sábado, 30 de novembro de 2019

AS ONDAS DO TEMPO DESTE FIM DE ANO















AS ONDAS DO TEMPO DESTE FIM DE ANO



Rogel Samuel




Que a última estrofe de «O cemitério marinho» de Paul Valéry assim canta:

«Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas! »

Uso a extraordinária tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia.
O poema enorme, difícil.
Desde que o li, pela primeira vez, há mais de quarenta anos, tento penetrar no mar de seu sentido. Às vezes, parece entender-se. Outras vezes, inatravessável é o seu mar. Mas sempre o sinto, o que importa. O que importa é sentir um poema. Não «interpretá-lo». Os intelectuais matam o poema, intelectualizam-no. Por isso Barthes foi tão bom crítico. Barthes fazia o texto falar, deixava-o falar-se.

«Esse teto tranqüilo, onde andam pombas,
Palpita entre pinheiros, entre túmulos.
O meio-dia justo nele incende
O mar, o mar recomeçando sempre.
Oh, recompensa, após um pensamento,
um longo olhar sobre a calma dos deuses! »

Seja como for, Valéry nos abre à imaginação o grande oceano da morte. Mas «recomeçando sempre». Sempre, «sobre a calma dos deuses».
Sei que não é algo para ser lido no Ano Novo, mas que tema mais religioso do que a morte neste túmulo do oceano de «tanto diamante de indistinta espuma », onde «quanta paz parece conceber-se!».

«Quando repousa sobre o abismo um sol,
Límpidas obras de uma eterna causa
Fulge o Tempo e o Sonho é sabedoria. »


O poema tem ímpetos de infinito, abre-se para a eternidade, «massa de calma e nítida reserva»:

«Água franzida, Olho que em ti escondes
Tanto de sono sob um véu de chama,
-Ó meu silêncio!... Um edifício na alma,
Cume dourado de mil, telhas, Teto!»

Valery disse que seu poema é sua «poesia verdadeira», mesmo as passagens mais abstratas. Disse que via ali uma espécie de «lirismo» , algo «abstrato mas de uma abstração motriz mais que filosófica».


Templo do Templo, que um suspiro exprime,
Subo a este ponto puro e me acostumo,
Todo envolto por meu olhar marinho.
E como aos deuses dádiva suprema,
O resplendor solar sereno esparze
Na altitude um desprezo soberano.

Diz da vida, do amor, da ordem e desordem da vida e do amor, do mar e do sol, das colinas das ondas, da chave do mistério do «mar de nossa conversa», como dizia Cabral:


Como em prazer o fruto se desfaz,
Como em delícia muda sua ausência
Na boca onde perece sua forma,
Aqui aspiro meu futuro fumo,
Quando o céu canta à alma consumida
A mudança das margens em rumor.

É uma reflexão sobre o tempo:


Belo céu, vero céu, vê como eu mudo!
Depois de tanto orgulho e tanta estranha
Ociosidade - cheia de poder -
Eu me abandono a esse brilhante espaço,
Por sobre as tumbas minha sombra passa
E a seu frágil mover-se me habitua.


É uma reflexão sobre os movimentos das ondas da vida:

A alma expondo-se às tochas do solstício,
Eu te afronto, magnífica justiça
Da luz, da luz armada sem piedade!
E te devolvo pura à tua origem:
Contempla-te!... Mas devolver a luz
Supõe de sombra outra metade morna.

O poema foi publicado no número de junho de «La Nouvelle Revue française», mas ele deve ter trababalhado no poema desde muito tempo.


Oh, para mim, somente a mim, em mim,
Junto ao peito, nas fontes do poema,
Entre o vazio e o puro acontecer,
De minha interna grandeza o eco espero,
Sombria, amarga e sonora cisterna
- Côncavo som, futuro, sempre, na alma.


Aqui vindo, o futuro é indolência.
Nítido inseto escarva a sequidão;
Tudo queimado está desfeito e no ar
Se perde em não sei que severa essência,
Faz-se a amargura doce e claro o espírito.



Ergue-se o vento! Há que tentar viver!
O sopro imenso abre e fecha meu livro,
A vaga em pó saltar ousa das rochas!
Voai páginas claras, deslumbradas!
Rompei vagas, rompei contentes o
Teto tranqüilo, onde bicavam velas!

É esta tradução de Darcy Damasceno e Roberto Alvim Correia que me ocorre das ondas do tempo neste Novo Ano.

