A ARTE DE FAZER CAFÉ- ROGEL SAMUEL
quinta-feira, 29 de outubro de 2020
TEN: LOST
Ten:
Lost
Translation by
Christopher Schindler
Day was breaking when the Caxinauá woman arrived there. Large shoals of sardines were passing under
the liquid surface of the river. She got
to the lake across a splendid labyrinth of channels and bayous. Stagnant waters, gloomy, lost crossing of
sealed byways, the Quati lake in the middle of marshes on the penumbra of the
low water line, channels going through branches, hidden. Beyond, the horrible Mucura slough.
Maria Caxinauá lived right on Fedegoso
Point on Cuco Beach where they said Zequinha Bataillon had disappeared. She would not leave that place since the
disappearance of the boss's son. They
said she was expecting him to return.
At that time Manixi plantation was in
distress, unproductive. Ferreira himself
had not appeared there for two years and the headquarters, since the death of
Captain João Beleza, was under the
command of a certain Ribamar (d'Aguirre) de Souza, a native of Patos,
Pernambuco, as related in the first chapter of this narrative.
The Caxinauá woman advanced alone among the gigantic
roots. One could say lost, quiet among
the large prehistoric trees, in the marsh, among water hyacinths, caimans,
clumps of tonka bean trees, under murity palms, licania trees. Her oar cut the water without a sound; the
canoe glided along in the dead side of the world.
She arrived at a clump of arum. She caught sight of black vultures on
high. Under the fabric of the water fish
could be seen, indolent, immersed in a dreamy sleep in the spillway of the
lake.
She
was in no hurry. She took off her
clothes and entered into the water, in the heavy humidity, stepping on the
smooth-stoned bottom, which she recognized by the end of the submerged white
stone.
Anyone who saw her would have seen a
beautiful woman. Her face, neck and
shoulders blighted, burnt – the tortured skin, burnt in the Numa's attack. But from her breast on down she was beautiful
and unharmed.
She glanced at the shores. Her ancestors had lived there. She was among her own there. The Caxinauá loved to visit that historic site. There was no trace of the past; the forest
had triumphed.
Suddenly she sensed danger.
She felt at once that, from inside, deep
in the brush, something menacing was approaching. She knew it was coming very quickly – there
had not been any indication of anything and she got out of the water in a
flash.
But it was too late: she was seized by
enormous hands, enormous arms of a monstrous being, from behind, and she could
smell the aroma of tonka bean and the strong warmth of that body; she knew
immediately who it was, that she would be another one of the Paxiuba the Mules'
victims. She summed up the situation:
one of the Mule's arms could break her neck, she was starting to suffocate, she
understood his insurmountable, savage animal strength. She remained motionless. She let herself be lifted. She knew what he wanted. The monster's body trembled with pleasure, it
was hot, desire grazed along the back side of the Indian woman, heaving like a
dog.
She
saw that he would not leave her alive.
She knew she would get her revenge if she escaped alive. But Paxiuba now tried other means, he tumbled
over with her on the grass and, strangely, he took his pleasure, right there,
howling while finishing himself off like a furious bull, sparing her.
After he disappeared, as mysteriously as
he had appeared, she fell into the water to wash off that venomous sticky
fluid.
domingo, 25 de outubro de 2020
A COMPLETA REALIZAÇÃO
A completa realização de P'ang Yün
Rogel Samuel
Primeiramente o texto tece o tempo. Não existe. O passado não existe, é passado. Não tente lembrar o passado. Deixo-o onde está. Onde (não) está.
O presente não é tangível. Passa rápido. Ao tocá-lo já é outro, já não é.
Quanto ao futuro... que futuro? Qual futuro? Ainda nada sabemos dele. Não é pensável, antes.
Não tente julgar, não avalie as coisas que vierem aos olhos: não existe ordem a ser mantida nem sujeira a ser limpa.
O dharma não tem vida (nem não vida).
A realização está completa.
Assim é o poema:
“A realização última
P'ang Yün
O passado já é passado
Não tente recuperar.
O presente não fica
Não tente tocá-lo.
Momento a momento
O futuro não veio
Não pense nisto
Antes.
Tudo que vem ao olho,
Deixe que seja
Não há nenhuma ordem
A ser mantida,
Não há nenhuma sujeira
A ser limpa.
Com a mente realmente vazia
Penetrado, o dharma
Não tem nenhuma vida.
Quando puder estar assim,
Você completou
A realização última.
