sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

O PALACIO

Lembro-me de que, naquele Igarapé do Inferno, mas logo mais abaixo na última linha que riscava o horizonte daquela tarde - era uma diagonal dourada com a tempestade se aproximando na outra ponta do horizonte - como num recorte de uma cena de um escrupuloso sonho histórico, soberanamente saltou sobre meus olhos o vulto belo e art-nouveau do Palácio Maxini (que era como se chamava aquela construção), sede do Seringal e residência de Pierre Bataillon, pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco, de um ouro muito louco e muito vivo, de um brilho vivíssimo, dourado e louco, fantasmático e delirante, desterritorializado e dIspare, produzido pela acumulação primitiva de quase um século de exploração e investimento e agenciamento de sobrepostos níveis heterogêneos de história, num engendramento de todo varrido do planeta moderno, confinado ali, circunscrito ali, centrado ali na dependência permanente de si e de seu retardado isolamento e de seu anacrônico testemunho. Nós retornávamos à elaboração do nosso faustoso passado, nós chegávamos naquela brusca tarde de ouro sem sentido e sem valor em que o Palácio ocupava na sua singularidade todos os detalhes de um aspecto de deslumbrante luz. O Palácio (que era assim conhecida aquela construção que depois entrou em decadência, ruína e morte, depois da quebra da borracha), o límpido e repentino Palácio nos esperava na tranqüilidade dos seus pontos e ângulos com que nos acenava e encontrava com sua imortal bem-aventurança sobre placas de negras e primitivas águas vindas da origem da vida do mundo, nas faces do Igarapé do Inferno deslizavam as riquezas das cabeceiras do mundo, da Fronteira, do Inevitável, do Inexato, das Árvores do Princípio. Perdidas, devolutas, indemarcáveis... Sim, porque tudo a fortíssima codificação daquilo tem a ver com a experiência do retorno, da construção, que aquilo era uma edificação (depois abandonada) de dois andares mais porão de procedimento art-nouveau cingida de finos gradis de ferro torneado em convulsionadas e violentas volutas de gavinhas de elegante e efeminado contorno, travestidas, descomedidas, decorando a escadaria de mármore torto e enfático, escura e em pleno gozo das réplicas vilas européias. Que majestade é algo que logo se sente à distância, pois de longe já dava para sentir a majestade e diferença, o interesse de se re-apropriar das sacadas e balcões que avançavam no ar... - mas tudo aquilo está hoje em ruína descontínua, mas tudo aquilo hoje não está e a minha descrição corresponde ao que era o Palácio há muitos anos na minha mocidade e na proliferação da minha memória perdida, ah, sim, porque estou velho mas não estou louco, e as minas no meio da floresta lá estão como cultura e substância ainda para confirmar a existência e elaboração. Vejo bem o corpo retorcido daquele evasivo edifício oitocentista (depois saqueado), no alto da terra-firme, plantado em relação a uma verdade naquele limite da Terra por conta de rios de sangue e de escândalo de toneladas de libras esterlinas de ouro reluzente de borracha - oh, Deuses!, porque existiu aquele luxo não admitido ou suposto, aquela desventura e extorsão, aquele desbarato dos prazeres da riqueza na sede do Seringal Manixi que era longe, muito longe, afastado de tudo, afastado de si, distante 3.100 km da cidade de Manaus ... Eu não sou. Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo, arcaico, luxuoso, feito tricotado em ouro e pedras preciosas, de um outro modo, daquele tempo em que o Palácio era imagem em busca de sua natureza profunda. Ali se dispunha de uma sala de música onde se ouvia principalmente Beethoven, de um piano Pleyel, a vitrine onde Pierre Bataillon ostentava sua coleção de violinos (o Guarnerius, o Bergonzi, o Klotz, o Vuillaume), as gravuras representando Viotti, Baillot, David, Kreuzer, Vieuxtemps, Joachim; a máscara mortuária de Beethoven, laureado em bronze, de Stiasny. A Biblioteca, em que alguém uma noite leu em voz alta versos de Lamartine. E salas e salas se interrogando para quê, salões e galerias e cômodos se intercomunicando por portas sucessivas que se abriam em galerias e corredores restritos, que se fechavam em si mesmos, ao som do piano de Pierre Bataillon dialogando com o violino de Frei Lothar uma sonata Mozart como alguém que se concentra em si mesmo, de um poder surdo, ágil e temível que se expressava nas paredes de estuque pintado por irisações de um ouro esverdeado e escuro, na entrançadura de seus ritmos de galhadas e folhagens de uma vegetação alucinada e japonesa que subia por aquelas formas pelo teto multirefletido nos visotados espelhos de cristal e nas flores dos lustres de modo a evocar a lembrança de exótico prazer. Sim, sou eu um velho de um outro século e ali vivi, observando, aprendendo e comendo durante o longo daqueles anos todos no círculo e em torno daquela povoação de objetos e móveis antigos que descreviam monstros consumidores: como na cômoda veneziana a visão da atividade sexualizada da imagem; no armário de Boulle cenas de caça com javalis do consumo e cães mastigando sangrentas aves abatidas a tiros pelo Duc de Chartres e outros cavaleiros fidalgos na idiotia de vistosas calças vermelhas e botas pretas; no silêncio rigoroso do gabinete inglês; na dinâmica, na morfologia prostituta do divã de Delanois; na unidade e variante elíptica do canapê - e nos cipós, íris, cardos, insetos estilizados, poliformes, incorporando-se aos móveis e às linhas dos painéis franceses num delírio neo-rococó como não quis a natureza: estátuas sobre lambrequins, rocalhas e rosáceas ecléticas, urnas nas cimalhas dos balcões simbolizando a energia, a ontologia e o desejo do capitalismo de tudo consumir, de tudo gastar, de tudo produzir, de tudo poupar e de tudo faltar e apropriar-se, transbordando e abortando na loucura, na miséria e na morte - cariátides, capitéis, folhagens da selva - o pequenino Pierre Bataillon comeu e consumiu e fez em detritos toda a sua imensa fortuna na degustação de suas mobílias suntuosas e amontoadas e sem uso, no processo da esquizofrenia desejante e reprodutora, no fluxo de sucção de sua fina boca desumanizada para pôr fim ao exagerado dos seus lucros surpreendentes, no autofágico prazer do mínimo consumo diário de seu capital miraculoso, sangrento e luxuriante para transplantar ali a qualquer custo todo espírito do humanismo europeu que se deslocava em navios fretados, trazidos, no embaraço dos seus belos e artísticos objetos inúteis, de uma arte vã, fútil e suicida porque improdutiva, insaciável e escrota. Tal é a ironia daqueles esforços feitos a fim de engastar no horizonte os filamentos de ouro e tomar mais nítida a impressão de distância, para emporcalhar de ouro a empestada história - em doença, em loucura, em mortes e crimes impunes e imperiais (vários povos desapareceram ali) nos critérios de uma singular estética do capital, nos vazios e nos inócuos de um paganismo coquete, amoral e moderno. O AMANTE DAS AMAZONAS

