quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

O INFERNO DE DANTE, CANTO UM

O INFERNO DE DANTE, CANTO UM

O INFERNO DE DANTE, CANTO UM

ROGEL SAMUEL


Leiamos o início da «Comédia»:

A meio do caminho desta vida
achei-me a errar por uma selva escura,
longe da boa via, então perdida.
Ah! Mostrar qual a vi é empresa dura,
essa selva selvagem, densa e forte,
que ao relembrá-la a mente se tortura!
Ela era amarga, quase como a morte!
Para falar do bem que ali achei,
de outras coisas direi, de vária sorte,
que se passaram. Como entrei, não sei;
era cheio de sono àquele instante
em que da estrada real me desviei.

Assim começa o Poema. A tradução é a mais bela tradução, a de Cristiano Martins (Belo Horizonte, Villa Rica, 1991).
O meio da vida, 35 anos, dizem (valho-me das notas do tradutor). A selva seriam os vícios, os erros. O «bem», achado ali, seria Virgílio e o Paraíso. A Floresta apavora, era a Morte. Mas o poema promete contar a viagem, a grande viagem, na selva da vida, do Inferno.
Que significa o sono?
Talvez a desatenção, o descuido, o entregar-se aos prazeres dos sentidos, desatento, esquecido.
Mas tem um componente político importante: a desatenção política, o erro político, que a vida de Dante sempre nos revela. A política é a selva selvagem. E escura.

Chegando ao pé de uma colina, adiante,
lá onde a triste landa era acabada,
que me enchera de horror o peito arfante,
olhei para o alto e vi iluminada
a sua encosta aos raios do planeta
que a todos mostra o rumo em cada estrada.

Mas o Poeta prossegue. Consegue ver alguma coisa aos primeiros raios do sol. A landa é um descampado. Palavra rara. Ele vê a encosta iluminada pelos raios do sol. E seu medo, pela luz, diminui. Mas pouco. E ele olha para trás, como um náufrago olha, vê a escuridão. E repousa. Volta a andar. Tateando. Passo a passo:

Um pouco a onda do medo foi quieta
que de meu peito no imo se agitara
durante a noite de aflição secreta.
E como aquele a quem já o sopro para,
saindo da água à praia apetecida,
volta-se, fita o pélago, e repara
- assim, a alma em torpor, naquela lida,
voltei-me a remirar, atrás, o passo
de que jamais saiu alguém com vida.
Depois de repousar por breve espaço,
fui trilhando a ladeira, ampla e deserta,
bem devagar, tateando a cada passo.

Mas o que era, até ali, bom e calmo, se dissolve: na visão do animal selvagem, terrível - a pantera, que significa a luxúria, ou a cidade de Florença.

Quase ao começo da subida aberta,
eis vi uma pantera, ágil, fremente,
de pele marchetada recoberta.
Do rosto sempre se me punha à frente,
a tal ponto o caminho me impedindo,
que eu tinha que recuar constantemente.

Era no amanhecer.
E depois também aparece um leão, simbolizando a soberba, a violência:

Era o instante em que a aurora ia surgindo,
e o sol subia, ao lado das estrelas
que o seguem desde que o poder infindo
tirou do nada tantas coisas belas;
do animal a vivaz coloração
fez-me pensar, ansioso por revê-las,
na alta manhã, na plácida estação;
mas não sem que eu tornasse ao desalento
ante a súbita vista de um leão.
Parecia, raivoso, a juba ao vento,
vir contra mim, de jeito tão nefando,
que até o ar se crispava, num lamento.

E mais. Mais. Aparece a loba, que representa a Avareza. Ou a Inveja. Principalmente a Inveja Avarenta.

Seguiu-se magra loba, demonstrando
à pele os ossos, e que à ira incontida
a muita gente andou exterminando.
Veio-me um senso tal de despedida
ante a aparência rábida da fera,
que perdi a esperança da subida.
Como quem a acrescer seus bens se esmera,
mas se lhe chega o tempo da ruína
só pensa nisso, e chora, e desespera
- assim eu me sentia ante a assassina,
que, vindo contra mim, me foi forçando
de volta aonde ó sol nunca ilumina.

«Rábido», raivoso, irado, o animal o obriga a recuar para as regiões sombrias, talvez da noite, talvez a Morte. O impedimento.