sábado, 23 de novembro de 2019

GOLDBERG VARIATIONS



GOLDBERG VARIATIONS - ROGEL SAMUEL...
“Os dedos devem ter a consciência do movimento que faz a melodia cantar”, dizia Horowitz. Assim Gleen Gould, na "Ária" inicial da “Goldberg Variations”, passeia os dedos pelas teclas do piano. Conta uma "estória", a fábula de nossas mais antigas recordações, conta a nossa herança histórica a nós mesmos, nos ensina a contar, a falarmos de nós mesmos, de um para outro receptor oculto. “Imagine que os dedos estão cantando”, dizia também Horowitz.
As variações são uma reflexão musical, uma reflexão auditiva, uma argumentação instintiva, uma ária, música solitária, de solitário, solidária, de uma só voz e uma amante, exprimindo o sentimento da solidão, a cantiga do esquecido, do esquecimento, do ser em retrospecção de seu amor.
A primeira variação nos leva a um lugar em declive, rápido lugar, de onde voltamos para a ária inicial.
Na segunda variação alcançamos o campo, onde flores e cores nos recebem, nos recompensam. Os dedos passeiam pelo teclado e nos embalam em sonhos.
Ouço Gleen Gould, na gravação de 82, que prefiro: mais lenta, mais clara, mais profunda, porém mais triste.
O genial pianista perto da morte, já em declínio, roupas em desalinho, engordara, cada vez pessoalmente mais estranho e difícil, porém mais musical, menos social, pura música, música pura.
Na gravação se pode ouvir que ele canta por trás do piano, pode-se ouvir a sua voz baixinha, seus murmúrios, quase em off.
Estou esperando ouvir a prometida gravação do meu amigo Christopher Schindler. Ele é muito bom em Bach. Eu o conheci na Ilha de San Juan, em Friday Harbour, ele estudava num velho piano dos alunos de uma escola de crianças vazia, piano esquecido num canto da sala. Aproximei-me e, quando ele parou de praticar, começamos a conversar. Logo estávamos falando num excelente português. Chris fala não sei quantas línguas, inclusive a linguagem musical. Foi aluno do filho do polonês Artur Schnabel, para muitos um dos maiores de todos os tempos. Pena que as gravações de Schnabel sejam tão antigas. Por exemplo, a do Concerto Nº 1 de Beethoven é de 1932, mas apesar de mono, impressionam. Schnabel deixou Berlin em 33, devido ao regime nazista. A arte de Schnabel percebe-se mesmo nos discos de 78 rotações, com chiados e atritos.
A origem da Goldberg Variations é curiosa e famosa: O conde Hermann Carl von Keyserlingk, de Dresden, que frequentava Bach em Leipzig para receber aulas de composição, sofria de insônia e pedia sempre a seu jovem músico particular, um prodígio de 15 anos de idade, chamado Johann Gottlieb (Theophil) Goldberg (1727-1756), que tocasse algo no cravo do quarto contíguo, para ajudá-lo a dormir. Durante uma visita em 1742, o Conde pediu a Bach que lhe compusesse alguma peça "de caráter calmo e alegre" para fazê-lo dormir, e Bach compôs a "Aria com 30 variações", BWV 988, que ficou conhecida posteriormente como Goldberg. O Conde, encantado pela magnífica música, fazia o jovem Goldberg tocá-la todas as noites. E tão impressionado ficou que retribuiu Bach com uma taça dourada cheia com cem luíses de ouro.
Segundo Vladimir Horowitz, na entrevista "Technic, the Outgrowth of Musical Thought." (an interview with Vladimir Horowitz), Etude Magazine, 50 (March, 1932), 163-164, os ingredientes de sua técnica como pianista incluem seu treinamento desde a mais tenra idade, a sua capacidade de leitura do repertório, o fato de não ter “aprendido” verbalmente a técnica: “eu apenas sei o que na música eu descubro que os dedos devem fazer”. Ele não gostava dos exercícios formais, que para ele são ruins para o ouvido e o toque, que não se constituem em coisas vivas, mas mecânicas. “Eu uso o quinto dedo para guiar minha mão e cada tom deve ser conduzido até o fim”. “Nada de força”, dizia ele, “imagine que os dedos estão cantando”. “A força vem do toque musical”, “cada dedo deve sentir seu próprio tom”. “Relaxe o pulso”, “sintonize a nota melódica com a mão”, “deixe seu pulso sentir o movimento”, “os dedos devem ter a consciência do movimento que faz a melodia cantar”.