P'ang Yün”.
sábado, 24 de outubro de 2020
A LUZ NEGRA DO SOM DO ÓRGÃO DO UNIVERSO - ROGEL SAMUEL
A LUZ NEGRA DO SOM DO ÓRGÃO DO UNIVERSO - ROGEL SAMUEL
Sim, o som grave desses monstros do universo puderam ser ouvidos. No dia 9 de setembro se dizia: “Buracos negros cantam”. No centro da galáxia de “Perseus” (o nome já indica) há um enorme buraco negro, cuja massa talvez seja 2,5 bilhões de vezes maior que a do Sol. Os “Buracos negros” possuem tal densidade, tal força de atração, que sugam a luz ao seu redor, e por isso se chamam “negros” a esses “buracos”, a essas cavidades espetaculares. Eu fico imaginando o Universo como um gigantesco órgão, emitindo um som grave, profundo, “cerca de 57 oitavas abaixo da nota dó que fica no meio do teclado dos pianos, freqüência 57 bilhões de vezes mais profunda do que os limites da audição humana, um ruído muito aquém do que o ouvido humano pode captar”. “As imagens obtidas com os dados do observatório Chandra mostram duas cavidades enormes — em forma de bolhas — com cerca de 50 mil anos luz de largura, saindo do centro do buraco negro.”
Um ano-luz equivale a 9,45 trilhões de quilômetros. Andrew Fabian, do Instituto de Astronomia de Cambridge, na Inglaterra, disse que as ondas são causadas pelo encolhimento e aquecimento ritmado do gás cósmico, provocado pela intensa força gravitacional que mantém as galáxias aglomeradas.
O som grave que esses monstros do universo emitem podem ser comparados aos cânticos e mantras que no budismo tibetano são entoados, no limite extremo do som baixo da garganta humana, para os chamados dharmapalas, os protetores do dharma, como os mahakalas. Pasolini usou essas músicas soturnas no seu filme com Maria Callas, a “Medeia”.
A lenda, que faz das práticas desses protetores um som tão grave, diz o seguinte: certos monges rezavam a um mahakala durante muito tempo e nenhum sinal de sua presença ocorria. Então eles recorreram a um mestre que lhes disse para entoarem num tom bem grave, som de leão, de dragão, e assim ocorreu. Alguns monges cantam mahakala com o som da inspiração, e não com a expiração da voz.
Havia cerca de 100 mahakalas no mundo antigo da Índia medieval de onde tudo veio. A lenda diz que os mahakalas (ou grandes negros, daí a lembrança), existiam antes de nossa era, de nosso kalpa, ou eon. Um kalpa é o tempo em que este universo aparece (ou explode) e desaparece.
Há muitas eras atrás, havia um poderoso demônio que matava e comia os seres humanos de sua época e punhas suas cabeças num colar de cabeças decepadas com que se enfeitava. Os budas se compadeceram dos seres e se reuniram para ver o que podiam fazer. Resolveram destruir o demônio.
Depois disso, viram que ele iria renascer ainda mais furioso por isso. Assim, resolveram pacificá-lo. Assim nasce a lenda de um dos mahakalas que protegem até hoje os praticantes nyngmas do budismo tibetano.
É possível ouvir esses cânticos em CD e até pela Internet. São soturnos e belos, entoados por monges nos mosteiros. Os melhores são os do mosteiro Gyuto, do Dalai Lama.
Sim, o som grave que esses monstros do universo emitem puderam ser ouvidos.