Enquanto eu tropeçava, e ia tombando,
algo enxerguei que se movia perto,
a um tufo silencioso semelhando.
Ao ver aquele vulto no deserto,
"Piedade!", eu lhe gritei, "ouve os meus ais,
sejas tu uma sombra ou homem certo!"

Só então aparece Virgílio. «Na verdade, és meu mestre e meu autor», diz o Poeta, diz para o seu Modelo Poético, seu Mestre Virgílio. Dante é salvo pelos seus pecados, pela poesia, pela literatura, pois Virgílio lhe diz: «"Convém fazeres uma nova viagem», uma nova Poesia. Pois a Inveja é sua Ruína, que diz Virgílio:

A fera hedionda, que te pôs clamando,
não franqueia a ninguém a sua estrada,
e a quem encontra nela vai matando.
De natureza crua e depravada,
alimento nenhum pode saciá-la;
quanto mais come é mais esfomeada.

E o Poeta Virgílio se oferece como Guia Literário, pois Dante, para sair daquela posição, vai atravessar o Inferno. Para sair de um infortúnio, temos de mergulhar fundo na dor, no seu agravamento.

...................te guiarei quanto antes
pelos fundos desvãos do sítio eterno,
onde ouvirás os gritos lancinantes,
e verás os espíritos dolentes
que nova morte choram, pior que a dantes.

Depois o Purgatório:

Verás também aqueles que contentes
no fogo estão, porque inda esperam ir
juntar-se um dia às venturosas gentes.

E outro Guia, a amada Beatriz, conduzirá Dante pelo Paraíso. Virgílio, romano e pagão, não poderia entrar ali. Beatriz é a Musa perfeita, o tema modelar da poesia lírica. O amor é o Paraíso. Beatriz é «alma melhor que a minha». Eu disse: "Poeta, rogo-te, afinal, ... me conduzas...»

Moveu-se, então, e o acompanhei de perto.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

A GARÇA

A GARÇA














A GARÇA

Rogel Samuel

O sol na linha do horizonte é uma bola de fogo.Do outro lado está a Ilha do Fundão. E a lua. Estou indo para o aeroporto. O mar estende seu manto por toda parte. Uma leve aragem vem vindo devagar. Mas o calor se anuncia. Pássaros pelo ar sujo. Quando jovens, nadávamos naquela praia, hoje vala negra. No caminho do Galeão havia uma praia que desapareceu. Diziam que ali estavam as perigosas viúvas negras. Mortais. Meu amigo pescava ali. Fomos, pelo meio do capim, até uma outra ilha, hoje desaparecida. Na Freguesia havia um cinema de espelhos. Era o mais belo cinema do Rio. Havia espelhos de cristal até no teto. Os astros. À noite:

A gentileza da lua
no espelho das águas
brilha, nua.

Quando eu cheguei ao Rio, vindo do Norte, passei por ali. Trazia esperanças no bolso, a juventude dos dezoito anos. Tinha uma carta para o Diretor Comercial da TV Rio, escrita por sua irmã e minha amiga Alice Senna. Logo ganhei um emprego na Redação da TV, onde trabalhavam vários rapazes desconhecidos, hoje famosos. Mas não fiquei muito tempo no emprego, porque o trabalho era de noite e eu tinha aula na Faculdade pela manhã. A TV ficava no Posto Seis, defronte do mais belo mar. Foi lá que vi Juscelino pela primeira vez. Alguns anos depois ele falou na nossa FNFi. Entrou sob vaia. Demorou para conseguir iniciar. Sua fala durou uma hora. Depois respondeu às perguntas, todas contra. Não perdia o sorriso, a gentileza. Foi o homem mais educado que conheci. Saiu dando autógrafo.
Naquele mesmo salão devia falar Lacerda, como paraninfo da ala da Direita que se formava. Nós o impedimos de entrar. Fechamos as portas. Lá de cima, gritávamos: "assassino!" Lacerda, impaciente, do outro lado da rua, mandou que a PM arrombasse a porta. Nós chamamos o Exército! De Jango. Foi terrível: de um lado o Exército, armado. Do outro a PM, chefiado pelo Governador Lacerda. Penso que o Golpe de 64 nasceu ali, no meio da rua, em frente ao prédio da Faculdade Nacional de Filosofia, hoje Casa de Itália. Depois, os dois comandantes se encontraram e evitaram o pior. O Exército se retirava, e a PM também se retirava, mas sob grande vaia. Lacerda, inconformado, queria briga. Pouco tempo depois aquela mesma tropa invadiu o prédio, quebrou tudo, bateu e prendeu. Ainda bem que, naquele dia, eu não estava ali. Mas perdemos a máquina datilográfica do centro de estudos, e os discos clássicos da discoteca. Até mulher grávida apanhou.
A política daquele tempo era assim. Assisti a Jânio Quadros em Manaus, na sua campanha à Presidência. Havia um palanque montado em frente à nossa casa, na Getúlio. Primeiro falou Plínio Coelho, hoje ainda vivo. Tinha a voz nasal e era um famoso orador. Depois Jânio. Os grande olhos abertos, a voz rouca. Alucinado, abria os braços com que dominava tudo. Como Hitler, batia frenético na plataforma: "O Brasil... já tem idade... de deixar de viver... da caridade internacional!" Era um delírio.
Impressionante foi ouvir o velhíssimo Sobral Pinto na abertura das "Diretas-Já!" Já estava curvado, já era muito frágil. "Silêncio!", ele disse. "Peço silêncio! Quero falar em nome do povo do Brasil!"
A branca e bela garça sobrevoa e baila, alcançando o escuro campo onde reina. Será mesmo uma garça? Ou será uma deusa tecida de estrelas? A massa de sua luz no céu subitamente se abre e desce, sobre a penumbra do Universo. E eu me esqueço. Me esqueço.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