sábado, 16 de novembro de 2019

TENREIRO ARANHA - ROGEL SAMUEL

TENREIRO ARANHA - ROGEL SAMUEL
Poucos poetas foram tão misteriosa, inusitadamente famosos como ele. Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, prosador e poeta, nasceu e faleceu no Amazonas (1769-1811). Era um poeta leve, arcádico, que veio a ser publicado na leva daqueles momentos de patriotismo do Século Dezenove, em 1850 por seu filho, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro Governador da Capitania do Rio Negro.
Ele nasceu em Barcelos, cidade antiga, primeira capital da antiga Capitania do Rio Negro (posteriormente Amazonas). Seu famoso “Soneto à parda Maria Bárbara, mulher de um soldado, cruelmente assassinada, porque preferiu a morte à mancha de adúltera”, entretanto, sempre nos surpreende pelo inusitado do assunto popular. Não se trata de um poema a alguma alta e bela dama da corte, ou ao Governador do Estado do Pará, ou a algum ilustre e poderoso fidalgo.
Mas a uma “parda”, ou seja, a uma Maria Bárbara, mulher de soldado.
Aquilo não era coisa muito comum. O interesse pelo povo humilde, mesmo depois de uma tragédia, na época, não era tema de literatura.
O famoso soneto do primeiro artista autenticamente amazonense é esse:
Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito
Esta nova ao esposo aflito, errante...
Diz-lhe como de ferro penetrante
Me viste por fiel cravado o peito,
Lacerado, insepulto, e já sujeito
O tronco feio ao corvo altivolante:
Que dum monstro inumano, lhe declara,
A mão cruel me trata desta sorte;
Porém que alívio busque a dor amara
Lembrando-se que teve uma consorte,
Que, por honrada fé que lhe jurara,
À mancha conjugal prefere a morte.
Ora, quem fala é a vítima, já cadáver feita. Quem fala é o cadáver de u’a mulher, outra novidade. Não um belo corpo bem tratado, empoado, de cortesã viçosa, mas o putrefato cadáver de alguém, pardo, na beira da estrada, corpo já frio, corpo de crioula ou de cafuza morta, corpo morto.
O cadáver tem um recado a dar. Um recado, uma nova, uma notícia dela para o esposo aflito, que, se aflito não a sabe morta. “Leva piedoso”, significa, “por favor, por piedade, diz para meu marido que morri”.
Sim, o poeta está interessado na sorte da “mulher de soldado”, morta, parda, insepulta. Talvez estuprada.
Ela já diz que preferiu a morte à “mancha conjugal”. Quer que o esposo busque nisso o alívio à dor amara.
Hoje, Tenreiro Aranha é rua de Copacabana, rua sem saída, que começa na Siqueira Campos. Ex-Travessa Trianon.
Em outro soneto, canta o poeta:
Passarinho que logras docemente
Os prazeres da amável inocência,
Livre de que a culpada consciência
Te aflija, como aflige ao delinqüente;
Fácil sustento e sempre mui decente
Vestido te fornece a Providência;
Sem futuros prever, tua existência
É feliz limitando-se ao presente.
Não assim, ai de mim! Porque sofrendo
A fome, a sede, o frio, a enfermidade
Sinto também do crime o peso horrendo...
Dos homens me rodeia a iniqüidade
A calúnia me oprime, e, ao fim tremendo
Me assusta uma espantosa eternidade.
Note-se que há dois Aranhas: Além do poeta, que se chamava Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, existe seu filho, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro Governador da Capitania do Rio Negro, em 1850. É quando se constrói a Catedral, que não é bela, mas imponente. Dizem que foi construída com trabalho escravo indígena. Nesta época Manaus se torna centro político. Começa o comércio da borracha e piaçava.
` O poeta cedo ficou órfão. Seu tutor o colocou na lavoura, junto com os escravos.Com doze anos inicia estudos com um vigário. Interno no Convento de S. Antônio de Belém. Os bens familiares do menino foram “confiscados”, literalmente pelo Fisco. Devem ter sido roubados. Já adulto, foi nomeado para um cargo público, foi demitido por intrigas políticas. Depois, o Conde dos Arcos, Governador do Grão Pará, o faz Escrivão. Dizem que o poeta era um erudito, tinha sólida cultura, e sabia grego. Traduziu Odes de Píndaro.
O segundo soneto louva a “inocência”, logra docemente os prazeres da amável inocência, “livre de que a culpada consciência / Te aflija, como aflige ao delinqüente”. É obra leve, bela, clássica. O tema, bem ao gosto do Renascimento: “Sem futuros prever, tua existência / É feliz limitando-se ao presente”. Mas o ambiente é arcádico. Não é amazônico. Nada mais agressivo do que a Floresta Amazônica, com seus espinhos, insetos, aranhas, escorpiões, formigas venenosas, serpentes e pântanos. Não, não se tem ali “Os prazeres da amável inocência”. Nem o “Fácil sustento e sempre mui decente”. Não, isso não é amazônico.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