sexta-feira, 23 de outubro de 2020
ME ESCREVO - ROGEL SAMUEL
ME ESCREVO - ROGEL SAMUEL
Não sei há quanto tempo estou neste Boing. Perdi-me no tempo. Não sei, também, onde estou, neste momento. Me espanta como os passageiros, ao redor, me parecem crentes. Acreditam na vida, naquilo a que estão vivendo, presos. (Eu não acredito nisto: na vida, uma ilusão, um sonho, uma fantasia). Não conheço ninguém, aqui. Talvez nunca mais os veja. (Ao contrário do que esperava, na volta reencontrei um americano no Shopping Rio-Sul: no Galeão descobrimos que a companhia americana havia perdido nossas malas, a minha e a dele; a minha foi achada num canto, a dele ficou em Chicago. Nos falamos alegremente. “Voltou hoje à noite”, me disse. Tinha comprado novas roupas. E teve de esperar dois dias pela mala, dos três ou quatro que por aqui passou. Mais tarde o revi, saindo do McDonald, onde deve ter-se encontrado em casa). Volto a olhar ao redor, nesta aeronave. Os americanos representam a si próprios. Reconheço brasileiros. Eles têm um certo modo de ser. Tentam imitar os americanos. Viajo na noite, no tempo. Todos os modos de viajar são como este. Vejo-me cansado de viajar, de ser viajante. Sinto-me estrangeiro em meu próprio país. Quando era jovem tive um apelido: “judeu errante”. (Não sou judeu, meu avô sim). Considero-me “errante”, nessa estrada sem retorno. O aeroporto de Miami tinha um exército de policiais. Eles estão mais gentis, já dizem “por favor”, “muito obrigado”. “ Qual foi a última vez que você entrou nos Estados Unidos”. Eu digo em 2000. Está errado, esqueço 2001. A policial sabe, tem meu passaporte nas mãos. “Quanto tempo ficou”, não me lembro, estou sonolento. “O que você vem fazer nos Estados Unidos?” Seria difícil explicar que eu ia para um retiro de budismo tibetano. Não acreditaria? A melhor resposta ainda é “turismo”. E não minto, turismo espiritual. Há cada vez mais brasileiros por lá. Ouve-se muita gente falando português. Esta não é para mim a melhor área americana. Eu gosto de Portland, no Oregon. Gosto de Los Angeles. Estou tonto e apático. A viagem longa, Rio, Miami, Chicago, Newburg. Um casal indiano ao meu lado. Ela, de sári. Ele, elegantíssimo no terno inglês. Indianos têm muito ar de nobreza. Eu não consigo ler, dormir, pensar. Mas escrevo. Gosto de escrever a bordo. Gosto mais de escrever do que de ler. Escrevo na noite. Escrevo perdido no espaço. Me escrevo.
TEMA E VARIAÇÕES DO "LIVRO DE HORAS" DE RAINER MARIA RILKE - ROGEL SAMIUEL
Que dizem essas mãos com os pincéis que nos cabelos tens, sobre o que, com que componho teu meu amor, enquanto em silêncio observas mergulhada no teu mistério azul, na tua orla de mar, nos teus olhos insondáveis, quase apavorantes, à margem de tua pele de ouro luminoso, - sim, que dizem e transmitem meus trêmulos dedos quando te tocam o desnudo ventre, e ousam te tocar a tátil música que me aparece, como se de uma pomba flor fosse constituída, ou de mil ilhas ametistas e cristais, oh, quando teus braços de amor me pendem, me fendem, me prendem nos espaços em que te envolves e te enlaçam - e que fazem minhas mãos quando te sinto hoje nos limites dos teus ninhos e que te percorrem nos hesitantes meios, a te mover como se fosses minha? Já não estás no âmago de tudo, lá onde todos os traços de tua dança de anjos se consomem. Teu céu inteiro em mim reside e ali desaparece, e por mim passa, e eis que me calo para te pensar. Assim te tem pintado aqueles deuses maiores, trazidos pelo sol. Assim te amadurecia a fruta do mais puro calor da luz tropical. Assim era o véu dos sentimentos que não revelavas nunca, o teu surpreendente mistério. Eras a ave. Amo-te assim, de tão longes vôos, como um menino que se sabe impotente pois inacessível esperança. Eu bem sei que és a terra, a guerra, o cume, o verdejante rastro, mesmo porque te sonho onde não persistes, onde não foram lavradas as minhas palavras de ti. Uma vez alguém me viu contigo e não acreditou, não pensou, éramos nós nem imaginávamos quão felizes inseparáveis completos naquele momento. Mas não sei porque aos poucos houve essa queda, essa fresta, esta frase que voa como tivesses as mesmas asas, lá e já, na minha boca onde não reside o teu gemido meu e suspensão da voz. Que me chega. De muito longe. Saída do anteceder do horizonte ponte como grossa chuva fecundante. Úbere. De tanto te bordarem na luminosidade primavera, foi-se o dia em que hospedei as tuas claras terras, neste solo fecundo, claras messes. Mas longe hoje, fluindo o tempo, ingresso, regresso para casa sem ti, é muito escura esta minha liberdade. Não, amor, não te recomeço não te reconheço nesta figura de opala opaca, pesada, no pomo pintado que foi o alicerce obscuro e fetíchico, frustrado dos meus muros e da tua juventude solitária. O livro que contém as chaves necessárias está fechado, as histórias a todo momento se concluem, e se alteram - passastes além do fio da pedreira cega, tomastes a forma silenciosa daqueles gigantescos edifícios onde não posso entrar. Reduzistes-me ao pó dos velhos monumentos fúnebres, cegos, velhos cânticos tidos, maduros demais para te realizar, para te cantar neste tom tão romântico. Nem mais te amo ainda, que sem o mesmo amor edificante, eterno, estudado, passeaste por mim como uma epidemia consentida, e em mim pousando como aeronave, - oh mãos salgadas, mãos ensangüentadas que me dizem? Tu és um jardim cheio de vida!
