sexta-feira, 1 de agosto de 2014

O AMANTE DAS AMAZONAS

Não, agudissimamente obsedado, Pierre Bataillon herdara restos espirituais da monarquia de grandes reis, admirado por nações, ou obra-prima da literatura - como se esperasse o óbvio: que logo os Numas viriam prostrar-se e reverenciar o seu supremo caráter e estilo - as insólitas reações daquele homem, ser qualitativo, fora da indistinta massa humana, pertencente ao número dos que representam algo excepcional, que ilustram o nome com a imagem interna do uso de si, ligando-se à metafísica de uma criação de um super-homem singular e inscrito na atmosfera do fantástico cotidiano.
 


 


 


CERCA de 500 metros acima do tapiri havia um trecho do rio onde o Igarapé do Inferno fechava - ainda que corrida, funda, escura e fria - a Curva do Tucumã, acima da qual nunca ninguém passava adiante, universo regido pela povoação Numa - “Você não passa”, disse tio Genaro, naquela tarde. “Você nunca atravesse o rio”. E na margem se lançavam os limites que se sobrepunham sobre as marcas da significação da vida, alerta e alarme, nos traços insondáveis e infratores (“Não passarás!”), e por isso aquele lugar atraía tanto quanto o Proibido, o Outro, na lâmina de aço da imagem duplicada e interior, aquilo que libertava a atenta direção do salto da novidade. Pois do lado de cá ficava como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída, dois machos protagonistas do enigma do meu silêncio e angustiosa comunicação gestual, parentes quase mudos bichos, que salvavam a vida do deserto por resmungos monossilábicos, viventes sem mulheres e amizades, existindo na prisão geográfica onde só recordar era possível sob a pressão da materialidade selvagem e da solidariedade de guerra: que de madrugada partiam para a estrada como para a morte, impulsionados por uma ordem biológica, ficando eu nos afazeres do de sempre: defumar as pélas, e no de sempre o mesmo conhecimento de que tinha errado a rota do Paraíso - sim, eu esticava caniço de pesca que durava as horas inúteis, os dias inúteis, o tempo inútil, nem pensar pensava - semanas, meses e ia a ser anos a fio até a morte, a vida somente aquilo, o mundo somente a espera - desde que chegara tudo se estagnava no mudo e no nulo do anônimo de uma monotonia circular e estéril, de uma mecânica vida mascarada de impessoal catástrofe - porque eu sabia que ia adoecer - e que doente ali ia morrer sem perdão. Eu me adivinhava insignificante individualidade da classe condenada a morrer de malária no antro da floresta comida de bichos.


 


 


MAS a vida é um caminho que de repente se bifurca. E passa que, um dia, naquele dia - e eram certamente três horas da tarde, de tarde calma, quente e sobretudo verde entre árvores - estando eu sentado no tronco de espera que na Curva do Tucumã havia - bem defronte à curva plena do rio: o lugar era de pesca porque o igarapé, naquela altura, projetava-se numa rápida e solta volta quase em sacado, enseada de poço, piscoso e escuro, encobriria um homem alto logo sobre a margem, debaixo do cântico geral daqueles pássaros de bico largo e penas coloridas - quando, acintosamente, surpreendentes, de modo escandaloso e palerma, apareceram aquelas duas indiazinhas nuas.


Era certo que os Numas sempre voltavam das suas lendárias e por ninguém conhecidas montanhas peruanas. E certo também que voltavam gigantescos e ferozes, movendo-se sempre nas igualmente imaginárias áreas do Rio Pique Yaco, do Rio Toro, e do além mais. Mas nunca apareciam, qual seja: não ficavam visíveis, às claras, de frente, nítidos, senão de viés, difusamente entrevistos, só pressentidos na obliqüidade do olhar. Mas aquelas meninas - a poesia apronta um mundo, a prosa outro - estavam ali excessivamente reais, muito mais reais e humanas do que os sediciosos machos seus irmãos. Nem aquilo era mais revide a todas exações suportadas pela floresta durante a ocupação seringalista. Onde há poder, ele se exerce? Para mim, elas estavam uma na outra, se abraçando dentro d’água por baixo o que era tão fácil as mãozinhas tal como eu enxergava na minha perspectiva sexualizada. Reais, humanamente reais, lá, do outro lado - as primeiras fêmeas Numas que apareceram em todo o mundo, belas como o sol sobre a risca da Terra.

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