O pó dura para sempre

O pó dura para sempre




Hoje é sábado. Frase que se tornou clássica por Vinícius. Amanhã talvez não chova, como hoje.


"E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.


"Quem sabe quem os lerá?
Quem sabe a que mãos irão?


Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água é sempre a que foi sua".



Isso escreveu Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa. Ali se esconde um novelo místico, ou científico. O que dura é o pó. Ou: "Memento homo, quia pulvis es, et in pulverem reverteris" (Genesis 3:19 ). O mundo reduzido a cinzas. "In sudore vultus tui vesceris pane donec revertaris in terram de qua sumptus es quia pulvis es et in pulverem reverteris".

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

O índio Arimoque

O índio Arimoque















O índio Arimoque


Neuza Machado



O índio Arimoque - possivelmente, um passageiro personagem ficcional - é citado apenas uma vez na extensão geográfico-narrativa do Seringal Manixi, mas sua presença lendária realça-se imensuravelmente, alcançando o plano ilimitado das palavras não-ditas. A sua rápida aparição põe-se em evidência justamente porque, assim como um meteoro brilhantíssimo passando pela terra, a lembrança de seu halo monumental continua a iluminar o espaço narrado. Por que um índio lendário, poderoso, se tornou “prisioneiro” dos fúnebres limites do Seringal? Seria ele também um representante da tribo dos Caxinauás pacificados? Se existiu realmente, sua fama ficou reservada por via oral apenas para privilegiados amazonenses. Nas lendas indígenas, conhecidas textualmente, não há o nome deste índio, assinalado rapidamente no romance O Amante das Amazonas.


O índio Arimoque só aparece neste parágrafo. No entanto, posso afiançar que sua rápida menção possui importância capital no desenrolar narrativo. Diz o narrador: “Suas histórias fantásticas circulam até hoje pela região”. Com a permissão do relato, vou buscá-las por meio de uma aproximação histórica intuitiva, não autorizada cientificamente.


Examinando informações generalizadas sobre os diversos nomes de tribos da região amazônica mencionadas nesta obra ficcional do final do século XX - principalmente das que se assemelhassem à possibilidade de o nome do índio Arimoque ser um patronímico, denunciando assim a sua origem genética - e procurando semelhanças fonéticas entre as grafias encontradas, avistei alhures uma referência aos índios Aruaques (comedores de farinha), também conhecidos por Kali’na ou Caraíbas. Esses Aruaques (ou Aruakes ou Arahuaco em espanhol), mesmo fazendo parte dos grupos indígenas do Brasil, são oriundos de outras localidades tais como Flórida (atualmente, região comandada pelos Estados Unidos da América do Norte), Porto Rico, Cuba, Antilhas, Bahamas, na cadeia secundária da Cordilheira dos Andes, e outros tantos e inúmeros locais da América do Sul. Os Aruaques são lendários, por isto obriguei-me a sinalizar uma aproximação genética deles com o índio Arimoque, da narrativa ficcional aqui assinalada. Possivelmente, o narrador optou por espécie de corruptela semântica para nomeá-lo rapidamente, em um criativo simulacro lingüístico. Não é a ficção pós-modernista a arte de imaginar o real? E, por ventura, a crítica literária não deveria se posicionar de acordo com o objeto estudado?