sábado, 17 de dezembro de 2022

D. CONSTANÇA

Nunca teve uma amiga. Começava a falar de todas logo que fechava a porta da rua. Falava para Juca das Neves, falava muito rapidamente, a voz nervosa, fina, angustiada. Passava horas e horas em fofocas, maledicências, escondendo-se atrás de portas para ouvir, entreabrindo janelas para espiar. Vestia as pessoas com tudo o que pensava a respeito, a todos nutrindo um ódio que a corrompia por dentro. Era mesmo capaz de longa viagem pelo prazer de «saber». Sua face então se irradiava, seus olhos brilhavam, ela delirava. “Não me diiiiga, querida ...“. As novidades a mantinham viva. E o que ela não sabia a torturava, contratava pessoas para saber - “tenho de saber, juro que vou saber” - a sua vida dependia de informações, assim que diziam que Juca das Neves era meio surdo por causa da fina e incessante voz, que feria os tímpanos, com seu timbre cruel dissimulado na vozinha de menina indefesa. E durante o almoço D. Constança falava ininterruptamente, sem pausa, sem respirar, como se as palavras lhe queimassem a boca, o patati-patatá metálico, falando da vida alheia, e abanando-se, frenética, falando, e abanando-se, e falava junto ao marido, sussurrando-lhe ao ouvido, cutucando-o por baixo quando alguém se aproximava, e abanava-se, e era gentil e educada. O leque e a tagarelice maledicente alcançaram o seu maior esplendor na pessoa magra e franzina de D. Constança! Pois à medida que foi envelhecendo foi ficando pior. Começou a falar e abanar-se sozinha, sentada na cadeira de balanço onde se abanava e falava até tarde da noite. E sozinha falando, falando, e abanando-se, abanando-se, os olhos se fixaram numa característica sua, que era o “rabo de olho”, como ela dizia, já não olhando de frente para ninguém, não encarando ninguém, o olhar fixo nos lados e cantos das órbitas como se sempre procurasse ver e ouvir algo que se passava pelos lados e atrás, um olhar congelado numa expressão de ódio, e até hoje me lembro dela assim sentada, olhando para os lados e para trás, como cercada de inimigos, abanando-se frenética e falando aflita, falando mal de seres imaginários, de pessoas que já tinham morrido há muito e sozinha, esquecida...

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

A completa realização de P'ang Yün

A completa realização de P'ang Yün Rogel Samuel Primeiramente o texto tece o tempo. Não existe. O passado não existe, é passado. Não tente lembrar o passado. Deixo-o onde está. Onde (não) está. O presente não é tangível. Passa rápido. Ao tocá-lo já é outro, já não é. Quanto ao futuro... que futuro? Qual futuro? Ainda nada sabemos dele. Não é pensável, antes. Não tente julgar, não avalie as coisas que vierem aos olhos: não existe ordem a ser mantida nem sujeira a ser limpa. O dharma não tem vida (nem não vida). A realização está completa. Assim é o poema: “A realização última P'ang Yün O passado já é passado Não tente recuperar. O presente não fica Não tente tocá-lo. Momento a momento O futuro não veio Não pense nisto Antes. Tudo que vem ao olho, Deixe que seja Não há nenhuma ordem A ser mantida, Não há nenhuma sujeira A ser limpa. Com a mente realmente vazia Penetrado, o dharma Não tem nenhuma vida. Quando puder estar assim, Você completou A realização última. P'ang Yün”.

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

RATOS

RATOS. CHEGAMOS ao ponto deste caminho em que digo que, certa vez, eu me lembro bem que vi primeiro um risco preto entre as tábuas do chão. Era algo que passava como uma linha reta móvel preta. Um traço cinematográfico, contínuo. Depois se pareceu com minúscula cobra reta que se infiltrava entre as frestas da construção carcomida, algo que percorria o tempo, que atravessava o mundo, fluindo como se deslizasse para furar e vazar a terra. Aí então chegou a aparecer como um corpo maior, um corpo duro - um cabo, um rabo. Sim, aquilo era um rabo de rato. TALVEZ que uma ratazana saísse dali diante de mim, de sua ratada. Talvez. Ratânia-do-Pará. Talvez um ratão, um rato enorme, como ratão-d’água, ratão do banhado, roendo, moendo sob a terra, corroendo a casca, mascando e carcomendo a crosta, consumindo, devorando por baixo de numa mastigação constante. Ou mais. Ou o dorso preto, ou cinza escuro, de quase 15 centímetros de rabo, couro, rabo-de-couro e arganaz, murídeo - e atrás vinham outros, catitas, ratinhos, e mais um rato preto, de pilosidade eriçada, um camundongo quase gordo, coró, toró, curuá, sauiá, e mais. E mais. E eram muito mais ratos vindo chegando entrando no barracão, imburucus, gabirus, dezenas, centenas, milhares - o Manixi estava sendo consumido por ratos, e não só de noite como a qualquer hora do mesmo dia. Revelo que isso se passou naqueles anos, depois, em 1925. Quando presenciei o processo de decadência e morte do Manixi. Para tudo descrever do que então vi direi que os ratos, atrevidos, vorazes, famintos, se multiplicavam, agressivos. Todo o empenho de João Beleza, que administrava o espólio, toda a sua luta contra os ratos de nada adiantava, os ratos não desapareciam e aumentavam, dia a dia, não havia como salvar nada, nem quando conseguiu gatos, os gatos nada puderam fazer, acabaram mortos, os cadáveres dos gatos saqueados e comidos por ratos famintos, ávidos, múltiplos, como se fosse o Juízo Final. Dominado pelo furor, João Beleza arranjou uma jibóia para espantá-los, aos ratos, e salvar o barracão, mas a cobra sumiu e aí apareceu o regatão Saraiva Marques, homem que valia por muitos, e que recomendou e vendeu para João Beleza um veneno de rato a base de verde-da-Prússia. João Beleza passou a assim proceder, alimentando os ratos, todas as noites, servindo-lhes comida num tacho. Os ratos comiam um purê de mandioca, durante dias, cada vez mais, cada vez mais, até que se empanturraram que no último dia comeram purê envenenado. JÚLIA ria-se. Júlia a princípio anunciou. Depois sorriu, e logo já gargalhava, alto, nervosamente, ih ih ih em delírio, e os ratos iam morrendo na sua frente, e ela os via com interesse amistoso morrerem, um a um, e os via com afeto, Júlia tratava-os, embevecida e louca, via morrerem à luz do dia, tocava-os, ninhada aqui e ali, à beira do Igarapé punha-se às gargalhadas - os ratos parecendo decorar tudo com o colar de ratos mortos na linha d’água, e eram dezenas e centenas e milhares de ratos mortos, e Júlia ria-se com aqueles seres moribundos, e pegava-os e falava delicada, pelo rabo, exibia-os e envolvia-os e rindo os lançava nas águas condenadas do Igarapé do Inferno. Depois houve uma estranha paz no Seringal Manixi.

