio Jeha – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel.2 ed. – Florianópolis : ed. da UFSC, 2013.
KASTRUP, Virgínia, 2007.
LECERT, Eric; BORBA, Siomara; KOHAN, Walter.[Orgs.]. Imagens da imanência: escritos em memória de H. Bergson. Belo Horizonte: Autêntica, 2007, p. 61.
MARINHO, Maria de Fátima. O romance histórico em Portugal.Coimbra: Campo das Letras Editores, 1999.
PORTOCARRERO, Maria Luísa. Horizontes da Hermenêutica em Paul Ricoeur. Coimbra: Ariadne editora, 2005.
RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação: O discurso e o excesso de significação. Lisboa: Edições 70.
RICOEUR, Paul. Em torno ao Político. Trad. Marcelo Perine Edições Loyola, São Paulo, Brasil, 1995.
SAMUEL, Rogel. Crítica da escrita. Rio de Janeiro: Gráfica Olímpica Editora LTDA, 1980.
SAMUEL, Rogel. O amante das Amazonas. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2005.
SILVA, Maria Luísa Portocarrero Ferreira da. A Hermenêutica do conflito em Paul Ricoeur. Coimbra: Edição: Livraria Minerva, 1992.
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