A HORA MARCADA - ROGEL SAMUEL
A HORA MARCADA
Sim, ela escreveu um conto onde, com hora marcada, a narradora precisa matar o personagem. Na realidade, aquela é a hora marcada de sua análise, a hora do analista. A narradora está no meio da condução do enredo de sua tele-novela, e o personagem... bem, um transtorno. “Antes ele do que eu”, dizem as vozes do texto. Quem choraria a sua morte?
Assim Leila Miccolis inicia o seu conto, e o seu livro de contos, “Achadas e perdidas”, esta obra-prima da narrativa curta, enxuta, surpresa, numa série de miniséries.
Justificativa para matar o personagem havia várias, como na novela das oito da Globo, “Mulheres apaixonadas”: a novela andava “em fase minguante”, “vítima da calmaria”, - a inesperada morte poderia despertar o torpor do “respeitável público” – mas nada de sangue escorrendo, de perseguição e morte, qual filmes americanos, ou na novela supra, mas apenas uma mancha colorida (ou preta), como a marca de baton da amante na gravata do cianoreto do coração – este conto é um verdadeiro tratado de escrever um enredo, telenovela conto ou romance, e de como agradar em duas páginas... Leila prestidigita a narrativa com seus rápidos, irônicos comentários bem-humorados... morrer, matar de morte indolor, mas a quem? Ao Pai? Ao Macho-Poder? Ao Falo (o que decide a fala)? Ao poder do analista de decidir quanto a Cura (se é que se dá?). Matar no divã “dia da alta” do analista que a largava, mesmo ela, “não sendo anti-Salomé”, a sua cabeça estava ali, a prêmio, sim, da narradora, no sofá do analista matava a todos, e a todas, não os seus queridos personagens, mas as ”super star” vaidosas, os galãs esnobes, legiões de atores, autores, bibliotecas inteiras caíam cruelmente assassinadas pela narradora, ou melhor, por mim mesmo, o seu cúmplice Leitor que, “por razões inconfessáveis”, demitia, um a um, os seus ídolos literários no divã da leitura das duas páginas de “Hora marcada” de Leila Miccolis, cuja narradora, agora curada, pelo analista, torna-se impotente pela ética, esse poder avassalador de edítica manobra, o impasse editorial, profissional, da Ética cura, da razão, que, ou pior, aguardava sua “ordem de comando”, perguntando: “E então?”
“Não, decididamente não posso, não matarei...”, responde o super-ego da Curada, da Justiça, a claridade da luz do dia em que o seu analista lhe deu alta, mas no meio da estrutura da novela que ainda estava no ar, e que precisava urgentemente acordar.
O conto funciona como prefácio dos outros do livro que vem com mini-séries transformadas em deliciosos contos, e vem com filmes, os “curtas” transliterados em meta-linguagem – Leila diverte na diversidade de sua visão da realidade e do seu ofício de escritora, também, de roteiros de tv. Que nunca tinha lido com tanto gozo a vida interna, intestina, das novelas que Leila transforma com muita arte em meta-ficção.
Todos que estudam a técnica de criação de roteiros não devem deixar de ler este extraordinário meta-texto, povoado de narrativas e personagens femininas “ achadas e perdidas”, tais como o feminismo as vê.
Mas a visão feminista de Leila Miccolis, entretanto, não é anti-machista, raivosa, irada, rancorosa, mas muito bem humorada e divertida de pós-modernidade (no que este termo tem de abrir caminhos próprios pela experimentação da literatura “descartável”, tal como na Internet, da escrita que não se leva a sério, mas que faz pequenas obras-primas da vacuidade, da inocuidade do cotidiano, etc).
O livro é, neste sentido, único. Surpreendente.
quinta-feira, 22 de outubro de 2020
UNIVERSOS PARALELOS
UNIVERSOS PARALELOS - ROGEL SAMUEL
O Rio de Janeiro doente, piora. Entramos no início de fase crítica, quando o choque parece inevitável. A cidade progressivamente desfalece, faveliza-se. Desde a mudança da capital para Brasília. O fechamento da Bolsa de Valores do Rio de Janeiro é um marco. Símbolo do fim. A economia é informal. O poder é “informal”. A vida é “informal”. Somos todos camelôs da vida cotidiana. Há mais favelados do que habitantes do asfalto? Quantos homens e mulheres têm aqui contra si algum processo criminal? Quem garante que esta situação não explode um dia, numa grande matança, numa geral confrontação armada? Já há uma separação, já há dois países distintos: a cidade e a favela. Um contra ou outro. O mundo da favela penetra no da classe-média através das empregadas domésticas e faxineiros, mas isso pode acabar ficando igual ao mundo Israel-Palestina. Morre-se mais no Rio do que lá? Vivemos confinados, ilhados?