A PATRIA IMAGINÁRIA

A pátria real e a pátria imaginária Rogel Samuel Por: Rogel Samuel Em: 09/06/2008, às 01H59 “Não sejas um escritor, mas um profeta”, diz o verso de Antonio Quadros (1923-1993), o poeta português. Certamente assim os poetas eram conhecidos, na Grécia antiga. Que é um profeta? Profeta é o indivíduo que prevê o futuro, o que diz o que vai acontecer. “Não digas o que sabes nos teus versos, / Deixa para trás a ciência e a consciência; / Tudo aquilo que em ti não for ausência / São ideais perdidos, ou submersos.” É o poema. Não dizer o que sabe significa não repetir o passado, mas proferir o futuro, inaugurá-lo, fundá-lo. Falar do ausente, construir a presença daquilo que ainda não existe ou do que não está lá. O poema assim se chama “Poética contraditória”: Não digas o que sabes nos teus versos, Deixa para trás a ciência e a consciência; Tudo aquilo que em ti não for ausência São ideais perdidos, ou submersos. Abandona-te às vozes que não ouves, E liberta os teus deuses nos teus dedos; Não busques os sorrisos, mas os medos, E o que não for ignoto e só, não louves. Ser misterioso e triste, é ser poeta: Mesmo a luz que palpita nos teus cantos. É uma imagem heróica dos teus prantos. Percorre o teu caminho até ao fundo, E com os versos que achaste, aumenta o mundo. Não sejas um escritor, mas um profeta. É um poema do livro de António Quadros “Viagem desconhecida”, de 1952. Nesta região desconhecida do porvir o poema se lança, ouvindo as vozes, liberando os seus deuses, os seus medos, o seu mistério, o seu pranto. É um mergulho no caminho do herói, ou seja, do profeta. Do que profere. O que diz o que não sabe, o que ouve o que não foi dito, o que vê o que não está na frente de seus olhos. Ou seja, entra nos portal heróico e perigoso do mito. “António Quadros (1923-1993) defende que a nação portuguesa na sua essência (...) é dotada de um eschaton, de uma razão teológica, que consiste num diálogo ou numa dialética entre o humano e o divino: «Talvez nenhuma história humana, como a portuguesa, em seu esplendor, em seu claro-escuro e em seu negrume, seja tão dramaticamente exemplar desta dialéctica.» (...), escreveu Antonio Quadros Ferro (que deve ser seu filho). Ele chama isso de dialética entre Pátria Real e Pátria Imaginária. “As caravelas já não partem deslumbradas a desvelar o Cabo. Não. O tempo é outro. Mas os pescadores portugueses continuam na praia a fixar com olhos estáticos o mar infindável e a viver e a lutar e a sofrer e a morrer o destino do mar. E na imaginação das crianças e dos adolescentes, no inconsciente dos adultos frustrados numa fixação à terra que lhes parece injusta e odiosa, a ideia da aventura, da viagem, do descobrimento palpita como uma promessa e como uma fascinação" escreveu António Quadros. Confira em: http://antonioquadros.blogspot.com/

quinta-feira, 10 de novembro de 2022

120 POEMAS

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PRIMAVERA

A primavera é a estação dos risos, Deus fita o mundo com celeste afago, Tremem as folhas e palpita o lago Da brisa louca aos amorosos frisos. CASIMIRO DE ABREU

sexta-feira, 4 de novembro de 2022

O AMANTE DAS AMAZONAS

NUM movimento brusco, aquele guerreiro Numa voltou-se com as mãos crispadas e gritou som próprio dos felídeos, e ouviu-se pela floresta o rufar rumoroso no chão árido e uma comoção de olhos sangüíneos sob cabelos e tremor bélico da pele. Todo o seu poder cresceu e parecia precipitar-se com o fogo que ele despejara e se alastrava na paxiúba da maloca. Sua arma de longa sombra propagou-se no ar e abriu o crânio de um jovem Caxinauá que apareceu ao lado, precipitando-o ao fundo do solo - de uma órbita o globo ocular saiu, cuspido ao chão, como um ovo cozido rolando, uma bola, na poeira do chão. Arremessou uma pesada pedra sobre o inimigo que pula como tigre ferido e acossado, e com a carne rasgada ele grita, voz de trovão castigado. Sua face crispada de ódio, seus ombros afastados, ergue o braço com a pesada arma e avança para matar como um guindaste, erguido, o casco de enorme navio retirado do fundo das águas, as águas escorrendo como baba de um muco escuro e podre. Outros gritam e correm. O incêndio se desenvolvia largo, alto, e rasga e vence o ar da noite com suas asas de fogo, borboletas abertas. Grande e inexplicável medo se abate e se apodera sobre os Caxinauás assustados por algum Deus, e sobre todos a morte ia descendo e se espargindo com funesta noite de cólera paralisante, ausente toda força e toda coragem, neutralizados. Oh!, ela estava completamente queimada, envolta em chamas, nua, mas não sentia dor ou medo. Desapareceu na direção da sombra, esperando lá com as mãos vazias o adversário que persegue. Sim, ele vinha. E vinha com disposição de matar, com a escuridão. Procurou no agoureiro leito do Igarapé do Inferno uma pedra, mas só esbarrou com cadáveres esfacelados dos irmãos Caxinauás que o vulto do escuro sangue sepultava. O Numa tinha vindo buscar e procurava na água. Ela tinha dificuldade de limpar o sangue empastado nos seus olhos, isto que a oferecia ao inimigo próximo e audível, à sua procura, com a arma na mão. A hora era dele, do inimigo. O sangue queimava os olhos e ela estava desarmada. Silêncio. O inimigo escuta e espera a efetiva reação, mas não sabe onde estava, não a sente, e avança no escuro. Foi então que houve a intercepção de um guerreiro Caxinauá que se precipitou fugindo covardemente e foi atacado. Foi a hora de sair dali pois os dois se abraçaram para se matar e o Inferno os tragou. Ela estava mais distante do que pensava? Trezentos irmãos de raça exterminados. O incêndio iluminava a floresta e era visto do Palácio. Ela não estava preparada para o sacrifício? Frei Lothar, que apareceu de repente, a recebeu. Nunca mais olhou seu rosto num espelho. Zeca Batelão, não a quis mais, como mulher.

