sexta-feira, 23 de outubro de 2020

A HORA MARCADA - ROGEL SAMUEL


 A HORA MARCADA

             Sim, ela escreveu um conto onde, com hora marcada, a narradora precisa matar o personagem. Na realidade, aquela é a hora marcada de sua análise, a hora do analista. A narradora está no meio da condução do enredo de sua tele-novela, e o personagem... bem, um transtorno. “Antes ele do que eu”, dizem as vozes do texto. Quem choraria a sua morte?
             Assim Leila Miccolis inicia o seu conto, e o seu livro de contos, “Achadas e perdidas”, esta obra-prima da narrativa curta, enxuta, surpresa, numa série de miniséries.
             Justificativa para matar o personagem havia várias, como na novela das oito da Globo, “Mulheres apaixonadas”: a novela andava “em fase minguante”, “vítima da calmaria”, - a inesperada morte poderia despertar o torpor do “respeitável público” – mas nada de sangue escorrendo, de perseguição e morte, qual filmes americanos, ou na novela supra, mas apenas uma mancha colorida (ou preta), como a marca de baton da amante na gravata do cianoreto do coração – este conto é um verdadeiro tratado de escrever um enredo, telenovela conto ou romance, e de como agradar em duas páginas... Leila prestidigita a narrativa com seus rápidos, irônicos comentários bem-humorados... morrer, matar de morte indolor, mas a quem? Ao Pai? Ao Macho-Poder? Ao Falo (o que decide a fala)? Ao poder do analista de decidir quanto a Cura (se é que se dá?). Matar no divã “dia da alta” do analista que a largava, mesmo ela, “não sendo anti-Salomé”, a sua cabeça estava ali, a prêmio, sim, da narradora, no sofá do analista matava a todos, e a todas, não os seus queridos personagens, mas as ”super star” vaidosas, os galãs esnobes, legiões de atores, autores, bibliotecas inteiras caíam cruelmente assassinadas pela narradora, ou melhor, por mim mesmo, o seu cúmplice Leitor que, “por razões inconfessáveis”, demitia, um a um, os seus ídolos literários no divã da leitura das duas páginas de “Hora marcada” de Leila Miccolis, cuja narradora, agora curada, pelo analista, torna-se impotente pela ética, esse poder avassalador de edítica manobra, o impasse editorial, profissional, da Ética cura, da razão, que, ou pior, aguardava sua “ordem de comando”, perguntando: “E então?”
             “Não, decididamente não posso, não matarei...”, responde o super-ego da Curada, da Justiça, a claridade da luz do dia em que o seu analista lhe deu alta, mas no meio da estrutura da novela que ainda estava no ar, e que precisava urgentemente acordar.
             O conto funciona como prefácio dos outros do livro que vem com mini-séries transformadas em deliciosos contos, e vem com  filmes, os “curtas” transliterados em meta-linguagem – Leila diverte na diversidade de sua visão da realidade e do seu ofício de escritora, também, de roteiros de tv. Que nunca tinha lido com tanto gozo a vida interna, intestina, das novelas que Leila transforma com muita arte em meta-ficção.
             Todos que estudam a técnica de criação de roteiros não devem deixar de ler este extraordinário meta-texto, povoado de narrativas e personagens femininas “ achadas e perdidas”, tais como o feminismo as vê.
             Mas a visão feminista de Leila Miccolis, entretanto, não é anti-machista, raivosa, irada, rancorosa, mas muito bem humorada e divertida de pós-modernidade (no que este termo tem de abrir caminhos próprios pela experimentação da literatura “descartável”, tal como na Internet, da escrita que não se leva a sério, mas que faz pequenas obras-primas da vacuidade, da inocuidade do cotidiano, etc).
             O livro é, neste sentido, único. Surpreendente.


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