Há um poema de Cassiano Ricardo, escrito em plena Guerra-fria, que diz:
Milhões de crianças chorando
na noite esférica.
Por que choram?
Não são
elas que choramÉ o futuro.
É a vida ainda não vivida.
São crianças no escuro
chorando por adivinhação
do acontecer.
Um dia, uma empregada, mulher quase tísica, trouxe a filhinha escondida, pois não tinha naquele dia com quem deixá-la. A menina não tinha pai, as duas moravam num barraco de perigosa favela. A mãe deve ter feito graves ameaças à criança, que ficasse calada e quieta, que desaparecesse num canto, que sumisse, que se escondesse, pois eu, o bacana, o Mal, o Perigo, não a queria ali. Era uma criança muito frágil, magrinha e desnutrida, muito pequenina e bonita. A mãe já tinha perdido vários empregos por causa dela, pois ninguém gostava de ver criança estranha ameaçando quebrar os cristais da sala, mexendo em livros e discos. Acuada, ela se escondia debaixo da mesa da cozinha, no fundo de si mesma, quando inesperadamente e antes da hora eu perigosamente apareci. Cheguei e, infelizmente, fui ate a cozinha beber um gole d’água quando a descobri.
O pavor daquele pequenino ser me assustou mais do que eu pudesse suportar. Aquilo me assusta até hoje. Eu não sabia. Não sabia. Nós nunca nos imaginamos agressivos e ameaçadores, somos sempre nós as vítimas. Ela, a pequenina, começou a chorar dolorosamente, estranhamente abandonada, como se eu fosse animal selvagem, como se “soubesse” que a mãe perdera mais aquele emprego, que a vida estava perdida e morta. A garotinha mostrava tanta dor e dramaticidade, que me contagiou até hoje.
O pânico daquele minúsculo ser me ocorre sempre que ouço falar de tiroteio nas favelas. Onde andará ela? Amedrontada, encurralada entre forças adversas: os grandes bandidos, os grandes policiais e nós, a classe média agressiva, onde se esconderá aquela meninazinha linda de tantos inimigos, deles e de nós? Como estará sobrevivendo? De que natureza somos nós feitos, que não pudemos mudar este mundo? O que fizemos com aquele ser feito de lágrimas? Nós fizemos este mundo, a natureza desta realidade e nossa obra. As crianças da favela são:
Criaturas
apenas de fato
por seus nomes
inscritos
no cadastro
eletrônicoo sul sem
norteviagem
sem
passaporte
Eu nunca pensei, nunca me imaginei, nunca me senti assim, ao ver-me no espelho. No meu tempo de marxismo, falava-se de luta de classe, mas da classe dominante não se falava, e sim da burguesia, dos detentores dos meios da produção material. Será a classe média, mesmo a classe média pobre, hoje, a classe dominante? E se a favela passar a nos ver como aquela menininha me viu um dia? E se a Rocinha descer contra o Leblon? E se nos virem com os “bacanas”, os responsáveis? E se disserem: Eles têm computador e TV a cabo, têm educação, cultura e livros, e nós não temos? Eles ouvem Wagner, Beethoven, lêem Proust e Pessoa, sabem escrever e são capazes de ler em vários idiomas? E nós? Que somos nós? Que podemos nós, que lemos nós, além de dar tiros, de assaltar, de matar, de nos asilar na favela e de enfrentar daqui nossos inimigos? E nós, que somos nós?
Se de repente se perguntarem por suas naturezas humanas ameaçadas, desperdiçadas, infelizes? Bandido é feliz?
Tenho amiga que, na solidão em que vive, gosta de passar horas nas salas de conversação na Internet. “Espero encontrar um namorado na Internet”, me diz sempre ela.
Um dia encontrou o homem de sua vida. ‘Conversaram’ e fizeram as mais fervorosas juras de amor, as mais ardentes ‘carícias’ de amor que suas capacidades verbais disponibilizaram. Ele era educado, atencioso, carente.
Duas horas depois ela pressionou o rapaz, quis saber onde ele morava, quem ele era.
- Se eu disser você me abandonará – ele disse.
- Por que? – perguntou ela.
Ele emudeceu. “Diga pelo menos de onde você tecla?”, perguntou ela. “De que Bairro?” Ele respondeu: “Bangu”.
- Não me diga que você está na Penitenciária de Segurança Máxima? – brincou ela.
Estava.
