segunda-feira, 6 de abril de 2020

O AMANTE DAS AMAZONAS

A casa de Eudócia era um tapiri de palha na beira do Igarapé das Sete Cacimbas. Quando o Rio subia, as águas batiam na soleira da porta. Dois cômodos sem luz, sem água encanada, o banheiro era fossa. Na sala - como era chamada - ficavam ao mesmo tempo o escritório, a biblioteca, a alcova e a cozinha. Tia Eudócia dormia no quarto. Chão de terra batida, tabatinga endurecida. Uma espécie de mesa geral para tudo, onde se almoçava entre pilhas de livros. Um guarda-roupa enorme, sem portas, transformado em estante de livros, livros amontoados, deitados. O móvel, herança da ex-patroa de Eudócia, cerca de 2 metros quadrados, continha mais de 2 mil livros em vários idiomas. Toda a vida miseravelmente ali. Ás quatro da madrugada Eudócia saía em direção do Mercado da Escadaria da Praia dos Remédios. Benito passava as manhãs dormindo, as tardes na Biblioteca Municipal - onde às vezes era o único consulente. As noites trabalhava no jornal, nos puteiros e nos bares sórdidos. A Biblioteca Municipal tinha um precioso acervo. Os dois mil livros do guarda-roupa de Benito eram considerados, por seus discípulos (como eu), os mais importantes da história da cultura humana, de Homero a Machado, de Parmênides a Marx. Benito só lia matéria pesada, antiga ou moderna. A gente não compreendia como ele, bebendo tanto, podia continuar lúcido. Memória fotográfica e inteligência imediata.

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