ROGEL SAMUEL
Eu já escrevi várias vezes sobre o mesmo tema. Nos dias escuros, chuvosos, de hoje, me pego a pensar na Primavera, que virá. Ainda sou marxista, e assim, otimista. O sol ainda vai luzir no horizonte. Talvez um sol que não se apague, como disse Dugpa Rinpochê. Talvez não para mim, que velho estou para esperá-lo. Mas haverá sempre o sol sobre a chuva desses campos de um soneto de Jorge de Lima, que releio sempre, que não me canso de ler, quando deprimido, triste:
“Qualquer que seja a chuva desses campos
devemos esperar pelos estios;
e ao chegar os serões e os fiéis enganos
amar os sonhos que restarem frios”.
(Jorge de Lima, Invenção de Orfeu - Canto I – XXVI)
Já pensei assim. Se tudo estiver bem, lembre-se de que tempos piores podem advir: “Qualquer que seja a chuva desses campos / devemos esperar pelos estios”. E quando a época ruim chegar, contentar-nos com os nossos sonhos.
O poeta, pessimista, espera danos futuros. Em não conseguir o sonhado amor, que é imortal:
“Porém se não surgir o que sonhamos / e os ninhos imortais forem vazios, / há de haver pelo menos por ali / os pássaros que nós idealizamos”. “Feliz de quem com cânticos se esconde”.
Por que estar triste hoje? Porque «Somos membros uns dos outros», disse São Paulo aos cristãos de Efeso, citado por Laín Entralgo, num artigo. Entralgo era pensador da direita espanhola, discípulo de Ortega, e sempre exerceu sobre mim sobrenatural fascínio. Define Entralgo a capacidade do homem de considerar-se pessoa por dois conceitos: o próprio, e o alheio. Na esfera do próprio, estabelece duas diferentes esferas: o 'meu' (que define a própria estrutura do eu), e o 'em mim' (que posteriormente ele estuda, na patologia).
Como a pessoa é capaz de relacionar-se com outra? Como considerar o outro como outro eu? Como analisar o encontro, como estabelecer relações de amizade? Para Entralgo, a realidade consiste em ser 'de si' e em 'dar de si''. A realidade se faz presente e cognoscível na impressão de realidade que a coisa oferece ao sujeito que a percebe.
O principal livro de Entralgo, raríssimo entre nós, se chama 'Teoria e realidade do outro', que só consegui ler na Biblioteca Nacional, mas que hoje tenho. Nesse livro, ele percorre a filosofia ocidental em busca da teoria da consciência do outro, do outro como outro eu, onde a consciência de si é a consciência do outro. Como em Hegel, quando o eu suprassumia a si no outro a que se opunha numa negação: eu não sou o outro.
Alguns poetas tiveram, ou revelam, dificuldade de relacionar-se com o outro. “O inferno são os outros”, já se disse. O poeta é um sofredor inútil. Entre 'os serões e os fiéis enganos' há uma ponte para a solidão sempre presente, sempre fiel, porque esse tipo de poesia tem uma vocação de 'amar o perdido', de buscar o passado, de 'Amar os sonhos que restarem frios'. Marca o reconhecimento de si no outro inexistente, distante e impossível.
As asas depenadas não voam, o coração já não se usa (Cocteau), não ama, as cenas ao redor são terríveis, as dores não mais se expressam, estão secretas, os ninhos vazios, os enganos fiéis, mas a poesia de “Invenção de Orfeu” mantém a sua beleza imortal.
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