O PIANO A TARDE
O PIANO, A TARDE - ROGEL SAMUEL
Minha tia Maria José dispunha os frascos de perfume sobre um aparador de cor escura e tampo de mármore rosa. Os nomes insinuantes, sensuais, Tabu, Coty, Maja, poemas de amor. Ela nos recebia à tarde para servir café com brevidades. No fim de seus dias estava sempre sentada na poltrona. Não se levantava, dormia ali mesmo, o rádio ainda ligado no programa nenhum, só ruído neutro de seus sonhos de mulher solteira. Lembro-me do seu programa preferido: ' um piano ao cair da tarde' . O som não chegava em acordes completos porque o rádio era apenas um radinho RCA Victor de poucos recursos, mas ela sonhava com seus invisíveis amantes. Ao cair da tarde seu leque se misturava com o leque das cores do sol que recebia o piano, cujas valsas se alçavam no ar fino, cobriam casas e vilas. E se subíssemos pelas janelas da rua Barroso poderíamos ver os gradis da Igreja de Sta Rita e o vão escuro do que tinha sido o igarapé que anos atrás passava por ali, com suas araras e serpentes venenosas. Olhando-se um pouco mais acima estavam os pássaros tardios que partiam para o anoitecer de tudo, para noite do mundo, para o outro mundo, do outro lado do universo, no oceanos dos rios de nossos medos, signos e ansiedades. Os pássaros eram de um rendilhado fino e tinham nos seus bicos gotas de rubis reluzentes, mergulhavam no ouro do por do sol finalmente afastado. E um piano, ao cair da tarde.
segunda-feira, 12 de outubro de 2020
Nine: Frei Lothar
Nine: Frei
Lothar
The seated
figure, waiting for a tambaqui fish to be baked and served on a banana leaf,
which would be reinforcement to his heart and stomach, was rendered sadder by
the shade of the kapok tree. It was the
first substantial meal he would be eating for the two days in which he had been
traveling. Frei Lothar felt tired and
reflected on his life and misfortunes like the one he had just endured. He was still gasping, upset by the
calamity. He felt a certain obscure
fragility, old age at the least, and so he knew that the appointment of his
days in Amazonia was coming to the end and that now he would have to abandon
everything, retire and die. Coming by
canoe through a channel of the Numa Slough, he was passing over a floating
island of tea wort when the canoe tore into a kind of moving fabric, a horrible
carpet in the shape of a map of Brazil formed by crackling and armed yellow
scorpions, in an area of several square yards; they were advancing, one on top
of the other, crossing the river in migration.
A caboclo started to shout and the canoe almost overturned.
“Quick!”,
the padre commanded.
But
already the scorpions threatened to climb on board and Frei Lothar, lighting a
fire with the newspapers he was bringing to the judge in Calama, filling the
barque with flames and getting burnt all over, exclaimed, “Oh, my Amazon!, God
is great but the forest is greater and I am not the same.”
Beginning
to recover strength, he was waiting to depart after lunch on the Barão do Juruá,
now owned by Antonio Ferreira, as was everything else there. But Ferreira had gotten a bad deal; the price
of rubber was declining more and more from what it had been a hundred years
before, as the Brother had seen on the trip he made this month to the Rio
Machado – rubber tappers decimated by fever, ruined by the crash, unemployed
since rubber from Ceylon, without microcyclus, supplanted production in the
Amazon; thousands of tappers witnessed the permanent end of the gigantic
empire, in which vast fortunes made overnight disappeared and the Amazon
returned to what it had been before 1850: hell entrenched in an economic crisis
that lasted a half century and killed thousands.
There were
still a few places where Frei Lothar could stand to go and Manixi was one of
these. The brother had lost his faith,
spoke coarsely, spit on the ground, went around armed, was cross and smelled
bad. The Rio Machado dazzled him,
seduced him, its green water running over emeralds, strange country of a
strange world where one only met with adventurers and Indians: the
sparrow-hawks, the macaws, the bobtails, the shelf fungi, wild, savage,
indomitable, hidden in the high and shady forest. It was paradise, it was hell, and Frei Lothar
loved it; he could not live without those trips, adventures in search of the
unknown. But the worst trip he made was
in 1908, when Frei Lothar, in a caravan carrying rubber latex from Cruzeiro do
Sul to the Cocame plantation, from the Rio Juruá to the Rio Tarauacá, crossed
the Manixi plantation, crossing the Rio Gregório, the Acurauá, proceeding on a
rough trail over a distance of two hundred miles. At that time, however, Frei Lothar was young
and at his hardiest.
Not much
time had passed when, with sandals sinking in the muddy clay, he was watching
the loading of the barge that the Barão do Juruá would be pulling to
Manaus from the Rio Jordão. His old
cassock stank, as it was soaked with sweat.
