domingo, 11 de agosto de 2019

Albert Samuel

Que é a Amazônia


 
Albert Samuel


 
Muito se tem escrito sobre a Amazônia e multo mais será ainda escrito sobre esta imensidão de águas e de matas. Todavia, falta ainda o escritor ou o poeta que irá dar ao mundo uma visão clara e concisa sobre o conjunto do modo de pensar e de viver de sua gente. Este livro, entretanto, não tem esta preten-são. 
Laudos áridos e burocráticos sobre definidas regiões e para definidos fins, foram elaborados para diversas autarquias e não podem dar um conceito filosófico e humano sobre a região. 
A Amazônia é um dos últimos redutos da liberdade total para aquele que, liberado dos grilhões do conforto moderno, possa viver simples, perigosa e solitariamente. 
Para usufruir desta vantagem, terá que passar, como nas câmaras iniciáticas das Ordens Secretas, pelo medo da solidão e pelo medo da natureza que lhe parecerá hostil. Tera ainda que se adaptar a uma nova alimentação, de onde desaparecerá o cafezinho pela manhã, o pãozinho quente e os pratos suculentos. Terá  que beber a agua barrenta da maioria dos rios e a aprender a dar valor às frutas silvestres. 
Então, e somente então, verificará que os sofri-mentos e privações que lhe pareciam intransponíveis dão lugar a um mundo maravilhoso. Encontrará emoções adormecidas há milhares de anos e saboreará a plenitude da vida como Deus a criou. A natureza terá nova significação. Sentir-se-á irmanado com vínculos invisíveis aos pássaros, aos insetos, à floresta, à agua e ao sol. Assim como o vozerio da família acordava a criança à vida matinal, assim a natureza, com os seus ruídos característicos será a sua nova família no seio da qual sentir-se-á em segurança. Nenhum animal lhe parecerá cruel. 
Considerá-los-á como irmãos, alguns mais respeitáveis do que outros e os quais é melhor não molestar. Assim como em uma família numerosa há sempre um menino mais irascível que os outros respeitam para não levar uma pedrada na cabeça, assim respeitará a arraia que fere, a lagarta que queima, a cobra que pica. Verificará, também, que o seu maior inimigo, mesmo no fundo da floresta inacessí-vel, ainda será o seu semelhante, quer seja de sua raça ou de outra. Mas, a verdade é que a paz reina na floresta, aquela paz profunda que Deus concedeu ao homem. 
A estatística afirma que, em Manaus, com 180.000 habitantes, ilha avançada da civilização, encrostada no seio da planície, e de onde somente é possivél sair ou chegar por água ou pelo ar, 62 pessoas morreram em desastre de trânsito durante o ano de 1965. Durante o mesmo ano, quantos dos 500.000 habitantes da planície morreram devorados por onças, cobras, piranhas e jacarés? Certamente, nem a metade. Falam-se em monstros e feras marinhas que vivem nos fundos dos rios, entretanto, se lê nos jornais que o corpo de fulano desapareceu em tal dia nas águas de tal rio, e foi encontrado flutuando em tal lugar. Falam-se em onças, jibóias e gatos selvagens, mas se lê que o caçador sicrano reapareceu à margem do rio tal, depois de tantos dias de extremas privações. 
O meio terno é prejudicial na Amazônia. Ou se tem que ser civilizado ou se tem que ser indígena. Prejudicial levar a civilização ao índio. Prejudicial querer viver como civilizado entre índios. Prejudicial, enfim, querer fazer do índio um civilizado. Por este motivo, o nordestino que sobe os altos rios à cata de fortuna e vive no meio termo entre os dois sofre mais que os outros das consequências físicas e morais. Fisicamente, fica paralisado aos trinta anos com reumatismo articular durante meses a fio, aos quarenta anos todos adoecem do fígado e muito poucos são os que chegam aos sessenta anos. Moralmente perdem a profunda ética da família, tão sagrada no nordeste. Talvez não cheguem a cinco por cento os casais que permaneçam unidos até a morte, o restante sempre “deixado da mulher” ou “deixada do marido” e assim mesmo os cinco por cento remanescente tiveram aventuras extraconjugais permanentes ou esporádicas. Os filhos já nascem raquíticos e subnutridos, cheios de verminose e doenças cutâneas oriundas da falta de higiene. Salvo na sede dos Municípios, o analfabetismo é total. 
As quatro estações do ano se resumem a duas, inverno e verão. O inverno é calor com chuvas e o verso calor sem chuvas. Contrariamente ao que se pensa, o calor sobe somente até 35o C, jamais chegando aos 40o , como na Ásia e na África ou mesmo em Nova York. Jamais alguém morreu de calor. Jamais alguém morreu de frio, embora no inverno, nos altos rios, a temperatura cai a 6o C e a menos ainda no alto das serras. 