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

terça-feira, 4 de outubro de 2022

O NOME DO PAI

 

O NOME DO PAI

O NOME DO PAI – ROGEL SAMUEL

Na última vez que estive em Manaus resolvi passar por aquela Praça inclinada conhecida como dos Remédios.
A praça estava quase deserta sob o forte sol da tarde e só havia ali um menino com um gorro sentado num banco, imóvel, olhando fixo o grande rio que desfilava o seu negro mistério lá embaixo: o Rio Negro.
Mas ao passar eu o examinei de relance e vi que ele estava como que hipnotizado na sua contemplação sobre as águas.
Desci ainda uns dez passos e me voltei, pois minha curiosidade e estranheza me dominava para indagar e conhecer aquele estranho jovem. Teria talvez uns 16 anos.
- Dá licença, disse-lhe eu, sentando-me a seu lado, um tipo indígena, baixo, forte, cabelos muitos lisos, olhos amendoados fixos no horizonte.
Ele nada respondeu, fez apenas com enfado um gesto com a boca que parecia dizer “tanto faz você sentar aí, ou em outro lugar”.
- Como você se chama, insisti.
- Oceano, ele respondeu.
- Como? Indaguei, espantado.
- Oceano, disse-me ele outra vez, ou foi o que eu ouvi daquele seu sotaque espanhol.
- De onde você é, continuei, e ele me contou que era boliviano, que atravessou a fronteira para fazer compras para a mãe, a família pai, mãe e irmãs, mas não conseguiu regressar para a casa, fecharam a estrada e ele acabou sendo jogado em Manaus sem ter para onde ir.
Fiquei emocionado, esperando, mas nada mais falou.
Naquele momento passa uma bicicleta vendendo quentinhas de almoço, paguei e esperei para vê-lo comer com fúria, beber com sede o copo de refresco que vinha junto e me levantei para partir.
Foi só quando já tinha dado dez passos que escutei a sua voz:
- “Espera, como te llamas ? Cuándo lo volveré a ver?” – e senti uma aflição em suas palavras.
Pensei em lhe dizer a verdade, que voltava para o Rio de Janeiro naquela mesma noite, que nunca mais o veria, mas me lembrei de que ele estava só, sem pai, nem mãe e irmãs, e por isso menti:


- Em breve, disse-lhe eu, e atravessei a rua, sem lhe dar meu nome.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

AS PRIMAVERAS DE CASIMIRO DE ABREU

 

CASIMIRO DE ABREU



PRIMAVERAS.

Primavera! juventud Del anno,
Mocidad! primavera della vita.
Metastasio

I.
A primavera é a estação dos risos,
Deus fita o mundo com celeste afago,
Tremem as folhas e palpita o lago
Da brisa louca aos amorosos frisos.
Na primavera tudo é viço e gala,
Trinam as aves a canção de amores.
E doce e bela no tapiz das flores
Melhor perfume a violeta exala.
Na primavera tudo é riso e festa,
Brotam aromas do vergel florido,
E o ramo verde de manhã colhido
Enfeita a fronte da aldeã modesta.
A natureza se desperta rindo,
Um hino imenso a criação modula,
Canta a calhandra, a juriti arrula,
O mar é calmo porque o céu é lindo.
Alegre e verde se balança o galho,
Suspira a fonte na linguagem meiga,
Murmura a brisa: – Como é linda a veiga!
Responde a rosa: – Como é doce o orvalho!
II.
Mas como às vezes sobre o céu sereno
Corre uma nuvem que a tormenta guia,
Também a lira alguma vez sombria
Solta gemendo de amargura um treno.
São flores murchas; – o jasmim fenece,
Mas bafejado s’erguerá de novo
Bem como o galho do gentil renovo
Durante a noite, quando o orvalho desce.
Se um canto amargo de ironia cheio
Treme nos lábios do cantor mancebo,
Em breve a virgem do seu casto enlevo
Dá-lhe um sorriso e lhe intumesce o seio
Na primavera – na manhã da vida –
Deus às tristezas o sorriso enlaça,
E a tempestade se dissipa e passa
À voz mimosa da mulher querida.
Na mocidade, na estação fogosa,
Ama-se a vida – a mocidade é crença,
E a alma virgem nesta festa imensa
Canta, palpita, s’extasia e goza.




QUANDO TU CHORAS


Quando tu choras, meu amor, teu rosto
Brilha formoso com mais doce encanto,
E as leves sombras de infantil desgosto
Tornam mais belo o cristalino pranto.
Oh! nessa idade da paixão lasciva
Como o prazer, é o chorar preciso:
Mas breve passa – qual a chuva estiva –
E quase ao pranto se mistura o riso.
É doce o pranto de gentil donzela,
É sempre belo quando a virgem chora:
– Semelha a rosa pudibunda e bela
Toda banhada do orvalhar da aurora.
Da noite o pranto, que tão pouco dura,
Brilha nas folhas como um rir celeste,
E a mesma gota transparente e pura
Treme na relva que a campina veste.
Depois o sol, como sultão brilhante,
De luz inunda o seu gentil serralho,
E às flores todas – tão feliz amante –
Cioso sorve o matutino orvalho.
Assim, se choras, inda és mais formosa,
Brilha teu rosto com mais doce encanto:
– Serei o sol e tu serás a rosa...
Chora, meu anjo, – beberei teu pranto!


Rio – 1858.




VISÃO.