Sweat dripped upon much older sweat drenching the patches. Under a big, old and ill-fated black
umbrella, the friar looked ridiculous on the steep river bank, a strange type,
exotic, on the edge, in the greatest difficulty. The Barão do Juruá was being loaded
and the friar debarked for lunch, unsteady, in need of terra firma and an
escape from the heat, his feet sank in the soft mud. He was clambering up the slippery ladder of
the bank with difficulty when the first dogs appeared. At first, there were two that came down the
ladder in a fury. Then others came and
Frei Lothar eventually found himself surrounded by dogs and was using the cross
of his rosary to defend himself. The
children and men were laughing – the old good-for-nothing. Some of them owed their life to him. But Fernando Fialho, the harbormaster, showed
up suddenly and rescued him. Fialho was
busy loading jute, the new commodity of the region, on its way to Manaus. It seemed that Frei Lothar could not board
because the stevedores had taken the gangplank away and, strong and squat, they
were going back and forth on it weighed down by their loads so that they were
sinking into the bank. Frei Lothar
looked at the muddy water that dirtied his sandals. Boys had gone down the ladder. They had not even asked for his
benediction. It was said that he liked
little boys, which was a lie. The boys
jumped into the turbid water near him.
Water sprayed, sparkling. They
were near to giving the missionary a bath.
Frei Lothar did not protest because he was ill, with the illness of old
age, without strength, without courage, without nerves, without vitality,
without spirit, without faith. He looked
upon all this with compassion, sweat and impatience. It was truly satisfying – that splashing
which refreshed him. If he could he
would have taken off his smelly cassock and happily submerge himself in the
water. All these events blended together
for Frei Lothar: the scorpions, the dogs, the dousing, illness, old age,
calumny. The end. Annihilation.
Death. His legs trembling, Frei
Lothar was on the point of fainting in the heat. Miserable dogs! Miserable urchins! Miserable life! Evening began to fall and night was
approaching. The Barão do Juruá was going to sail,
finally, empty – a blessing that Antonio Ferreira forbade it to carry
passengers. No, it was not true that
the world was against him. Just the day
before he had been treated well.
Ferriera tolerated the old padre who administered medicine to people on
the plantations. The Barão do Juruá and everything that belonged to the Bataillon
empire was the property of Antonio Ferriera.
The Barão was going empty,
the friar would travel in peace, in comfort.
He had known trips in vessels full of pigs and hammocks, stinking of
excrement and putrid fish. The padre's
neck was burning with the heat, sweat was pouring and was rushing into his
chest. How easily those men lifted and
loaded the heavy bales! Oh, youth,
youth! Ah, the strength of their arms! Frei Lothar had come from Tarauacá, which he
still called Villa Seabra, had crossed on foot the arduous São Luis slough and
the São Joaquim, by way of Universo, Santa Luzia, Pacujá, he came by canoe by
that hidden channel. Now, no... He was no longer up to it. Let him prepare to die. But Frei Lothar did not want to die, he had
spent his life fighting death. He would
end up sunk in a hammock in Manaus in the parish of Aparecida in the midst of
wretched charity. Well no, that was not
certain. He would like to die in peace
or return to Europe, a dream that dissipated, as he was poor. Forty years in the depths of this hell, forgotten,
diminished, lost in the jungle. Would he
know how to live far away from this savage world? How would he be able to get to Europe, to
Strasbourg, his native city? He had done
everything that had to be done, fought off wild animals and fevers, said masses
among the Indians, baptized illegitimate urchins on river banks. What more?
Would they still want him? As he
could no longer ride horseback due to sciatica, he had to live on foot, bent
over by the weight of years and arthritis – my God! - his entire life most sad,
wasted, among serpents, vilified, chased by dogs … a difficult world! And within the Church, Frei Lothar only saw
the struggle for power! He had saved the
lives of thousands of men and was accused of illegitimately practicing medicine! The families of Manaus had nothing to do with
him as he had a bad reputation and bad character. He spit on the ground and used vulgar
language. No, he received nothing in
exchange, he never had money, never had a place to live, never flattered the
powerful, never tolerated them, always irritated them. After working forty years he only reaped
enemies. And the heat and mosquitos, the
suffocating nights. He had forged his
way into impenetrable forests full of snakes, spiders and scorpions. And how did they acknowledge him? With malicious gossip, with dragging his name
through the mud. Those scoundrels could
not understand his life among the Indians as other than for some sordid motive
born from their sick imaginations. No
one believed that he had labored in that hell for forty years in exchange for
nothing. This ate at his soul. There were letters from superiors with
accusations, the Provincial came with rumors … Ah, let them take him from there
so he would be gone forever – if they killed him they would be doing him a big
favor! … He was superfluous in that world; he would certainly like to die to
oblige the parish priest who detested him.