As raízes da floresta

As raízes da floresta

As raízes da floresta
 
ROGEL SAMUEL
 
 
Pede-me o amigo Flavio Bittencourt que eu lhe diga quais livros, dentre os que li, mais importantes foram para mim na construção do meu romance O AMANTE DAS AMAZONAS.
Isso já faz tantos anos que tenho dificuldade e localizar.
A primeira fonte foram os relatos de meu pai, a principal raiz do livro, e seu livrinho JAGUARETÉ, O GUERREIRO. Ali estão alguns dos meus personagens em carne e osso, pois Albert Samuel recolheu lendas e narrativas sobre índios, capitalistas, seringais.
Maria Caxinauá ali está, com este nome exato.
Os Numas eu os inventei a partir de uma série de tribos que viveram no rio Juruá, nas perdidas planícies que iam até os pés do Andes.
O palácio Manixi foi inspirado no Palácio Rio Negro (mas não é o mesmo), e vários livros foram encontrados a respeito.
Um relato imprescindível para mim foi “Dez anos no Amazonas”, de Valadares, livrinho que não mais encontrei, não mais o possuo. Trata-se de um caderno escrito por um seringueiro que veio do Nordeste e depois de dez anos voltou. É impressionante.
Li muito Samuel Benchimol, João Nogueira da Mata, Genesino Braga, Raimundo Morais, Willy Aureli, Ramayana de Chevalier, Mario Ypiranga etc. De alguns autores creio que li a obra completa, como Raimundo Morais.
Li sobre armas, sobre arquitetura, sobre cobras, aranhas, venenos. Muitos livros de decoração da época. Visitei e anotei o Museu de Arte Decorativa de Paris. Alguns móveis do Manixi são de lá.
Li o roteiro do filme “O ano passado em Marienbad”, de Robbe-Grillet, para o filme de Resnais, onde se descreve aquele magnífico palácio. Assisti mais de 10 vezes ao filme e adquiri hoje em vídeo. O meu Manixi é o Marienbad.
Li vários volumes sobre os índios, de Roquete-Pinto, Viveiros de Castro etc. Mas foi com Raimundo Morais que adquiri a intimidade indígena. Muito me impressionaram os livros sobre o Coronel Fawcett, desaparecido no Amazonas há 100 anos. Li alguns.
A narrativa do meu livro é acompanhada de citações quase imperceptíveis da Divina comédia e outros clássicos. Aquela floresta é o meu inferno de Dante.
Meu principal personagem é a Floresta amazônica.
Paxiuba sai de um livro de Raimundo Morais, era o Mulo.
As orquídeas foram vistas por mim, quando criança, no maior e melhor orquidário existente no mundo: o do meu próprio pai.
Ele passou 40 anos viajando pelo Amazonas e, como era apaixonado por orquídeas raras, passou 40 anos colecionando orquídeas.
Havia tantas orquídeas naquele tempo que meu pai decorou toda uma igreja com orquídeas no casamento de uma pessoa amiga, a poetisa U. A.
De uma orquídea nunca esquecerei: era de veludo negro com franjas de ouro.
Não existem mais. Catléia Superba; catléia Eldorado.
Meu pai gostava de silêncios. Viajava pelo coração da floresta de barco. Viu coisas inacreditáveis.
Algumas vezes fui com ele. Eis a raiz do livro, aquelas viagens.
Ele quase morreu por uma flechada do mato que se cravou perto dele. Era um aviso. Dizia: “Volte!”
O mundo amazônico era aquele. Mítico. Sagrado.
Só quem o viveu saberá o que significa ouvir aqueles pássaros da noite.

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Aviões sobre a minha cabeça

Rogel Samuel


(Foto de R. Samuel)


Começam hoje os treinamentos do Air Race, o mundial de corrida aérea, na Urca, onde moro.

É a temporada 2010 e vai talvez contar com um piloto brasileiro desta vez.

Adilson Kindlemann ficou em 14º no treino oficial e vai disputar, na repescagem, as duas últimas vagas para a prova principal.

Adilson perdeu 12 segundos por penalidades, terminando com o tempo de 1min38s91.

- Meu principal objetivo nessa primeira etapa é mostrar aos diretores de prova que sou capaz de competir com segurança. Estou entrando no circuito a 330km/h, mais de 30km/h abaixo dos líderes, propositadamente, para deixar claro como não estou forçando demais, já que meu objetivo é aprender - disse.

Eu fotografei a Air Race anterior. Também fui fotógrafo. Amador. Mas eu era bom nisso.

Veja e click na foto da competição anterior.

domingo, 10 de novembro de 2019

A TRAGÉDIA DA BIBLIOTECA – ROGEL SAMUEL


A TRAGÉDIA DA BIBLIOTECA – ROGEL SAMUEL


Em Manaus a piores inimigas das grandes bibliotecas são as viúvas. Logo que os maridos morrem, exaustos de tanto ler, elas tratam de mandar despejar aquela montanha de livros raros e caros na calçada para o lixeiro levar. Eu mesmo catei livros na calçada, e muitos outros.
Ou despejavam aquilo tudo, aquilo inútil, aquele incômodo sujo no porão da antiga Biblioteca Pública onde os ratos e a umidade os consumiam. Também eu lá vi isso e até roubei (ou salvei) algum volume.
Herdei várias bibliotecas que as perdi. Herdei a biblioteca de meu avô, de meu tio-avô e de meu pai etc. Quando eu era jovem, minha tia-avó Maria José me dava uma pensão para comprar livros.  
Depois vim para o Rio, deixando Manaus e meus livros na distância, mas depois trouxe uma caixa de livros que se arrastou e se perdeu nos vários lugares e quartos alugados por onde passei.
Biblioteca é coisa de rico. De mansão de rico.
Por vários anos minha pobre biblioteca pessoal ficou na garagem de minha mãe, e no escritório de um amigo. Tudo perdido. Difícil de explicar, mas perdido.
Depois eu tive uma biblioteca na minha sala da Faculdade de Letras das UFRJ: quando me aposentei sem espaço em casa doei para a mesma.
Hoje meus livros estão amontoados no meu escritório. Longe de onde moro. Não acho nada.
Há bibliotecas que pegaram fogo, como a do escritor Moacyr Rosas. Ele acendia velas contra a umidade.
Quando pesquisei para escrever o “Teatro amazonas”, passei um ano indo à Biblioteca Nacional. É a melhor do Brasil.
Sonho com o tempo em que possamos ter os maiores livros num pen-drive.


O segundo narrador

O segundo narrador

NEUZA MACHADO

Nas últimas linhas do capítulo ONZE: RIBAMAR, quem se apresenta é o segundo narrador (aquele que somente agora se manifesta, para falar sobre o primeiro). Este segundo narrador é o verdadeiro narrador do chamado romance pós-moderno, ou seja, aquele que ficou incógnito nos movimentados bastidores ficcionais de O Amante das Amazonas enquanto o primeiro personagem-narrador Ribamar de Sousa, representante dos oprimidos retirantes, fugitivos da seca nordestina e escravizados por classes sociais e políticas poderosas, contava a sua própria história: da saída de Patos, Estado de Pernambuco, ao emprego no Palácio Manixi, em um Seringal perdido do Amazonas, como secretário particular de D. Ifigênia Vellarde.