Uma noite, meu Deus, que noite aquela!
Por entre as galas, no fervor da dança,
Vi passar, qual num sonho vaporoso,
O rosto virginal duma criança.
Sorri-me – era o sonho de minh’alma
Esse riso infantil que o lábio tinha:
– Talvez que essa alma dos amores puros
Pudesse um dia conversar co’a minha!
Eu olhei, ela olhou... doce mistério!
Minh’alma despertou-se à luz da vida,
E as vozes duma lira e dum piano
Juntas se uniram na canção querida.
Depois eu indolente descuidei-me
Da planta nova dos gentis amores,
E a criança, correndo pela vida,
Foi colher nos jardins mais lindas flores.
Não voltou; – talvez ela adormecesse
Junto à fonte, deitada na verdura,
E – sonhando – a criança se recorde
Do moço que ela viu e que a procura!
Corri pelas campinas noite e dia
Atrás do berço d’ouro dessa fada;
Rasguei-me nos espinhos do caminho...
Cansei-me a procurar e não vi nada!
Agora como um louco eu fito as turbas
Sempre a ver se descubro a face linda...
– Os outros a sorrir passam cantando,
Só eu a suspirar procuro ainda!...
Onde foste, visão dos meus amores!
Minh’alma sem te ver louca suspira!
– Nunca mais unirás, sombra encantada,
O som do teu piano à voz da lira?!...

Setembro – 1858




AMOR E MEDO.
***

I.
Quanto eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, oh! bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
“– Meu Deus! que gelo, que frieza aquela.”
Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco...
És bela – eu moço; tens amor – eu medo!
Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes,
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.
O véu da noite me atormenta em dores,
A luz da aurora me intumesce os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.
É que esse vento que na várzea – ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!
Ai! se abrasado crepitasse o cedro,
Cedendo ao raio que a tormenta envia,
Diz: – que seria da plantinha humilde
Que à sombra dele tão feliz crescia?
A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho,
E a pobre nunca reviver pudera
Chovesse embora paternal orvalho!

II.
Ai! se eu te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas!...
Ai! se eu te visse, Magdalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos – palpitante o seio!...
Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo,
Trêmula a fala a protestar baixinho...
Vermelha a boca, soluçando um beijo!...
Diz: – que seria da pureza d’anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
– Tu te queimaras, a pisar descalça,
– Criança louca, – sobre um chão de brasas!
No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!
Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço
Anjo enlodado nos pauis da terra.
Depois... desperta no febril delírio,
– Olhos pisados – como um vão lamento,
Tu perguntaras: – qu’é da minha c’roa?...
Eu te diria: – desfolhou-a o vento!...
______
Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito,
És bela – eu moço; tens amor, eu – medo!...

Outubro – 1858.



MINH’ALMA É TRISTE.
Mon coeur est plein – je veux pleurer!
Lamartine.
I
Minh’alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o albor da aurora,
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.
E, como a rola que perdeu o esposo,
Minh’alma chora as ilusões perdidas,
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas.
E como notas de chorosa endecha9
Seu pobre canto com a dor desmaia,
E seus gemidos são iguais à queixa
Que a vaga solta quando beija a praia.
Como a criança que banhada em prantos
Procura o brinco que levou-lhe o rio,
Minh’alma quer ressuscitar nos cantos
Um só dos lírios que murchou o estio.
Dizem que há gozos nas mundanas galas,
Mas eu não sei em que o prazer consiste.
– Ou só no campo, ou no rumor das salas,
Não sei porque – mas a minh’alma é triste!

II
Minh’alma é triste como a voz do sino
Carpindo o morto sobre a laje fria;
E doce e grave qual no templo um hino,
Ou como a prece ao desmaiar do dia.
Se passa um bote com as velas soltas,
Minh’alma o segue n’amplidão dos mares;
E longas horas acompanha as voltas
Das andorinhas recortando os ares.
Às vezes, louca, num cismar perdida,
Minh’alma triste vai vagando à toa,
Bem como a folha que do sul batida
Bóia nas águas de gentil lagoa!
E como a rola que em sentida queixa
O bosque acorda desde o albor da aurora,
Minh’alma em notas de chorosa endecha
Lamenta os sonhos que já tive outrora.
Dizem que há gozos no correr dos anos!...
Só eu não sei em que o prazer consiste.
– Pobre ludíbrio de cruéis enganos,
Perdi os risos – a minh’alma é triste!

III
Minh’alma é triste como a flor que morre
Pendida à beira do riacho ingrato;
Nem beijos dá-lhe a viração que corre,
Nem doce canto o sabiá do mato!
E como a flor que solitária pende
Sem ter carícias no voar da brisa,
Minh’alma murcha, mas ninguém entende
Que a pobrezinha só de amor precisa!
Amei outrora com amor bem santo
Os negros olhos de gentil donzela,
Mas dessa fronte de sublime encanto
Outro tirou a virginal capela.
Oh! quantas vezes a prendi nos braços!
Que o diga e fale o laranjal florido!
Se mão de ferro espedaçou dois laços
Ambos choramos mas num só gemido!
Dizem que há gozos no viver d’amores,
Só eu não sei em que o prazer consiste!
– Eu vejo o mundo na estação das flores...
Tudo sorri – mas a minh’alma é triste!

IV
Minh’alma é triste como o grito agudo
Das arapongas no sertão deserto;
E como o nauta sobre o mar sanhudo,
Longe da praia que julgou tão perto!
A mocidade no sonhar florida
Em mim foi beijo de lasciva virgem:
– Pulava o sangue e me fervia a vida,
Ardendo a fronte em bacanal vertigem.
De tanto fogo tinha a mente cheia!...
No afã da glória me atirei com ânsia...
E, perto ou longe, quis beijar a s’reia
Que em doce canto me atraiu na infância.
Ai! Loucos sonhos de mancebo ardente!
Esp’ranças altas... Ei-las já tão rasas!...
– Pombo selvagem, quis voar contente...
Feriu-me a bala no bater das asas!
Dizem que há gozos no correr da vida...
Só eu não sei em que o prazer consiste!
– No amor, na glória, na mundana lida,
Foram-se as flores – a minh’alma é triste!

Março 12. – 1858.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

BILAC, DON, DANTE, RAINHA

 

BILAC



BILAC 

ROGEL SAMUEL 


No primeiro verso do soneto "Aos sinos" diz Bilac: "Plangei, sinos! A terra ao nosso amor não basta..." Lembro-me de ter lido em Hannah Arendt que, em 1957, foi lançado o primeiro satélite, foi saudado com alegria, diz ela, como "o primeiro passo para libertar o homem de sua prisão na terra". Por que não gostamos da Terra? Por que a destruímos? "A Terra, diz, é a própria quintessência da condição humana" [A condição humana]. 

