Folia no seringal:
alegoria e paródia em O amante das amazonas
Zemaria Pinto
Como trabalho, a
literatura faz uma transformação da realidade. Transformação da história. A
história é um processo unitário, um devir, um pôr-se, um produzir-se e reproduzir-se,
implicando que o homem toma cada vez mais consciência de si mesmo como ser
social.
Rogel Samuel[1]
O carnaval é a
segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva.
Mikhail Bakhtin[2]
Concentração: muito
siso e pouco riso
O ciclo econômico da borracha foi curto, mas muito rentável, para
as contas do decaído império e da nascente república. No âmbito literário,
entretanto, apresenta um considerável déficit: nada além de alguns contos, meia
dúzia de romances, uma ou outra peça de teatro, um poema de fôlego. Além de um
projeto frustrado, destinado a se tornar um clássico: Um paraíso perdido,
de Euclides da Cunha, o seu “segundo livro vingador”, do qual sobraram alguns
textos que antecipavam a obra-prima, reunidos em À margem da história
(1909) sob o subtítulo “Terra sem história”, além de uma coleção de textos
erradios, sob o mesmo título previamente escolhido pelo autor.[3] O poema referido é A
Uiara (1922/2007), de Octavio Sarmento, em que, embora o motivo seja
moderno – uma análise psicanalítica da solidão no seringal –, a forma ainda vacila
num caldeirão romântico-simbolista-parnasiano. Folias do látex (1976),
peça de Márcio Souza, homenageada intertextualmente em nosso título, tem o vaudeville
como forma e o humor carnavalizado como fim. Os contos e a quase totalidade dos
romances são de extração naturalista. As exceções são Dos ditos passados nos
acercados de Cassianã (1969), de Paulo Jacob, exarado numa linguagem recriada,
à maneira de Guimarães Rosa, mas afiliado ao neorrealismo, que no Brasil tomou
outros nomes, inclusive o execrável “regionalismo”; e O amante das amazonas,
de Rogel Samuel, sobre o qual iremos refletir.
Rogel Samuel, professor-doutor aposentado pela UFRJ, tem vários
livros publicados, nos gêneros poesia, romance e ensaio, onde sobressaem-se os livros
sobre Teoria Literária. Em sintonia com as novas mídias, Samuel colabora
regularmente com portais de literatura, como Entretextos e Blocos,
além de ter o seu próprio sítio.
Publicado em 1992, dividido em vinte e três capítulos, O amante
das amazonas é anunciado pelo autor como um livro de ficção baseado em
fatos reais, incluindo o depoimento de testemunhas e relatos de seu pai, que
navegou pela Amazônia por 40 anos e foi o seu guia no conhecimento da floresta,
a bordo do Adamastor.[4] Para esta análise, vamos
nos ater à definição do narrador, “paródia de romance histórico” (p. 16),[5] tomando como parâmetro
investigativo não o conceito backthiniano de carnavalização, mas o próprio carnaval
brasileiro, buscando conexões entre a estrutura da obra e elementos do carnaval,
identificando o caráter polifônico do romance, obtido por intermédio da
paródia, da alegoria e da metalinguagem, e pelo dialogismo intertextual
estabelecido na dicotomia ficção-história, numa fusão do sublime com o
grotesco, do sagrado com o profano e do sério com o cômico.
Mas não se iluda, esta é apenas a apresentação de uma obra
literária, importante e singular, sem pretensões epistemológicas ou
hermenêuticas.