O primeiro personagem-narrador, o Ribamar, por enquanto, não poderá seguir como o condutor do relato, pela simples razão de que agora ele se postará como o personagem principal, submetido ao olhar perscrutante do segundo e genuíno narrador pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração.


O que ocorreu nesta terceira fase do romance foi simples e criativo: o Narrador principal precisou de uma nova chave para penetrar às fortificações da Cidade e, logo a seguir, percorrê-la. Ora, este novo invólucro ficcional já não era um espaço autenticamente mítico, portanto, as anteriores chaves já não se encontravam disponíveis. Os “parentes” de Ribamar já estavam mortos e o lendário bugre Paxiúba ficara temporariamente para trás. A diretriz ficcional pós-moderna/pós-modernista de Segunda Geração determinou um segundo narrador (aquele que buscou/buscará esta necessária chave, para finalizar o relato), narrador “este” que esteve sublinearmente influente desde o início do romance. A assertiva rogeliana “conforme o digo, este Narrador” não deixa dúvida quanto à renovada determinação de transformação narrativa. Para o correto entendimento do que desejo a partir daqui refletir, busco outras palavras explicativas, ou seja, para que o Ribamar de Sousa, submetido a uma diferenciada fase de transição, pudesse continuar atuando, agora como personagem-representante da burguesia manauara pós-borracha, outro narrador (“este narrador”) teria de falar por ele, mesmo que aparentemente duplicado nas linhas finais, com a impressão ficcional de junção de ambos, como se fossem apenas um único narrador, propiciando a despedida do primeiro.

O fogo da labareda da serpente
Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel

sábado, 9 de novembro de 2019

O J. G. ARAÚJO - ROGEL SAMUEL

O J. G. ARAÚJO - ROGEL SAMUEL

             Ele se chamava Joaquim Gonçalves.
             Dizem que, quando nasceu, sua família portuguesa de tão pobre o doou para outra família inglesa. Isto era o dia 14 de fevereiro de 1860, em Povoa do Varzim. Os pais lavradores. Como chegou em 1871, aos 11 de idade, no Amazonas? Seu biógrafo, Agnello Bittencourt, diz que veio agregado ao barco de Nuno Pau Brasil, que viajava entre Manaus e Lisboa. Pau Brasil era o nome de uma antiga família amazonense. Em Manaus conseguiu-lhe colocação na “Casa Silva”. Em 1875, o comandante Nuno emprestou-lhe dinheiro com que pôde abrir seu primeiro comércio. Mas o próprio J. G. disse que começara a vida cortando piaçaba.
             O homem construiu um império.
             Quando faleceu, em 21 de março de 1940, deixou um patrimônio incalculável em navios, casas comerciais, empresas.
             Quase todo o centro comercial de Manaus da época lhe pertencia. A primeira casa de pedra e tijolos em Manaus foi construída por ele, onde instalou a “Padaria Progresso”. Sua famosa firma “J.G. Araújo & Cia” fez de tudo. Inclusive financio um filme famoso, “No país das amazonas”, de Silvino Santos, um belo filme (Silvino era um gênio) hoje raro e desconhecido.
             O filme “O cineasta da selva”, de Aurélio Michiles, de 1997, conta essa estória, a de Silvino Santos e do Desembargador.
             "Silvino Santos (1886, Portugal-1969, Brasil) começou sua carreira de cinematógrafo na cidade de Manaus quando esta vivia seu apogeu graças ao ciclo da borracha, tornando-se um dos pioneiros do cinema no Brasil. Adotou o Brasil como pátria aos 13 anos de idade, documentou a história de uma Amazônia com uma produção extensa e diversificada. Ao longo dos seus 84 anos realizou nove longas e 57 curtas e médias metragens no Brasil em Portugal, muitas vezes se embrenhando na floresta amazônica com uma câmera de manivela na mão e fazendo as pontas de teste do material filmado nos ocos das gigantes árvores da selva”, diz o autor do filme.
             “No paiz das Amazonas”, de Silvino Santos e Agesilau de Araújo (filho do comendador),  foi realizado em 1922.
              Diz-se, dele: “Percurso por alguns rios da bacia amazônica, o filme retrata diversas formas de sobrevivência e trabalho na região: a pesca do peixe-boi e do pirarucu, a extração da balata e do preparo do látex, a extração da castanha e o preparo do guaraná. “No Paiz das Amazonas” é considerado o filme mais famoso de Silvino Santos que realizou enquanto funcionário da Cia J. G.Araújo. Foi sucesso de público e crítica permanecendo em cartaz cinco meses no Cine Palais no Rio de Janeiro, além de ser exibido em salas de cinema na França, Inglaterra e Lisboa. Junto de Nanook, de Flaherty (1922), La Crosière Noire (1926) de Léon Poirier, Tabu (1930) de Murnau, o filme No Paiz das Amazonas e No rastro do Eldorado (1925) de Silvino formam um conjunto de filmes de viagem que forneceram aos moradores das metrópoles a oportunidade de se aventurar e descobrir as regiões "mais selvagens do mundo".
             O Comendador e aparece no romance “A selva” de Ferreira de Castro.
             Do seu casamento nasceram vários filhos, um também comendador e Presidente da Província
             Quando o apogeu da economia da borracha acabou, somente o pai seguiu próspero, pois suas atividades abrangiam um pouco de tudo, criava gado, tinha farmácia, padaria, barcos etc. Além disso ele construiu asilos, um forno para queimar o lixo que era único no Brasil.
             Um dia um adversário comercial tentou matá-lo com tiro, à queima roupa, no coração. Ele foi salvo pelo cabo do guarda-chuva, onde havia uma placa de ouro. Pois bem, depois disso, perdoou o inimigo e mandou soltá-lo, dizendo que o criminoso tinha “numerosa família” para sustentar.
             Aos domingos, o Comendador visitava a Santa Casa e a Beneficente Portuguesa para ver se alguém estava necessitando de alguma coisa. Ele levava envelope de dinheiro, para ofertar. Fazia ofertas generosas. Em dinheiro. E construiu o “Asilo de Mendicidade” do próprio bolso para ali abrigar os numerosos mendigos de Manaus depois da crise da borracha. E fazia doações em segredo, não queria que ninguém soubesse.
             Estranho é o fato de que todo o império dos Araújos desapareceu por completo.