Cansados de ânsias vis e de ambições ferozes, 
Ardemos numa louca aspiração mais vasta, 
Para trasmigrações, para metempsicoses! 

Entro em casa. Ouço a fita de Christopher Schindler. É a
gravação do concerto de 15 de junho de 2000, Portland, a que
assisti. 

Bilac atual, poderoso. 
Cantai, sinos! Daqui, por onde o horror se arrasta, 
Campas de rebeliões, bronzes de apoteoses, 
Badalai, bimbalhai, tocai à esfera vasta! 
Levai os nossos ais rolando em vossas vozes! 

Releio sempre Bilac. Os modernistas o odiavam. Tem momentos supremos. 
"Politicamente, diz Arendt, o mundo moderno em que vivemos surgiu com as primeiras explosões atômicas". Chris toca o "Tango", de Castro, um argentino. Depois arremete a "Sonata Dante", de Liszt, que busco no soneto "Dante no Paraíso": 


Enfim, transpondo o Inferno e o Purgatório, Dante 
Chegara à extrema luz, pela mão de Beatriz: 
Triste no sumo bem, triste no excelso instante, 
O poeta compreendera o mal de ser feliz. 

As notícias do mundo vêm devagar, entram pela TV, de muito
longe, como se de outro universo, lugar muito distante, cheio de guerras, miséria. Qual o "mal de ser feliz"? Elas penetram a sala de trabalho como penetra o fio de fumaça de um incenso. A terra ao nosso amor não basta... Fio de fumo da "fragilidade dos negócios humanos". 

A Sonata de Liszt canta, como Carpeaux: "Meu Dante" - "Dante pode ter sido, diz ele, em vida, um homem intratável, irrascível e orgulhoso, convencido do seu direito de ser lembrado e venerado por todos os séculos. Mas essa pretensão enorme se reduz, afinal, à exigência de ser lido." Otto Maria Carpeaux foi nosso paraninfo, na FNFi. Como era gago, seu discurso foi lido por um colega nosso. Atravessei a vida 
daquele tempo lendo seus artigos diários, no "Correio da
Manhã". De tanto lê-lo, apreendi a técnica: quatro parágrafos. O primeiro era uma espécie de introdução. O segundo, uma tese, uma proposta, uma opinião.
O Terceiro o inverso, o contrário. O quarto e último
parágrafo, que era a conclusão, a superação da contradição. Assim, o ensaio, geralmente pequeno, era a dialética de um tema. 

Todos os anos costumo reler a Divina Comédia inteira, diz ele. Lembro-me bem, dele. Na Universidade do Brasil. Do Reitor Pedro Calmon. 

Um dia, estudando na Biblioteca, senti que alguém estava atrás de mim. Era Pedro Calmon. Interessado no que eu estava lendo. Conversamos, ou melhor, ele falou. Calmon era homem extraordinário. Como eu tinha uns 19 anos e cara de menino, perguntou de onde eu era, como morava e vivia. Indagou se a comida do bandejão era boa (dizem que às vezes
comia lá, nunca vi). Disse-me que se eu precisasse de qualquer coisa teria nele um pai. Deu-me seu cartão. Era homem imprevisível. (A terra ao nosso amor não basta...) Certa vez, vindo pela Cinelândia de carro, Calmon viu um policial espancando um menino de rua. "Pare o carro!" 
e partiu contra o guarda, aos gritos: "Pare com isso! Pare com isso! Ele é apenas uma criança!" 
Vi-o numa das primeiras passeatas de estudantes. Ele apareceu sob estrondosa vaia. Queria fazer parar a massa, que rumava pela Rio Branco. Chorava. Tentava falar. "Não façam isso!" vociferava. "Não provoquem a reação! Vocês vão radicalizar!" 
Tinha razão, se viu depois. ("Campas de rebeliões, bronzes de 
apoteoses"). Anos depois fui seu vizinho, na Rua Santa Clara, 
Copacabana. Ele morava numa grande casa estilo (creio) normando. A esquerda sempre o desprezou, porque os presidentes da ditadura freqüentavam aquela casa. Quando ele morreu, os jornais não deram uma linha, exceto o que saiu no obituário. Foi Ministro da Educação (1950-51). Sua "História do Brasil" em 7 volumes é citada por Roberto Simonsen, que diz na "História Econômica do Brasil" se baseou em Euclides, Afrânio Peixoto, Gilberto Freire e Pedro Calmon para "fixar o valor do nosso homem, como fator de produção". Força de trabalho morena. Calmon foi um dos poucos convidados à cerimônia da coroação, na Inglaterra. 

Quando a rainha esteve aqui, meu amigo Don Kulatunga Jayanetti, monge budista do Sri Lanka, foi convidado por um embaixador asiático. Havia uma fila, para cumprimentá-la. Don parou a fila, Sua Majestade conversou com ele, revelou conhecimento e interesse budista. O Príncipe, seu esposo, continuou o diálogo, lhe disse ter feito um retiro de meditação Vipássana, no Ceylão. Mas... 

Ma la notte risurge e oramai 
é da partir, ché tutto avem veduto.

A QUARTA REIMPRESSÃO DA SEXTA EDIÇÃO


 

terça-feira, 23 de agosto de 2022

Seminário sobre O AMANTE DAS AMAZONAS

 Ontem houve seminário sobre O AMANTE DAS AMAZONAS em Niterói pelo dr. Fernando Simplicio dos Santos da Universidade Federal de Rondônia na UFF (IV seminário PROCAD Capes) Campus Gragoata' Literatura e imaginario amazônico: Apogeu e decadência do ciclo da borracha no romance O AMANTE DAS AMAZONAS de Rogel Samuel.