Enredo
A narrativa gira em torno dos habitantes do seringal Manixi, a mais
de 3 mil quilômetros de Manaus, propriedade do francês Pierre Bataillon, que
ali chegara em 1876. A região era habitada pelos índios Caxinauás e Numas,
antípodas: estes, guerreiros, jamais aceitaram a presença do invasor, enquanto
os primeiros se deixaram escravizar e, lentamente, dizimar. Culto e refinado, Coronel
Baitaillon constrói um colosso arquitetônico no seringal, o Palácio Manixi, uma
espécie de Xanadu tropical, delirante representação da opulência proporcionada
pelo ganho fácil na exportação do látex. Sua esposa, Ifigênia Vellarde, era,
assim como ele, descendente de linhagens nobres europeias. Vieram para o
Amazonas porque a saúde de Bataillon pedia “climas quentes”. Os dois morrem em
um naufrágio, no rio Juruá, em 1910. Pouco antes, intuindo a queda nos preços
internacionais, o Coronel vendera o seringal a Antônio Ferreira, testa de ferro
de um comendador de Manaus, que já havia comprado outras áreas adjacentes. O
filho deles, Zequinha Bataillon, nascido a bordo do navio Adamastor, em
1890, quando sua mãe fugia de um surto epidêmico de malária, tem como maiores
amigos dois caxinauás: Paxiúba, o Mulo, espécie de guarda-costas e pau-pra-toda-obra,
e Maria, pouco mais velha que ele, “segunda mãe e primeira amante” (p. 77). Educado em Paris, Zequinha retorna em 1908,
passando, com os dois amigos, a “viver no exótico, pela singularidade da vida
afastada dos costumes e expectativas gerais” (p. 86). Quatro anos depois, dá-se
o desaparecimento misterioso de Zequinha, que vai pontuar toda a narrativa.
É importante salientar o simbolismo dessas datas. Em 1910, começa
o declínio do comércio internacional da borracha. Em 1912, os seringalistas
compreendiam que aquela era uma viagem sem volta. Poucos seringais insistiam em
se manter ativos, buscando diversificar a produção com outros itens. O Manixi,
decadente, fora abandonado pelos novos donos.
O mais conhecido romance sobre o período, A selva (1930),
de Ferreira de Castro, de cunho naturalista tardio, situa sua ação no período
1919-1921 e esta é, entre tantas outras, sua maior falha, porque o pretenso
realismo da ficção se anula quando cotejada com a realidade: à época, a
economia baseada no extrativismo do látex já estava reduzida a pó.[6]
A partir de 1912, dá-se uma guinada na narrativa, conduzida por
Ribamar de Sousa, que até então mantivera-se discreto, semioculto diante dos
fatos contados, assumindo o protagonismo da trama, que passa a ter como moldura
e fundo não mais a selva amazônica, mas a deslumbrante Manaus, a Paris dos
trópicos, que, por reflexo do que acontecia nos seringais, afundava-se em
ruínas – não há antonímia digna para deslumbrante.
As peripécias narradas por Ribamar envolvem desde expedições em
busca de Zequinha Bataillon até a revelação sobre um tesouro desaparecido do
palácio Manixi. De humilde imigrante a senador da república, “uma das fortunas
mais sólidas de Manaus” (p. 143), Ribamar conduz o leitor ao desfecho da trama,
valendo-se de uma narrativa feérica, em que não falta nem mesmo um paradoxo
temporal.
Comissão de
frente
O capítulo dezesseis – “Benito” – sintetiza o procedimento narrativo,
reunindo exemplos de paródia, alegoria, metalinguagem e intertextualidade. O
Bar Bacurau era uma representação microcósmica da Manaus em tempos de sombras, onde
avulta acima de tudo e de todos a paradigmal figura de Benito Botelho,
arruinado fisicamente, “parecidíssimo com Mário de Andrade” (p. 121), um
prodígio literário, com uma memória fotográfica incomum. Polemista profissional,
Benito era “poeta e poliglota, lia e falava francês, inglês, alemão e italiano,
além de [ter] sólidos conhecimentos de grego e de latim” (p. 121). Mas ele não
estava sozinho no bar, onde se juntava a velha guarda boêmia da cidade.
No Bacurau se reunia a escória da
sociedade manauara. Eram pescadores, policiais, bichas, poetas, presidiários,
prostitutas, comunistas, peixeiros, músicos e o grupo do Clube Satírico
Gregório de Matos, que infernizava a vida dos poetas maiores do Clube da
Madrugada. (p. 122)
Benito Botelho “era a única voz de oposição naquela sociedade louvaminheira,
laudatória, servil, risonha e patriarcal” (p. 126).
Sob a liderança arruinada de Benito, a escória do Bar Bacurau abre
o nosso desfile.