O fogo da labareda da serpente - Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

CONHECES A REGIÃO DO LARANJAL FLORIDO?

CONHECES A REGIÃO DO LARANJAL FLORIDO?














CONHECES A REGIÃO DO LARANJAL FLORIDO?


Rogel Samuel

No início da "Canção de Mignon" de GOETHE misterioso verso: "Conheces a região do laranjal florido?" No original há um "lá", que se repete (Dahin, dahin), objetivando transcendência que a tradução excelente de João Ribeiro manteve. Um lá (Mignon) que talvez se refere a certo lugar na Itália, diz Eça de Queiroz, n'O mandarim. Um lieder de Schubert, de 1816. A terra privilegiada onde o laranjal floresce ouro (Citronen blühen). Um "lá... bem longe, além", que aponta para lugar, a princípio
paradisíaco, onde o sujeito do poema nos convida a ir, com ele, onde dourados pomos brilham na escuridão (Gold-Orangen glühen), e no céu azul a brisa, tudo em paz, nada move, nada passa, nem a vida, nem a glória (nem o louro)... Não a conheces tu? Quisera ir-me contigo...

Conheces a região do laranjal florido?
Ardem, na escura fronde, em brasa os pomos de ouro;
No céu azul perpassa a brisa num gemido...
A murta nem se move e nem palpita o louro...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu querido bem!

[Kennst du das Land, wo die Citronen blühen,
Im dunkeln Laub die Gold-Orangen glühen?
Kennst du es wohl? — Dahin, dahin!
Möchtl ich... ziehn.]

A estrofe epígrafe de "A canção do exílio", de Gonçalves Dias, por isso a transcrevo. Não sei alemão. João Ribeiro, sábio e erudito filólogo carioca (1860-1934), também poeta. Hoje esquecido. Não mais editado. Em 1932 escreveu um ensaio sobre Goethe. Foi jornalista, catedrático do Pedro II. Soube dar e transpor o clima da "A canção de mignon".

A casa, sabes tu? em luzes brilha toda,
E a sala e o quarto. O teto em colunas descansa.
Olham, como a dizer-me, as estátuas em roda:
- Que fizeram de ti, ó mísera criança!
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Quisera ir-me contigo, ó meu senhor, meu bem!

Súbito, Goethe introduz, nessa região maravilhosa, fantástica, irreal - uma casa! Sólida casa, como deve ser a tradição familiar: "O teto em colunas descansa". Casa paterna, a sala e o quarto, o mais íntimo das forças arquitetônicas do espírito ("sabes tu?), que olham, falam, vêem a desgraça a que fomos reduzidos ("que fizeram de ti, ó mísera criança?") - não, não a conheço, não a reconheço, a casa de meus pais, no além, no bem longe, aonde o poeta me levou. Meus familiares estátuas tumulares...

Conheces a montanha ao longe enevoada?
A alimária procura entre névoas a estrada...
Lá, a caverna escura onde o dragão habita,
E a rocha donde a prumo a água se precipita...
Não a conheces tu?
Pois lá... bem longe, além,
Vamos, ó tu, meu pai e meu senhor, meu bem!

Goethe introduz palavra-chave, palavra grave, palavra-montanha, ponto de fuga, de onde a dor se despedaça: meu "pai". Não só pai, mas pai e "senhor", com os semas que a idéia de senhor nos traz, nos põe, dispõe,
na mesa da leitura, do poder, da Lei. Do nome, do não. Goethe e João Ribeiro têm algo em comum além das "afinidades eletivas": a idéia, a ideologia do pai. João Ribeiro não teve pai (faleceu cedo), foi criado
pelo avô, "culto e liberal" (diz Afrânio Coutinho). Goethe cultuou o pai, herói. Entre eles se estabelece laço cúmplice da volta ao Pai. Meu pai, cuja língua materna era o alemão, recitava Goethe de memória. Mas a
montanha está enevoada, envolvem-se os mistérios de grandeza... os animais procuram estrada... lá reside o perigo - o dragão! - na Caverna escura, indevassável, uterina, se verte a água, da vida, que a prumo se
precipita, nas veias do destino... Não a conheces tu? É lá, lá...