As chuvas são torrenciais. Uma chuva grossa do Amazonas daria para inundar o Rio de Janeiro. Amolece a terra várzea que derrete como manteiga ao fogo. As margens do rio em terras várzeas -são de duas categorias, a saber: o barranco que quebra e o barranco que cresce. No primeiro, a correnteza vai minando a margem que cai como castelos de areia e no outro vai crescendo de ano em ano. No barranco que cai, as casas são construídas a 100 metros da margem do rio ou mais, para dentro de poucos anos, terem de ser desmontadas e reconstruídas além. 
As ilhas em número de milhares, se formam e desaparecem constantemente. Os práticos das grandes embarcações são os que conhecem o canal do rio, os baixios, as pedras e os troncos de árvores submersos que furam os cascos de navios, por maior que sejam. 
O canal do rio é a parte navegável o ano todo para embarcações de qualquer calado. E um  rio correndo dentro do rio. Com o decorrer do tempo, muda igualmente de rumo, porém muito mais lentamente que as ilhas e as costas. Começa a dividir-se em dois canais de um lado e de outro de uma ilha, e depois de algumas décadas, opta por um deles. 
Um prático de cem anos atrás não saberia navegar no rio para o qual estudou, prestou exames e recebeu carteira de habilitação profissional da Escola de Marinha Mercante do Pará. Esta carteira profissional é apenas para o Rio Amazonas ou um dos seus afluentes. Existem práticos que tiram carteira de habilitação de dois, três ou mesmo quatro rios. Isto é o máximo. A vida humana é curta demais para conhecer todos os afluentes do Amazonas, a Mãe de todos eles. O estudante, para tirar Carteira Profissional, necessita viajar nele durante muitos anos, ao termo dos quais deve conhecer um percurso de mil a duas mil milhas, além das passagens de pedras, naus e praias, a copa mais alta de algumas árvores que servem de referência para a travessia do rio durante as noites sem lua. Poderá, então, levar o destino de centenas de passageiros que confiarem nele. Mesmo assim, todos os anos, naufragam numerosas embarcações de todos os tamanhos e cujas posições serão assinaladas nas “derrotas” dos práticos. Estas “derrotas” são mapas regionais em rolos compridos que assinalam obstáculos -nos rios. No Rio Purus, por exemplo, existem mais embarcações em baixo das águas do que navegando por cima. 
As águas sobem e baixam de, aproximadamente, dez metros ao ano. É um volume de água impressionante. Impressionantes são as distâncias. Devido os meandros que fazem a maioria dos rios, tais como o Rio Juruá, as distâncias, por água, são quatro a seis vezes maiores do que por ar. Assim sendo, de Manaus, Capital do Estado do Amazonas, até Cruzeiro do Sul, localizado no Estado do Acre, a navegação tem de percorrer 2.394 milhas de água, ou seja, perto de 4.000 km. Cruzeiro do Sul fica, portanto, mais longe de Belém do Pará do que a África ou a Europa. 
As chuvas caem nos altos rios a partir de setembro. Os rios começam então a subir, porém na mesma época, em Manaus ou Belém, as águas 
estão baixando de nível e continuarão a baixar até fim de novembro ou início de dezembro. Em resumo: quando os altos rios estão alagados, a planície está com todas as praias no seco, e, quando os altos rios estão secos, a planície está alagada. Como se vê, a marcha das águas é lenta, o declive é pequeno. Manaus, a perto de novecentas milhas do mar, fica entre dezessete a vinte e sete metros acima do nível do mesmo, enquanto que os altos rios ficam entre cinqüenta a cento e cinqüenta metros apenas. É possível subir o Rio Juruá, por exemplo, com todas as praias de fora e, quatro dias de navegação acima, encontrar tudo alagado. Se na mesma ocasião se resolve voltar, encontrar-se novamente o rio seco antes de chegar à sua junção com o rio Solimões para onde deságua. 
Quando falamos em rio seco é necessário dizer que ainda assim qualquer afluente do Amazonas contém mais água do que qualquer rio Europeu. 
É possível, grosso modo, dividir a Amazônia em duas regiões distintas e bem delimitadas. Primeiramente, a planície ou terras várzeas; e, segundo, as terras firmes. Por ocasião das grandes enchentes, como a de 1953, a planície fica totalmente submersa, formando um imenso lago para onde deságua centenas e milhares de rios e igarapés. Naquelas épocas é possível andar de canoa semanas a fio, sem tocar terra. Milhares de casas construídas sobre pilotis surgem das águas enquanto que outras, construídas com uma elevação mal calculada, somente mostram os seus telhados. Nestas épocas, o mar pré-histórico toma posse ao que foi sempre dele. A terra firme marca os limites dos antigos continentes. Sobre ela correm rios encaixados em leitos de pedras definitivamente delineados. São rios encachoeirados de extrema beleza, ricos em minerais de toda espécie. Em muitas regiões, tais como na Cachoeira 2 de Novembro no Rio Machado, é perfeitamente visível a corrente de lava derramada nas eras do período secundário por erupções vulcânicas. 