Porta-bandeira e
Mestre-sala
Adiante, daremos ênfase na fundamentação alegórica das personagens
de O amante das amazonas, mas comecemos por destacar dois papéis que,
secundários, têm fundamental importância na trama: Paxiúba e Maria, ambos
caxinauás. Antagônicos, os dois se completam na subserviência ao patrão
Zequinha. É curiosa a definição dos caxinauás, dada pelo Coronel Bataillon:
Eles constituem um povo simbiótico, um
organismo só, vivo, único. Não são seres individuais. O indivíduo é o povo, a
raça. (p. 68)
A relação especial dos dois com Zequinha Bataillon, sintetiza essa
simbiose: enquanto Paxiúba é o braço armado, sanguinário, de Zequinha, Maria é
o lado amoroso – mãe, irmã, amante. Separados, Paxiúba continua seu mister de
violência, mas Maria se transforma, para os que ameaçavam o seu território
sagrado: “hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si
mesma, refluía em si, como serpente” (p. 68-69).
Numa paráfrase intertextual entre o libelo político e o ensaio
sociológico, o narrador dá a sua versão de Maria Caxinauá:
São raças inteiras espoliadas,
traumatizadas, despossuídas de seus deuses e de suas riquezas construídas
durante séculos, sangradas em hecatombes, liquidadas para sempre. Contaminadas
de doenças, escravizadas e corrompidas, submetidas ao trabalho escravo que
consumiu o sangue de milhões de pessoas desprovidas de suas economias de
subsistência, tragicamente transformadas em exércitos de massas proletárias –
vinte milhões de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto
cego de Maria Caxinauá. (p. 69)
Os caxinauás, nas figuras de Maria e Paxiúba, alegorizam as nações
exterminadas no contato/enfrentamento com o invasor branco.
Fantasias: ambiente
A trama de O amante das amazonas se desenvolve basicamente
em dois ambientes: a selva amazônica, proximidades do Rio Jordão, hoje
território do Acre; e a cidade de Manaus.
A selva amazônica é um intricado de ambientes diversos, mas, para
delimitá-lo, ao entrar no ponto exato da trama, o Igarapé do Inferno, o autor
usa uma metáfora que não deixa dúvidas quanto à sua localização: “o marco
extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre
(...), limite do fim do mundo” (p. 11). A área onde hoje se localiza o estado
do Acre pertencia à Bolívia, mas foi invadida, desde os anos 1870, por
seringalistas brasileiros. Os invasores enfrentaram não somente a hostilidade
natural do meio, mas também a resistência dos nativos. A pendência internacional
só foi resolvida em 1903, quando o Brasil, literalmente, comprou o Acre.
A cidade de Manaus, a partir de 1912, quando fica patente que a
debacle estava em curso, transforma-se de “Paris dos trópicos” em uma cidade em
ruínas – física e moralmente. Essa letargia se estenderia até a primeira metade
dos anos 1940, quando a economia com base na exploração dos seringais nativos
recebe um influxo motivado pela demanda americana, na segunda grande guerra.
Terminado o conflito, a cidade volta às sombras, período que se estende até a
década de 1960, com a implantação da Zona Franca de Manaus.
Um terceiro ambiente, apresentado como um apêndice no meio da
narrativa, é a Rua das Flores, situada na Vila de Transvaal, às margens do rio
Jordão; provavelmente, o ponto urbano mais próximo do seringal Manixi. Ribamar,
o enternecido narrador, é frequentador assíduo do “mais belo jardim urbano” (p.
128) do Amazonas.
Do ponto de vista cronológico, a ambientação se dá em duas fases
distintas: de 1876, quando Pierre Bataillon se instala na região, até 1912,
quando Ribamar abandona o seringal Manixi e vai para Manaus; e daí em diante
até meados dos anos 1950, quando Ribamar já consolidara sua fortuna e seu poder.
Portanto, em torno de 80 anos.
Samba-enredo: o narrador
A narrativa começa da forma mais convencional possível, fornecendo
informações precisas sobre a personagem que vai se configurar como de suma
importância para o enredo: era o natal de 1897 quando o narrador, ainda
adolescente, se despede de sua mãe, que ficaria em Patos, Pernambuco, iniciando
viagem para o Amazonas, em busca de um tio e um irmão, num certo seringal
Manixi, às margens do Igarapé do Inferno. Esse narrador, ficamos sabendo depois,
se chama Ribamar d’Aguirre de Sousa, e como narrador-personagem, esforçando-se
por parecer secundário, ele atrai para si as atenções a partir da segunda
metade da narrativa, passada em Manaus.