IV SEMINÁRIO PROCAD-AM (CAPES) 2022
História literária; circulação literária; Análise de discursos literários e sociais
23 a 26/08 (UFF Campus Gragoatá, Niterói-RJ
Em sua edição de 2022, o IV Seminário PROCAD-AM (CAPES), programa firmado entre PPGL-UFRR/MEL-UNIR e Poslit/UFF, com auxílio e financiamento da CAPES, intenta divulgar investigações sobre um corpus de discursos (de sentidos históricos e socialmente referenciados) literários e sociais, realizados em diferentes línguas, e produzidos, preferencialmente, a partir da segunda metade do século XIX com vistas a propiciar a elaboração de novas teorias e modelos de análise e de interpretação sobre as peculiaridades da cultura amazônica no
conjunto da cultura brasileira.
LOCAL: UFF Campus Gragoatá, Auditório Ismael Coutinho - sala 218 bloco C.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

segunda-feira, 1 de agosto de 2022

PRIMEIRO DISCURSO DO BUDA


 DHAMMACAKKAPPAUATTANASUTTAM


Discurso da Inauguração do Reino da Verdade

[Literalmente: Discurso de por em ação a Roda da Verdade ou do Dhamma, a Doutrina, talvez o mais importante de todos os Suttas, pois nele se expões as chamadas QUATRO NOBRES VERDADES, ponto de base de toda a teoria budista. Foi o Primeiro Discurso do Sublime a tratar da Dharma, reencontrando os seus cinco antigos discípulos]

NAMÔTASSÊ BHAGUEVÊTO AREHATÔ SAMMÁ SAMBUDHASSÊ!
Louvado seja Ele, o Valioso, o Perfeito, o Supremamente Iluminado!

NAMÔTASSÊ BHAGUEVÊTO AREHATÔ SAMMÁ SAMBUDHASSÊ!
Louvado seja Ele, o Valioso, o Perfeito, o Supremamente Iluminado!

Assim foi ouvido por mim:
Naquele tempo o Sublime estava em Baranasi, Isipatana, no Parque das Gazelas, quando, então, o Sublime se dirigiu aos monges que formavam um grupo de cinco:
“Ó monges, existem estes dois extremos que não devem ser freqüentados por um recluso; há este apreço pelos divertimentos do mundo, com respeito aos prazeres sensuais, baixo, comum, pertencente ao homem comum, (caminho este que é) desprezível, conectado com sofrimento; e há este apego à auto-mortificação, (que é cheio de) sofrimento, ignóbil, conectado com sofrimento. Ó monges, sem se aproximar desses dois extremos, o caminho do meio foi bem realizado pelo Conquistador, produzindo introspecção, produzindo conhecimento, levando à serenidade, especial conhecimento, mais alta iluminação, Nibbana.

E monges, o que é este caminho do meio que foi bem realizado pelo Conquistador, produzindo Introspecção, produzindo conhecimento, levando à serenidade, especial conhecimento, correta iluminação, Nibbana?
Este não deve ser nenhum outro além do Nobre Óctuplo Caminho, a saber: Correta visão, correta intenção, correta palavra, correta ação, correto meio de subsistência, correto esforço, correta atenção e correta concentração. Este, ó monges, é o caminho do meio realizado pelo Conquistador, produzindo introspecção, produzindo conhecimento, que leva à serenidade, especial conhecimento, mais alta iluminação, Nibbana.

Esta, ó monges, é a Nobre Verdade do Sofrimento: Nascimento é sofrimento, velhice é sofrimento, doença é sofrimento, morte é sofrimento, união com o indesejável é sofrimento, separação do amado é sofrimento, não conseguir o que se deseja é sofrimento, e assim os fatores dos cinco agrupados são sofrimento. Este, ó monges, é a Nobre Verdade da raiz do sofrimento: A avidez de todos os meios que causam vir-a-ser no próximo mundo, que consiste no apaixonado deleite que busca por prazer nisto ou naquilo, ou seja: avidez por prazeres sensuais, avidez por vir-a-ser, avidez por não vir-a-ser.
Este é, então, ó monges, o Nobre Caminho da Extinção do Sofrimento: pela extinção da vida, mesma, através do radical desapego, da renúncia, do abandono, da liberdade, da não-prisão. Este, ó monges, é o Nobre Caminho, o Caminho que leva à extinção (desta miséria, deste mar de sofrimento). Este é o único, o Nobre Óctuplo Caminho, a saber: Correta visão, correta intenção, correta palavra, correta ação, correto meio de subsistência, correto esforço, correta atenção e correta concentração.

Este é a Nobre Verdade do Sofrimento, para mim, ó monges, com referência às outras doutrinas nunca ouvida antes, o olho nasceu, a cognição nasceu,  a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu.
Sem dúvida esta Nobre Verdade do Sofrimento poderia ser compreendida por mim, ó monges, com referência às outras doutrinas isto nunca foi ouvido antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu. Sem dúvida esta Nobre Verdade do Sofrimento foi compreendida por mim, ó monges, com referência às outras doutrinas nunca ouvidas antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu. Esta é a Nobre Verdade da raiz do sofrimento, para mim, ó monges, com referência às outras doutrinas nunca foi ouvida antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu.

Sem dúvida esta é a Nobre Verdade que a raiz do sofrimento pode ser abandonada, por mim, ó monges, com referência às outras doutrinas isto nunca foi ouvido antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu.

Sem dúvida esta Nobre Verdade da raiz do Sofrimento foi abandonada, para mim, ó monges, com relação às outras doutrinas isto nunca foi ouvido antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu. Sem dúvida esta é a Nobre Verdade da Extinção do Sofrimento, para mim, ó monges, com relação às outras doutrinas isto nunca foi ouvido antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu.

Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do Sofrimento pode ser realizada, para mim, ó monges, com relação às outras doutrinas isto nunca foi ouvido antes, o olho nasceu, a cognição nasceu, a sabedoria nasceu, o conhecimento nasceu, a luz nasceu. Sem dúvida esta Nobre Verdade da extinção do Sofrimento foi realizada ...

Sem dúvida este é o Nobre Caminho que leva à extinção do Sofrimento ... Sem dúvida este Nobre Caminho que leva à extinção do Sofrimento pode ser desenvolvido ... Sem dúvida este Nobre Caminho que leva à extinção do Sofrimento foi desenvolvido.

Enquanto, ó monges, então, com referência a estas Quatro Nobres Verdades, os três círculos, doze vezes repassados, a visibilidade concretamente real e clara não estava pura, eu ainda não, ó monges, declarava ao mundo, com seus deuses e maras, brahmas, reclusos e povo, incluindo os brâhmanes, junto com os deuses e seres humanos, que Eu realizei a insuperável e supremamente completa iluminação. Depois de um certo ponto, ó monges, com o olhar firme nestas Quatro Nobres Verdades, então, os três círculos, doze vezes realizados, a visibilidade concretamente real e clara começou a ficar pura.