             Um dia, visitei a sua casa, hoje transformada em repartição do governo, ou algo assim. Assaltou-me uma reflexão sobre a impermanência de todas as coisas. Como era a vida daquele homem, tão rico e tão bom? Diante da janela de sua mansão se via o Teatro Amazonas. O símbolo daquela época de riqueza

terça-feira, 5 de novembro de 2019

As vozes narrativas

As vozes narrativas  -  NEUZA MACHADO





Oh, ruturas! Dona Mariazinha de Abreu e Souza (a dona da casa ficcional), certamente, é proprietária também de uma casa jamais olvidada nas lembranças e recordações de quem narra (“tinha sempre muito que fazer naquela casa”). D. Mariazinha de Abreu é uma das inúmeras vozes narrativas que, nesta terceira fase do romance, colaboraram com o narrador principal, incluindo evidentemente a já assinalada Sabá Vintém, a manicure, aquela que “sabia de todos os escândalos da cidade, da vida íntima de todas as famílias” do lugar. Na casa digna de ser lembrada, com seus personagens e recantos secretos, como diria Gaston Bachelard, D. Mariazinha ocupava lugar de destaque.


Bachelard sonhou, em Paris, com uma casa da região vinícola de Champagne, sua indelével terra natal. O escritor João Guimarães Rosa, nascido em Cordisburgo e cidadão do mundo, sonhou com o Sertão de Minas Gerais, sua incomum casa onírica. Juan Carlos Onetti criou uma entrópica cidade, Santa Maria, para representar os problemas citadinos de seu país, o Uruguai. O segundo narrador rogeliano sonhou e sonha no Brasil e em suas viagens pelo mundo com os monumentais Palácios da Era da Borracha (recriou-os ficcionalmente por intermédio do Palácio Manixi), onde se condensaram/condensam os mistérios de uma antiga felicidade”. A casa ficcional de D. Mariazinha de Abreu é mais do que a casa primitiva, é representante da Cidade íntima, a casa onírica, a casa dos sonhos (felizes e/ou infelizes), “onde se condensam os mistérios da felicidade” (ou os mistérios dos momentos infaustos). Esta “casa” se revela por intermédio de “inspirações inconscientes profundas”, originárias de antigas vivências ou de externa realidade angustiante, ainda presentes no século XX. “O onirismo arraigado assim localiza de algum modo o sonhador”, e este sonhador não poderá se revelar apenas como um narrador, que, ao longo da narrativa, se posiciona simplesmente como um personagem como outro qualquer (Roland Barthes). Este segundo narrador não será jamais um personagem qualquer. Ele é o porta-voz de uma consciência interativa. No capítulo ONZE: RIBAMAR, o mundo sócio-substancial e o mundo mítico-substancial se desvanecem para cederem o lugar à referida casa onírica do narrador aqui reverenciado. Esta casa diferenciada, edificada nos domínios de um singular imaginário-em-aberto, foi um poderoso alicerce para a posterior realidade ficcional, entrópica, da ficção pós-modernista de Segunda Geração.

