sábado, 8 de dezembro de 2007

ALÉM DO AFEGANISTÃO

ALÉM DO AFEGANISTÃO

ROGEL SAMUEL

A ameaça nos ronda. É falta de poesia. Eu vinha pela Tiradentes, passo
pela Rua Luiz de Camões, esquecida. Depois, a Travessa das Belas Artes.
Lá, só poucas mulheres ("da vida"), decadentes. Esperam fregueses, à luz
do dia. A seguir, o Beco do Tesouro. Nada mais pobre. "Proibidos beijos
ousados", está escrito no cardápio da Adega Flor de Coimbra. Em sonhos,
no meio do conflito. Estresse de notícias. Estamos assistindo ao fim da
Internet, como espaço livre de opinião, sem limites. A censura vai
acabar com a webcultura. Marca o fim da vida e arte virtual. Nasce a
desconfiança, a incerteza. Vamos nos entocar nos redutos, voltar à
civilização do papel, um estágio anterior ao micro: Fim do digital
público (melhor para mim, pois só assim paro de escrever essas crônicas
e me dedico a terminar, antes de morrer, os livros que tenho na gaveta).
Restritos são "os beijos ardentes". Lembro-me de um soneto de Olegário
Mariano, que não está nas suas "Obras Completas" e que começa: "As
coisas boas da vida, tu podes ter sem comprar". Há os versos do poeta
indiano antigo Shantideva, que dizem:

Quaisquer flores e frutos que haja,
Quaisquer tipos de ungüentos,
Tudo o que é precioso neste mundo,
E todas suas puras águas refrescantes.

Montanhas de pedras preciosas, e assim,
As solitárias florestas, a alegria calma,
Árvores brilhantemente adornadas com flores,
Os ramos pesados de excelentes frutos.

Lagos e lagoas adornadas de lótus,
Gansos selvagens que enchem o céu
Com gritos tão bonitos—
Tudo o que não tem posse neste vasto universo.

Tendo tudo isso em mente, eu ofereço
Para você e seus descendentes;
Por pura e grande compaixão
Amavelmente aceite este presente.

Eu sou pobre e não tenho nenhuma riqueza,
Eu nada tenho mais para oferecer,
Assim por esta intenção amável pelos outros,
Aceite também isto por mim.

Depois de velho, recolho-me ao sofá, acompanhado da novela da Globo "O
Clone". A paisagem árabe pergunta: a emissora previu o 11 de setembro? A
qualquer momento, no vídeo, vai aparecer Osama ao lado de Stenio
Garcia. A música árabe diz "Allá al-wa ka-bá", que não sei como se
escreve, ou Deus seja louvado. E Deus Salve a América. O meu amigo
Kaled, hoje em Belo Horizonte, iniciou-me no Islã. Começou pela
coalhada, com sal e azeite. A cordialidade árabe lembra o banquete que,
em 1952, o filho do rei da Arábia Saudita Ibn Sa'ud ofereceu a Onassis:
No Palácio de Riad havia dançarinos comedores de fogo, cantoras e
músicos. E foi servido um camelo, que era "recheado" com um cervo, que
era recheado com um carneiro e assim sucessivamente até que o recheio
era uma pomba. 15 horas no forno, regado com óleos perfumados e ervas
finas. Exige dezenas de robustos cozinheiros para poder virar o
monstruoso assado, sempre no mesmo ritmo. Depois do repasto, Onassis
deixou o palácio levando bons contratos comerciais assinados e duas
maravilhosas espadas de ouro maciço, presente do rei (Cafarakis, "O
fabuloso Onassis", p. 93). É certo que, para agradar ao rei, Onassis
desembarcou com uma bagagem de presentes "capaz de encher dois andares
das Galerias Lafayette", que distribuiu para o povo. Para o rei, jóias,
ouro e pedras preciosas. Do rei também ganhou um casal de canários, que
Onassis chamava de Caruso, e que viajava com ele pelo mundo, presente do
Rei Ibn Saud. Onassis venceu os árabes com o charme, não deu um tiro. E
transportaria todo o petróleo da Arábia através do mundo devido
unicamente à elegância de seu trato social. Os dirigentes e generais do
mundo moderno deviam aprender a ler como eu biografia e arte culinária,
e não tratados de guerra. Seriam mais eficazes. "Deus criou apenas a
água. Mas o homem fez o vinho", disse Victor Hugo, numa tabuleta da
Adega Flor de Coimbra. O vinho faz esquecer, desarma os espíritos, as
guerras. Diz o filósofo indiano moderno Krishnamurti: "Sem dúvida a
crise atual é diferente. E diferente porque não se trata de coisas
tangíveis, mas de idéias. Estamos disputando armados de idéias".

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