quarta-feira, 26 de agosto de 2015

CABRAL por Rogel Samuel



CABRAL por Rogel Samuel

Numa reunião elegante, todos se exibiam, e falavam vários idiomas, citando alto a erudição e as joias:
João Cabral de Melo Neto, sentado num canto em silêncio:
- E o poeta, não  diz nada? – pergunta uma voz.
- Quem? Eu? So falo pernambuquês...
E eu me lembrei de seu poema: “Graciliano Ramos”:


Falo somente com o que falo:
com as mesmas vinte palavras
girando ao redor do sol
que as limpa do que não é faca:

de toda uma crosta viscosa,
resto de janta abaianada,
que fica na lâmina e cega
seu gosto da cicatriz clara.

***

Falo somente do que falo:
do seco e de suas paisagens,
Nordestes, debaixo de um sol
ali do mais quente vinagre:

que reduz tudo ao espinhaço,
cresta o simplesmente folhagem,
folha prolixa, folharada,
onde possa esconder-se a fraude.

***

Falo somente por quem falo:
por quem existe nesses climas
condicionados pelo sol,
pelo gavião e outras rapinas:

e onde estão os solos inertes
de tantas condições caatinga
em que só cabe cultivar
o que é sinônimo da míngua.

***

Falo somente para quem falo:
quem padece sono de morto
e precisa um despertador
acre, como o sol sobre o olho:

que é quando o sol é estridente,
a contrapelo, imperioso,
e bate nas pálpebras como
se bate numa porta a socos.


CABRAL. Terceira feira (1961). 

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