O fogo da labareda da serpente
Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel

segunda-feira, 4 de novembro de 2019

O advogado da História

O advogado da História

ROGEL SAMUEL

1. Quando eu era menino tive um singular professor no curso ginasial.
Era o primeiro dia de aula. Turma cheia. Inquieta. Violenta. Moleques dispostos a bagunçar e brigar. Um perigo.
Então entrou em sala de aula o professor. Era atarracado, forte, aparência militar.
Não direi seu nome, seus filhos e netos devem estar em Manaus.
Começo da aula. O professor avaliava os alunos. Os alunos olhavam, desafiavam, tensos, o professor.
Algo secreto pairava no ar. Algo suspeito, uma bomba ia explodir.
O professor sério, falava, explicava o curso que ia dar. Nós nos entreolhávamos, ouviam-se risinhos sufocados. O professor começou a sentir-se mal, respirava fundo, com dificuldade.
Foi quando o professor voltou-se para o quadro-negro e começou a escrever. Escrevia rápido, a letra era muito bem feita, alinhada, de calígrafo. Então ele recebeu a primeira bolinha de papel.
Voltou-se para nós, branco, os lábios tremiam. Continuou a escrever, novas bolhinhas. Voltou-se para nós e disse, tinha a voz trêmula:
– Eu quero avisar uma coisa: eu não reprovo, não ponho aluno pra fora de sala, não chamo a diretora...
E abrindo o paletó, onde deixou aparecer um revólver:
– Eu quebro a cara de quem atrapalhar a aula!
2. Outra professora, excelente, era nossa professora de música. Dava aula regendo:
– Dó-ó! – Dividia os tempos, cantando.
Um dia um gaiato conseguiu por um gato no gavetão de sua mesa de tampa. Quando ela levantou a tampa e abriu a mesa o gato pulou sobre ela e ela desmaiou. “Estará morta?” Os alunos de apavoraram. O diretor, espírita, dava-lhe uns passes...
3. Nosso professor de ciências era magrinho, baixinho, mas muito brabo. Um dia, atravessando a rua, quase foi atropelado:
– Idiota! Gritou-lhe o chofer.
Ele tirou o revólver e deu vários tiros no carro. Não matou ninguém.
Estando em sala de aula enfureceu-se com o barulho dos alunos e deu um murro na mesa: seu anel de formatura com vários diamantes espatifou-se. Voaram brilhantes por todos os lados. Saímos catando pelo chão, para ele.
Já bem velhinho o encontrei num shopping no Rio de Janeiro.
4. Nosso professor de história, outro advogado, comunista. Vestia um impecável terno branco que tirava diante de nós:
– Na aula passada . – (e acendia o cigarro)... nós nos reportávamos à civilização bizantina...
Falava pausado, mas ininterruptamente, com voz nasal. Sua prova era oral: fazia só três perguntas, durante a chamada. Elegante no vestir, elegante no falar, sua aula (vejo hoje) era um desenrolar da História aos nossos olhos. A História se manifestava ali, na sua dialética marxista. O mais incrível era que ninguém o perturbava. Não usava nenhum livro didático, nós tínhamos de tomar as notas do que falava para responder às provas. Não era decorar, mas entender a História, com suas causas e conseqüências.
Nosso professor era um advogado. Um advogado da História.
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sábado, 2 de novembro de 2019

MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE



MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE

Rogel Samuel


De minha cara amiga Graça Carvalho, já falecida, recebi um precioso presente, a “Cartilha do bem sofrer com lições de bem amar”, do seu pai, o super-poeta amazonense Farias de Carvalho, publicada em 1967 e desde então esgotada.
Lá re-encontro o poema “Ocaso”, que não lia desde que Farias de Carvalho foi meu professor, no noturno do Colégio Estadual, onde ele lecionava literatura e eu tanto aprendia com ele: “Meus mortos hão de vir no fim da tarde”.
Só dá para ler este belo texto quem o situa na Manaus da década de 50, ou início de 60, quando foi ele escrito.
Aquela era uma cidade sem iluminação, ilhada no meio da maior floresta tropical do mundo. Ao cair da tarde, as perigosas trevas da floresta invadiam, a nostalgia da escuridão e da morte ameaçava, aquele Rio Negro ficava realmente Negro. Negro como a Morte Negra. Negro da morte de vinte e oito mil índios vitimados em 1729, numa hecatombe nunca esquecida por aquelas margens, de tal sorte que perto dali há um rio, chamado Rio Urubu, “rio doente para sempre, / desde o município de Silves”, como certa vez escrevi; rio onde um dia meu pai não me deixou mergulhar, “como se ali o rio pudesse / para sempre me tragar”.
Naquelas águas estão sepultados nossos antepassados e o grande guerreiro Ajuricaba, o herói que está em toda a parte ao mesmo tempo [Aiuricaua], rio de sangue Negro, de espinhos venenosos, de cadáveres históricos. Há demônios nas margens e eu me lembro da impressão trágica, da depressão que nos assaltava, ao cair da tarde, quando a cidade invadida por nuvens de moscas besouros, piuns, carapanãs sanguessugas, corujas, e aranhas peludas que saíam de seus esconderijos, e escorpiões de ébano que procuravam caça, a floresta ameaçada agora ameaçava, retomava e reconquistava o seu lugar em São João da Barra, nos expulsando para sempre, tudo debaixo da gloriosa chuva do ouro do mais esplendoroso por-de-sol do mundo, algo como explosão de bomba atômica terminal, final, de fim de mundo, finnisterra, que se expandia em coloridas nuvens para todos os lados, junto com misteriosas aves do entardecer.
Ajuricaba veio do rio Hiiaá, na margem esquerda do Negro, entre o Padauari e o Aujurá, no distrito de Lamalonga. Para salvar seu filho caiu em emboscada e foi prisioneiro da Coroa Portuguesa, em 1729, a Coroa o queria vivo para o supliciar com castigo e morte. No caminho, Ajuricaba, que era homem fortíssimo, arrancou do poste o grampo que o prendia e, com as correntes nas mãos algemadas, faz a matança dos soldados portugueses antes de se precipitar nas águas escuras do Rio Negro, onde morreu, não sem antes as amaldiçoar, e diz a lenda que é por isso que aquelas águas são estéreis, e não têm peixe. Logo depois, em vingança, o capitão Belchior Mendes de Moraes dizimou 300 malocas, matando em sacrifício mais de 28 mil índios das margens do rio que passou a se chamar Rio Urubu devido à montanha de cadáveres. E mais tarde balesteiros, sob o comando de um padre de nome piedoso, Frei José dos Inocentes, depois nome de rua de puta em Manaus, espalharam roupas contaminadas com varíola que disseminaram uma gigantesca epidemia que infectou 40 mil índios, arruinados de varíola, que é uma doença infecto-contagiosa, virulenta, que apodrece o corpo ainda vivo com erupções de pus e raquialgia, pápulas, pústulas, cegueira e agonia de uma morte bacteriológica lenta, os cadáveres semi-vivos sendo devorados por moscas, piuns, carapanãs, mutucas, cabo-verdes, potós, catuquis, marimbondos, suvelas, besouros e formigas. A saúva antropófaga devora um corpo em 20 minutos. Na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, em 1908, os mortos largados no caminho para serem enterrados na volta (30.430 operários foram internados no Hospital da Candelária, entre 1908 e 1912) e quando a locomotiva voltava só encontrava ossos brancos e limpos, comidos pelas saúvas. E também a formiga-de-fogo, a saca-saia, a lava-pés, a manhura, a cabeçuda, a taioca, a carregadeira, a táxi, a tracuá, a tocandira, peluda, enorme, venenosa, uma única picada basta para abater um homem, com fortes dores e febre, usada pelos índios na iniciação masculina dos garotos, que tinham de enfiar o braço numa cumbuca de tocandiras para provar que eram machos. E a formiga roceira, e a cortadeira, e a guerreira, a correição. Von Martius descreveu populações inteiras fugindo das formigas. As açucareiras eram capazes de fazer recuar um inteiro exército!
Por isso os mortos vinham no fim da tarde, “molhados da ferrugem líquida do rio”, diz o poeta, “que banha as margens dêste ... silêncio lúcido e sonoro / que embala na praia ao fim das tardes / os olhos de éter dos defuntos tortos / que lambem com o olhar a praia longe”.
Além disso, o trágico planger dos sinos da Matriz, construída por índios, da Igreja de São Sebastião, da Igreja dos Remédios, que se ouviam na inteira cidade, graves, ameaçadores, profundos, lembravam a Morte, e as rádios todas tocavam umas Avemarias, a Rádio Baré, a Difusora, a Rio-Mar, rádios de meu tempo, e misteriosas velhas beatas vestidas de negro, veladas, engolfadas, balbuciantes de preces, que se dirigiam às missas, entrando ainda sob a saraivada de toques dos imensos sinos magistrais.
É claro que, para nós, jovens poetas, devassos e boêmios, era a hora de nos preparar para as aulas e depois beber no Bacurau, no início da João Coelho, junto com catraieiros, prostitutas, mendigos e bandidos alcoólatras, provando aqueles peixes fritos, o pacu, a sardinha, o matrinchão, entre goles de cachaça barata; ou íamos para o Bar Bolero, que ficava na Cachoeirinha, na Rua Belém (creio eu, pois a memória já me falha), onde ouvíamos Nelson Gonçalves cantar os maiores sucessos em serenata, como os “Lábios que beijei”, e isso ia até ao raiar do dia, quando voltávamos, bêbados, felizes, para nossas casas, a pé, sob o latido generalizado dos cachorros dentro dos muros das casas, cães que não compreendiam por que tão tarde (e tão cedo) passávamos nós por ali, no deserto das ruas que um dia inspirou o poeta L. Ruas a escrever:

Ah!
Esta lua
Neste fim de rua



Vamos ler o poema:


MEUS MORTOS HÃO DE VIR NO FIM DA TARDE

FARIAS DE CARVALHO

Meus mortos hão de vir no fim da tarde
molhados da ferrugem liquida do rio
que banha as margens deste meu silencio,
deste silencio lúcido e sonoro
que embala na praia ao fim das tardes
os olhos de éter dos defuntos tortos
que lambem com o olhar a praia longe.

Meus mortos hão de vir no fim da tarde
mordendo a pele aquática do vento;
(vento, vento de tíbias descarnadas
arrepiando o pelo das vidraças).

Meus mortos hão de vir no fim da tarde.
Aguçai vossos dentes, cães do tempo,
vamos comer a morte no crepúsculo.
molhados da ferrugem liquida do rio
que banha as margens deste meu silencio,
deste silencio lúcido e sonoro
que embala na praia ao fim das tardes
os olhos de éter dos defuntos tortos
que lambem com o olhar a praia longe.

Meus mortos hão de vir no fim da tarde
mordendo a pele aquática do vento;
(vento, vento de tíbias descarnadas
arrepiando o pelo das vidraças).

Meus mortos hão de vir no fim da tarde.
Aguçai vossos dentes, cães do tempo,
vamos comer a morte no crepúsculo.