Então Eu, ó monges, na inteireza do Universo, com os devas e os maras, os brahmas, os reclusos e o povo, incluindo os brâhmanes junto com os devas e seres humanos, declaro que Eu realizei a insuperável completa iluminação. A luz da visão cognitiva nasceu e ficou clara para mim. A soltura e amplidão de minha mente com nada é perturbada. Este é o meu último nascimento. Não há mais um futuro vir-a-ser agora”.
O Sublime disse isto. Os monges que pertenciam ao grupo dos cinco ficaram felizes e aprovaram as palavras do Sublime.

Quando esta explicação estava bem dita, para o venerável Kondanna, nasceu o Olho do Dhamma, livre de mancha, livre de pó (e ele disse:)
“Qualquer que seja o real que nasça, isto tem a qualidade de morrer”.

Quando a Roda do Dhamma foi posta a rolar pelo Sublime, os devas da terra alardearam a notícia:
“Pelo Sublime, em Baranasi, Isipatana, no Parque das Gazelas, a insuperável Roda do Dhamma foi posta a rolar, a qual nunca pôde ser posta a rolar por nenhum recluso ou brâhmane ou deva ou mara ou brahma ou por ninguém deste mundo.
Tendo ouvido a notícia dos devas da terra, os devas Catummaharajika proclamaram a notícia:
“Pelo Sublime, em ...”
Tendo ouvido a notícia dos devas Catummaharajika os devas Tavatinsa proclamaram a notícia:
“Pelo Sublime, em ...”
Tendo ouvido dos devas Tavatimsa, os devas Yamma proclamaram a notícia:
“Pelo Sublime, em ...”
Tendo ouvido dos devas Yama, os devas Tusita proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Tusita, os devas Nimmanarati proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Nimmanarati, os devas Paranimmitavasavatti proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Paranimmitavasavatti, os devas Brahmaparisajja proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Brahmaparisajja, os devas Brahmapurohita proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Brahmapurohita, os devas Mahabrahma proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Mahabrahma, os devas Parittabha proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Parittabha, os devas Appamanabha proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Appamanabha, os devas Abhassara proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Abhassara, os devas Parittasubha proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Paritassubha, os devas Appamanasubha proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Appamanasubha, os devas Subhakinhaka proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Subhakinhaka, os devas Vehapphala proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Vehapphala, os devas Aviha proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Aviha, os devas Atappa proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Atappa, os devas Sudassa proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Sudassa, os devas Sudassi proclamaram a notícia.
Tendo ouvido dos devas Sudassi, os devas Akanitthaka proclamaram a notícia:
“Pelo Sublime, em Baranasi, Isipatana, no Parque das Gazelas, a insuperável Roda do Dhamma foi posta a rolar, a qual nunca pôde ser posta o rolar por nenhum outro asceta ou Brâmane, ou deva ou mara, ou brahma ou por ninguém deste mundo”.

Então, naquele momento, desde que aquela notícia foi proclamada, um grande rumor nasceu no mundo dos Deuses. E os Dez Mil Universos estremeceram, sacudiram ruidosamente. Grandes e ilimitadas luzes apareceram no universo, vindas de longe, do alcance do poder dos Deuses.
Então o Sublime proferiu uma exclamação de alegria: “De fato meu querido Kondañña atingiu o Conhecimento, de fato meu querido Kondañña atingiu o Conhecimento!”.  E por esta razão Annakondanna passou a se chamar venerável Kondañña.

Que pela força desta verdade você tenha vida virtuosa, longa e feliz! Que pela força desta verdade todos os seus problemas desapareçam! Que pela força desta verdade você tenha feliz e longa vida!

sexta-feira, 22 de julho de 2022

A PANTERA


 Pretendia ir para os Himalaias, mas um devastador terremoto com milhares de mortos me deixou paralisado. Era um mundo em guerra. Eu me via em busca de segurança, num mundo inseguro, móvel, tinha pesadelos em que era caçado por tropas inimigas. Eu só via destruição e morte por toda parte. Tudo era um horror, tudo era a catástrofe.

 Reencontrei Helene Reval no Metro. Eu continuava e mantinha algumas encomendas e continuei desenhando para me ocupar. Eu não podia parar, minha “vida” era aquilo. Era o que eu fazia com felicidade, com facilidade. Continuava morando em hotéis baratos, o que era um conforto para quem era só. Não frequentava a vida noturna, não ia a reuniões, nada. Vivia escondido, recluso. Desenhava no hotel, sobre a cama. Só saía para o almoço, voltava no fim da tarde, me trancava para trabalhar, até tarde. Não tinha amigos, não frequentava ninguém.

Apesar de tudo, era feliz. Às vezes me punha a andar sozinho pelos campos e montanhas fora de Paris, pernoitava em pousadas.

Fugindo do inverno fui para a Denia, na Espanha, onde aluguei um quarto numa casa na montanha em frente ao mar. Era um lugar alto, chamado Predreger. A vista era magnífica. Chegar em Denia era um tanto complicado, mas valeu, de Paris a Alicante e de lá num ônibus para Denia. Descia a pé e voltava de táxi para subir a montanha. Mas valeu. O mundo, lá de cima, era imenso. Eu podia morar ali pelo resto da vida.  Todos os dias, caminhava pela estrada, ia até a praia, onde era bom sentir o vento da vida livre. Em casa, desenhava. O desenho, para mim, era um prazer. Cidade pequena, quase não se via ninguém nas ruas. Poucos restaurantes, poucas lojas. Comprei um aparelho de som, discos.

Mas voltei a Paris porque uma freguesa me encomendou um vestido. Eu precisava de dinheiro. Em Paris, num hotel, no apartamento de fundos, térreo, tinha um jardim triste, escuro.

Foi quando reencontrei Helene Reval, no Metrô. Mas ela estava outra, mergulhada em funda, forte depressão.

No fim suicidou-se em sua casa, ingerindo uma overdose de remédio para dormir.

Senti-me culpado.

Eu não esperava aquilo. Como um choque. Foi como se eu a tivesse matado. 

 Nas férias fui para Bournemouth. Lá aluguei um quarto numa casa que ficava longe de tudo, ao lado de um bosque cuja travessia me apavorava por escura, cheia de lama e onde havia, soltos, cães de caça que eu jurava que me iam caçar. Eram cães dos moradores ingleses das adjacências que pela manhã os soltavam. Eu temia um ataque, eu era a caça.

O dono da casa era um jovem com quem estabeleci logo uma forte relação de amizade.

- Não tenha medo, me disse uma amiga, são cães civilizados... vai ver que nem latem...

Eu não acreditava e, enquanto estava lá, um cão atacou uma senhora inglesa. Quase a matou.