No one liked that ugly man who only wore the habit of a padre. His rough and weary voice, his crude and strong
hands, his fierce expression. Frei
Lothar hated the ruling class, hated religion and the faith; rather for him it
was medicine and practice. He did not
talk of pious matters, scratched his balls, prayed unwillingly, was irreverent,
laconic, frank, aggressive, gruff with the authorities, primitive and
rude. Frei Lothar was an irritated
soldier in Amazonia, God's officer, armed.
The night
was quite dark when the barge was fully loaded.
The plank
was transferred to the Barão
which was already stirring and near departure.
Frei Lothar carefully climbed on board and went to his cabin where he
took a bath before dinner.
Then,
clean and sated after his dinner, he was in a better mood. The Barão
continued its journey in the middle of the night – risky, but as could be
expected Ferreira wanted the boat in Manaus right away. The sound of the engines did not bother him,
he was resigned to it. Frei Lothar went
up towards the stern in the dark to a sort of terrace. He was alone.
The wind began to feel good to him, that wind had a delicate scent, an
atmosphere; he remained looking out at the dark night while sailing downstream
between the forms of shadows. It was as
he always felt – a passenger in the world.
He never stopped, here today, gone tomorrow... He thought of the man he
had been tending in Villa Seabra. That
man was about to die … What is death?
What is faith? Many men had died
in his arms and he could do nothing.
What was death? His faith lost
long ago. Let the Provincial get
angry! What Frei Lothar saw and observed
his whole life – it was not God: it was suffering, pain and death, misery and
desolation. Frei Lothar got up with
effort and left to go to his cabin from which he emerged with his violin. He sat down.
He would practice until sleep came.
It was Bach's Second Partita that he knew by heart but he never
succeeded in overcoming certain difficulties.
He played without the score. He
practiced without a score, in the dark, in the fleeting wind. Alone.
Without a score and without light, without anyone. Oh! It
was thus in the Amazon. The Amazon did
not have a score, light or anyone. The
Amazon was an immense plain of misery.
The economic depression hovered in its monstrous silence. The Partita came out rather well from his
old, arthritic fingers. He never had
time to practice, never had the conditions, the leisure. He traveled with his violin in ships and
canoes, in channels and pools, and almost lost the violin with the scorpions:
it was a valuable violin and symbolized what he had never been. A bad padre, a bad doctor, a bad
violinist. He had never done anything
well. Nothing complete. Now he was old, weak, having little faith,
little knowledge, little technique. “Oh,
worse than death is mediocrity!”, thought
Frei Lothar; the violin moaned, litanies, recitations, reflections. He attended the sick without resources; said
masses without passion; and now played the Partitia badly. Without remedies, without scores, without
know-how. Frei Lothar played with
imagination. The violin was a
Guarnerius. It was a present from Juca
de Neves, one of the few men with whom Frei Lothar was on terms of friendship. Actually, a Guarnerius is not an
imitation. It is a refinement of a
Stradavarius and much more resonant, appropriate for concert halls and with
large orchestras, whereas Strads were for suited for chamber music. Aided by inspiration the Partita came out
quite well. The Barão continued on in the middle of
the night. Suddenly, the friar recalled
the Brahms Double Concerto – what beauty! - and he modified one of the sections
of the Partita with the violin part from that other work. All was unease and sublimity in the Double
Concerto. He imagined himself surrounded
by the orchestra, remembered his dreams of becoming a musician, and not a
priest; he immersed himself in the concerto, hearing the cello and the entire
big orchestra. He saw full galleries
from which triumph burst forth, the applause, all that far away from the
Amazon, far away from death. He was
elevated by his daydream. Why? Nothing was left of the old mysticism. Why?
He played Brahms plying his way through the Amazon forest. Night was at its height and the Amazon sky
suddenly became transparent and clear, covered with stars that sparkled, and
everything appeared to him as of one nature, in a whole in which he did not
exist but was integrated in a totality – and Frei Lothar stopped playing, ran
to the ship's rail with tears in his eyes and suddenly saw, ecstatic, immensity
and eternity appearing suddenly there before him, approaching and arriving to
him, wide, entering through his eyes, his ears, and everything was one
Immeasurable... - and he, one with it, eternal, gave a shout and felt
incomprehensibly happy.
domingo, 11 de outubro de 2020
ESCREVO MELHOR EM DÓLAR
"Escrevo melhor em dólar"