segunda-feira, 18 de fevereiro de 2008
MURILO MENDES
PEDRA E ÁGUA
Toda vez que se lê um poema se tem dele outro sentido, diferente lógica.
O texto se abre para todos os lados dos pontos cardeais, e tudo, cada leitor pode ler-se ali, ver-se ali, ir por ali para um ponto desconhecido. É o poema 'Pedra e água', de Murilo Mendes:
Esta mulher sem fim e a noite sobre a noite
E esta fome de ti, meu Deus talvez de mim.
Quem sabe eu já morri, meu esqueleto eterno
Em pé nos séculos e nas ondas me reveste.
O mar, a escuridão, esta fome de amor,
Esta noite sem fim e o X de Deus
Que em nós todos vive, morre e renasce
Espuma do mar eternamente e a pedra
Ora, o que é esta 'mulher sem fim'?
Será a mulher sempre e infinitamente amada? Ou a mãe natureza eternamente produtiva e úbere de vida renovável, abundante, cascatarante e oceânica, que em ondas se inunda no infinito universo de seus múltiplos seres coloridos de flores frutos sabores novos e eternamente renascidos, renovados sempre porque sempre morrendo, multiplicando-se no tempo e na atemporalidade, no espaço largo e no espaço tão amplo quanto o sem-fim do começo das estrelas, na escuridão luminosa do Universo?
Ou é a mulher básica e buscada, retratada na memória, a mulher futura ou possível, a que vive dentro de nós mesmos como o Outro Obscuro e Insaciável, aquela que não existe no mundo externo, porque no externo não está mais do que no aquém do objeto, do lado de cá, no amante e não no amado?
Que mulher é essa que é sem fim, e portanto sem começo, que tudo o que termina começou um dia, e se não tem término não nasceu, é a não-nascida, a que não é ainda porque não está lá, nem ainda virá, se virá, a ser, a aparecer, a crescer.
Oh amada infinita, quem és? Onde estás? Em que céu ou em que terra tu te encontras? Por quem és, responde, acontece, mostra-me o mapa e o rosto da rota a via de acesso para a tua realidade, infinita amada?
Esta mulher sem fim não será aquela de uma única noite, mas a que sobreviverá a todas as noites, nas noites insaciadas sobre outras noites, aquelas que se sobrepõem, sem o espaço intermediário de um dia, aquela escuridão noturna que nunca amanhece, que nem termina, nem se esgota senão em si mesmo e se renova e se refaz e não se retira nunca?
Ela é a musa, o motivo do poeta, o amor em pessoa, a onda do mar, a fonte do ser, a oriunda matriz, o ventre da fecundidade, o abrigo da maternidade nunca perdida, o leito da vida e da morte, o refrigério do cansaço e da proteção, a criadora e a mãe que socorre.
«Essa mulher sem fim, e a noite sobre a noite» - só, em si, é uma incógnita esclarecedora de todas as nossas vicissitudes e vivências, de todas as nossas lástimas e alegrias, das sexuais às espirituais porque também são gozosas.
Sim, essa mulher é a fome de Deus, a fome de amor, a fome, o amor. Morrer é mergulhar no fundo do seu ser e no mar de sua absorção, na escuridão de sua benfazeja fosforescência e nas profundezas de suas instabilidades, nas suas carícias e idas, superfícies e sedas, nas redes, máscaras e laços dos seus cabelos e tranças, seus sonhos e necessidades.
Somos todos descendentes dessa mulher sem fim, dessa maternidade original e nunca esquecida, dessa raiz funda no coração de nossa matéria e de nossa sensibilidade, de nome familiar em solidão,
Caminhamos a passos largos nesses rumos, navegamos nas vagas desse mar e nas vagas desse trafegar oceânico pelos descaminhos de nossas aspirações e esquecimentos.
Essa mãe é a família e a natural beleza da nossa moldura e mito, pátria e lar.
Espuma do mar eternamente e a pedra.
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