UNIVERSOS PARALELOS - CRÔNICA ANTIGA
Rogel
Samuel
O Rio de Janeiro doente, piora. Entramos
no início de fase crítica, quando o choque parece inevitável. A cidade
progressivamente desfalece, faveliza-se. Desde a mudança da capital para
Brasília. O fechamento da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro é um marco.
Símbolo do fim. A economia é informal. O poder é “informal”. A vida é
“informal”. Somos todos camelôs da vida cotidiana. Há mais favelados do que
habitantes do asfalto? Quantos homens e mulheres têm aqui contra si algum
processo criminal? Calculava-se em cem mil o exército de marginais, no Rio.
Quem garante que esta situação não explode um dia, numa grande matança, numa
geral confrontação armada? Já há uma separação, já há dois países distintos: a
cidade e a favela. Um contra ou outro. O mundo da favela penetra o da
classe-média através das empregadas domésticas e faxineiros, mas isso pode
acabar incontrolável. Morre-se mais no Rio do que na Palestina? Vivemos
confinados, ilhados?
Há um poema de Cassiano Ricardo, escrito
em plena Guerra-fria, que diz:
Milhões de crianças chorando
na noite esférica.
Por que choram?
Não
são
elas que choram
É o
futuro.
É a vida ainda não vivida.
São crianças no escuro
chorando por adivinhação
do acontecer.
Um dia, uma empregada, mulher quase
tísica, na época trouxe a filhinha escondida, pois não tinha naquele dia com
quem deixá-la. A menina não tinha pai, as duas moravam num barraco de perigosa
favela. A mãe deve ter feito graves ameaças à criança, que ficasse calada e
quieta, que desaparecesse num canto, que sumisse, que se escondesse, pois eu, o
bacana, não a queria ali. Era uma criança muito frágil, magrinha e desnutrida,
muito pequenina e bonita. A mãe já tinha perdido vários empregos por causa dela,
pois ninguém gostava de ver criança estranha ameaçando quebrar os cristais da
sala. Acuada, ela se escondia debaixo da mesa da cozinha, no fundo de si mesma,
quando inesperadamente e antes da hora eu perigosamente apareci. Cheguei e,
infelizmente, fui ate a cozinha beber um gole d’água quando a descobri.
O pavor daquele pequenino ser me
assustou mais do que pudesse suportar. Aquilo me assusta até hoje. Eu não
sabia. Não sabia. Nós nunca nos imaginamos agressivos, ameaçadores, somos
sempre nós as vítimas. Ela, a pequenina, começou a chorar dolorosamente,
estranhamente abandonada, como se eu fosse animal selvagem, como se “soubesse”
que a mãe perderia mais aquele emprego, que a vida estava perdida, morta. A
garotinha mostrava tanta dor e dramaticidade, que me contagia até hoje.
O pânico daquele minúsculo ser me ocorre
sempre que ouço falar de tiroteio nas favelas. Onde andará ela, a pequenina?
Estará viva? Amedrontada, encurralada entre forças adversas: os grandes
bandidos, os grandes policiais e nós, a classe média agressiva, onde se
esconderá aquela meninazinha linda de tantos inimigos, deles e de nós? Como
estará sobrevivendo? De que natureza somos nós feitos, que nada podemos fazer
para mudar o mundo? O que fizemos com aquele ser feito de lágrimas? Nós fizemos
este mundo, a natureza da realidade é nossa obra. As crianças da favela são:
Criaturas
apenas de fato
por seus nomes
inscritos
no cadastro
eletrônico
.....
o sul sem
norte
viagem
sem
passaporte
Eu nunca pensei, eu nunca me imaginei,
eu nunca me senti assim, ao ver-me no espelho. No meu tempo de marxismo,
falava-se de luta de classe, mas da classe dominante não se falava, e sim da
burguesia, dos detentores dos meios da produção material. Será a classe média,
mesmo a classe média pobre, hoje, a classe dominante? E se a favela passar a
nos ver como aquela menininha me viu um dia? E se a Rocinha descer contra o Leblon? E se nos virem como
os “bacanas”, os responsáveis? E se disserem: “eles têm computador e TV a cabo,
têm educação, cultura e livros, e nós não temos? Eles ouvem Wagner, Beethoven,
lêem Proust e Pessoa, sabem escrever e são capazes de ler em vários idiomas? E
nós? Que somos nós? Que podemos nós, que lemos nós, além de dar tiros, de
assaltar, de matar, de nos asilar na favela e de enfrentar daqui nossos
inimigos? E nós, que somos nós”?
Se de repente se perguntarem por suas
naturezas humanas ameaçadas, desperdiçadas, infelizes? Bandido é feliz?
Tenho amiga que, na solidão em que vive,
gostava de passar horas nas salas de conversação na Internet. “Espero encontrar
um namorado na Internet”, me dizia ela.
Um dia encontrou o homem de sua vida.
‘Conversaram’, fizeram fervorosas juras de amor, ardentes ‘carícias’ amorosas
que nas suas capacidades verbais disponibilizaram. Ele era educado, atencioso,
carente.
Duas horas depois ela pressionou o
rapaz, quis saber onde ele morava, quem ele era.
-
Se
eu disser você me abandonará – ele disse.
-
Por
que? – perguntou ela.
Ele emudeceu. “Diga pelo menos de onde
você tecla?”, perguntou ela. “De que Bairro?” Ele respondeu: “Bangu”.
-
Não
me diga que você está na Penitenciária de Segurança Máxima? – brincou
ela.
Estava.