As terras várzeas são férteis como o Nilo na África, devido a inundações periódicas que levam consigo todas as formas de vida que possam subsistir no solo e ser prejudiciais para as culturas, razão porque, e contrariando o bom senso, são mais procurados pelos hinterlandinos que as terras firmes, e aproveitam-nas para as culturas de curto ciclo vegetativo. As terras firmes, além de pobres, são infestadas por formigas devoradoras de tudo o que o homem planta. 
É incrível assistir a uma transação de terra inexistente por ocasião da enchente toda inundada, sendo delimitada pelas copas das arvores que surgem da correnteza. Em algumas regiões, tais como o Paraná do Careiro e o Paraná do Cambixe, perto de Manaus, um metro de terra de frente ao rio vale mais do que um metro de terra em subúrbio da capital amazonense. 
O sonho do caboclo é possuir uma embarcação. A embarcação é o automóvel da Amazônia. Com ela é possível ao seu proprietário, transportar-se periodicamente até às cidades, adquirir mercadorias mais baratas, vender os seus produtos por melhor preço. 
O sentimento de liberdade, já bem amplo no amazônico aumenta ainda mais, quando singra as águas para cima e para baixo dos rios. Fica totalmente dono do seu destino e do seu tempo, dependendo apenas do combustível. Alguns esquecem até do dia da semana e da hora do dia. Calendário e relógio, os dois tiranos do homem civilizado, deixam de ter importância. Há quem permaneça meses e meses nas embarcações, comprando, vendendo, pescando, amando. E muitos são os que nasceram um embarcações. 
Como em outras partes do mundo, os maus elementos deixam o interior para vir à Capital. É muito mais fácil ser espoliado e assaltado em Manaus, ou em Belém, do que em qualquer lugar do interior. 
A prostituição somente existe já perto das capitais;  quanto mais no interior, mais difícil encontrar uma prostituta vivendo do seu “metier”, embora seja fácil para o forasteiro encontrar toda qualidade de mulher, desde moças até velhas, que não façam comércio do seu corpo. A entrega de si mesma obedece, na maioria das vezes, às necessidades fisiológicas bem definidas e não tem nada de imoral. 
Neste quadro geral qual é a posição do indígena? Podemos dividi-lo em duas categorias. O índio da terra várzea e o índio da terra firme. Embora os elementos de que dispomos não nos forneçam grandes detalhes sobre estes assuntos, é de presumir que o índio da terra várzea, devido à fertilidade do solo e à facilidade de pesca, tornou-se de tempos para cá, semi-sedentário e agricultor. Como em outras raças da história da humanidade, o agricultor sempre foi pacato, opulento e pacífico. Esta é a razão porque a penetração da planície foi feita sem dificuldades. O índio foi integrado à civilização, tornando-se o caboclo que, hoje, caracteriza a Amazônia. 
Mas, para o índio da terra firme, a história transcorre totalmente diferente. O índio da terra firme foi e continua a ser essencialmente um caçador e um nômade, e como tal de uma agressividade bem maior que o seu irmão bem nutrido da planície. A onda da civilização o vem encurralando, cada vez mais nas serras, nos altos rios, alem das cachoeiras de difícil penetração. A hostilidade com o branco parece aumentar com o tempo. Não quer nenhuma integração ou acordo com ninguém. Vive confinado em lugares inacessíveis, descendo para as praias secas atras de quelônios e seus ovos, dos quais são grandes consumidores. Na maioria dos casos, são índios limpos, sadios e de elevada moral. Desconhecem a cárie dentária e os males que disseminam os índios da planície. Sua agressividade os tornaram selvagens, corajosos, altivos e belos, com costumes ainda bárbaros que caracterizam o homem pré-histórico. São francamente homens da época da pedra polida, fazendo suas flechas ricamente decoradas com cabelos de caititus brancos e pretos que podem rivalizar com qualquer tecido de nylon. 
(JAGUARETÉ, O GUERREIRO 
E outros contos amazônicos 
Manaus, 1977). 

ALBERT SAMUEL nasceu em 15 de agosto de 1911 no Amazonas. Entretanto era  francês, criado na Alzácia (Estrasburgo) até depois da Primeira Guerra, que conheceu de perto, e educado em Paris até a idade de 25 anos. Conheceu a Revolução Espanhola e vários países europeus e africanos. Falava várias  línguas como francês, alemão, inglês,  e era estudioso de várias religiões, muitas das quais nos textos originais: principalmente hinduísmo. Foi um dos primeiros a estudar e praticar Ioga e meditação no Brasil. Tocava muito bem piano e estudava violino e violão, e tinha uma memória prodigiosa. Chegava Citava Goethe em alemão. Morava no Amazonas, onde perto da natureza e de seus silêncios, que tanto amava. Ali, Albert Samuel fez longas viagens através das regiões mais remotas e da selva mais virgem, em geral só, numa pequena lancha. Faleceu em Manaus, no dia 22 de setembro de 1989. 


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