quarta-feira, 18 de julho de 2007


Canto dois

Rogel Samuel

Sucede que assentou num banco de pedra
com todo pedantismo que de sempre
lhe era familiar. Naquela praça distante
ficava a esperar e a pensar
- mas o que estava esperando senão morte
neste ponto nem via que por ali
poderiam encontrá-lo. As lanternas
que partiam iluminavam-no violentamente
de vermelho. E ele espera calado
com suaves sentimentos depressivos
havia andado tanto depois de ter fugido
que atrás dele no largo da praça estariam
mas ele nada mais queria fazer. As crianças
corriam gritos pela noite. Morna e plácida
provinciana geografia, geometria mortal
irmã do sonho. Dois velhos caminhavam pelas
sombras da noite, cada um com seu embrulho.
Ele estava bem, ali. E até poderia
dormir sob os faróis dos carros que cruzavam
o que sentia. Em breve, porém, ficou sentindo
um gosto mole de aço e de azedume
como se o vento que vinha sobre ele reto
pudesse lhe cavar um fosso dentro
Às vezes algumas lembranças familiares
o levavam num passeio da imaginação
e era como se sua mãe, tia e sobrinha
dissessem ser agradável viver ali
e de pensar naquelas pessoas ternas
não havia os tais carros e seus sistemas.
O pregador e seu dilema. Um viver que o sustenta,
circunda, pega, o põe indiferente.
Ele nada mais via naquele fundo
tudo que estava, tudo que faltava estava ali.
A noite que o circunda nas vidraças
altas prolongava aquela letargia e acomodação.
Era tempo. Pois no dia em que almoçaram juntos
havia muito sol. Depois do almoço
andaram até a margem, a praia onde estavam
sempre. Havia um vento, uma frescura quase fria,
e o gosto na boca era de pomar
Todas as reverberações no tanque
além do gradil de ferro ofuscava por momentos
O mundo enquadrado estava claramente
limpo, sadio, em sossego. Ele tomava
de algo no bolso e começava por alguns instantes
a brincar. E o metálico do papel
que o envolvia riscava o céu de diamantes
Mas o sabor era excelente, a dissolução
lenta, excitante. Salivava. Estava alegre
de estar sentindo. Havia pássaros descendo.
Os edifícios agora na manhã
espelhos de fantásticas vitrines. A camisa
aberta com suas asas desarticuladas
exibindo o ventre arqueado. Ele tinha naquele
instante a silhueta mais de pássaro do que
do pobre rato e, descendo a vista poder-
se-ia ver a sua forte carnação. E desde o pescoço
sólido até as pernas, tesas, tensas, quase tortas
o seu corpo se contorcia e se deslocava
numa dança que andava. Tudo viu. Andou
sem jeito até bem perto do vidro. E um grupo
de turistas passava. Alegres e por detrás
no fundo da imagem. Alegres, falavam, não
o viam, nenhum deles. Sua presença era dureza
e aridez. E tendo visto saiu assombrado
da marquise, da rua com seus gritos com
seus giros e para lá se dirigiu, seus passos
sobre a calçava levavam, vagava
Um bar fechava as portas. A noite
era dos afastados lampiões que se apagavam
e uma leitosa névoa cinza anunciava
a madrugada. Seus sapatos molhados
seus olhos molhados. Na mecânica
da tristeza de andar, sem atinar, sem saber para quê.
Procurava e ter para onde vir não, não mais
chorava estava diante da nobre descoberta
passara sombra futuro deixava
inquietar pelo menos durante aquele
tempo mas como se mudava alternava era
possível que em breve nova orda deprimente
o tomaria como uma agitação nervosa
angustiante ele fugia e na realidade
procurava andava atrás da fuga era
possível que soubesse e dele era o que
não tinha bem certeza o perseguiam
hoje mesmo o pensava a fuga era uma
engrenagem necessária e exercera
como o que tentava alcançar e não sabia
e o alcançava rodeando aquela parte daquela
cidade perigosa das pessoas cujas portas
franqueavam sem que pudesse regressar
sensação de que tudo estava excluído para
quando entrou experimentou logo
a solidão daquele espaço vazio
atravessando a área descobriu no outro
o lado o disfarce a saída que apontava
e uma estrada que partia sempre
e ninguém passava por aquela estrada só
os inúteis os demônios inúteis o fundo descortinava
o vale as grandes montanhas além
morcegos de vento passavam por ali idos
musguentos com estrídulos chiados estilhaços
quebravam o ar com seus gritos suas
negrinhas asas cobrindo o sol a lua estrelas.
e ouvir o trinar grave e reto
de certas aves ocultas travo rouco baixo e grave
monstro e seu arquejar forte seu resfolegar
abrindo um túnel de torpor e medo as abas da morte
se abrindo par em par e rolando aquela parte
se postou para frente oh estrada! quando vinha
soturno a triste impressão que navegava
a luz da morte seus faróis aquela parte
obscura e perdida onde ocorria tudo
chamado vento sangue não

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