Ribamar é um narrador complexo. Mesmo em permanente contato com o
leitor – “Mas silenciosos, sozinhos, sigamos nós, leitor” (p. 87) –, ele às
vezes se esconde, num procedimento parodístico, sob um diáfano véu de
onisciência, que é apenas a expressão do que ele tem como a sua verdade. O
capítulo treze, por exemplo – “Conversas” –, é todo em terceira pessoa: mostra
os detalhes de uma conversa entre o Comendador Gabriel Cunha e o padre Pereira.
Como um dos motivos era o próprio Ribamar, ele imagina como poderia ter sido a
interlocução entre os dois e a reproduz com todos os travessões e reticências.
Antes, no capítulo dez – “Perdida” –, ele narra a violência de um encontro
entre Maria e Paxiúba e coloca-se em posição de onisciência – pois somente as duas
personagens poderiam narrar a cena –, de tal modo que, ao se autorreferir, o
faz em terceira pessoa: “(...) e a sede ficara sob as ordens de um Ribamar
(d’Aguirre) de Sousa, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o primeiro
capítulo desta narrativa” (p. 102): paródia, metalinguagem, intertextualidade.
Ribamar é um típico narrador-personagem, que se limita a narrar
apenas o que é do seu conhecimento, mas que não se furta, em nome do estilo, em
fazer-se de narrador pressuposto. Afinal, acima de tudo, sua função maior é a
de protagonista da paródia.
Harmonia: o uso
do tempo
A fragmentária narrativa de O amante das amazonas é feita
em flashback. Ribamar narra muitos anos depois dos acontecimentos.
Porque estou velho mas não estou
louco. (...) Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo,
arcaico, luxuoso, feito tricotado em ouro e pedras preciosas. (p. 18-19)
Memória e não linearidade narrativa podem induzir o leitor a
pensar em tempo psicológico, mas não é o caso, posto que o narrador, ainda que
por vezes tenha as lembranças embaralhadas, sempre busca o tempo cronológico, a
referência precisa, a exatidão fictícia, mas histórica. A não linearidade
narrativa, entretanto, respeita os limites das duas partes identificadas: a
primeira, que vai até 1912; e a segunda, daí em diante. Mas, ao apresentar a
personagem Benito Botelho, o narrador permite-se uma licença poética, ao
mostrar Benito, de 37 anos, que fora amigo de infância de Zequinha Bataillon,
bebendo com os poetas do Clube da Madrugada. Pela descrição, infere-se que o
ano dos acontecimentos seja 1927, um pouco mais, um pouco menos. O caso é que,
por essa época, o pessoal do Clube, que viria a ser fundado em 1954, ainda não
nascera. Mas Ribamar – o velho narrador – traz no próprio nome a explicação
para esse paradoxo temporal. No filme Aguirre, a cólera dos deuses
(1972), o diretor Werner Herzog funde duas expedições ao Rio Amazonas,
separadas por 20 anos, em uma só, fazendo um filme extraordinário. Fosse um
documentário, seria mistificação. Sendo uma ficção, esse paradoxo é um
artifício que o autor lança mão para enriquecer seu universo. Em favor de
Ribamar, diga-se que os copos de Manaus à época não eram muito interessantes:
Maranhão Sobrinho e o Conde Stradelli estavam mortos; Nunes Pereira, vivia
enfiado entre os índios, tomando caxiri. Era preciso buscar no futuro bebedores
à altura, entre os poetas do Clube da Madrugada, a mais extraordinária explosão
de talentos sobre a linha do equador, no século 20.
A fragmentação narrativa é um puzzle que o leitor vai
encaixando aos poucos, posto que todos os fatos narrados levam, na primeira
parte, à queda do seringal Manixi; e na segunda parte, à ascensão de Ribamar, o
repositório das lembranças perdidas do seringal, o único a poder narrar O
amante das amazonas, pois todas as outras personagens já eram finadas.
Alegorias: personagens
As personagens de O amante das amazonas são todas
alegóricas, porém elaboradas com o senso da paródia. Como num vaudeville.
Tomemos como paradigma o próprio narrador, Ribamar de Sousa, que
já identificamos como o protagonista. Sua trajetória é inversa à trajetória dos
imigrantes nordestinos que vieram “fazer a Amazônia” na época da borracha.
Estes, recrutados com promessas de enriquecimento fácil, vinham em condições
miseráveis, e se tornavam escravos dos donos dos seringais, que lhes cobravam
absolutamente todas as despesas, desde a passagem de vinda até o indefectível quinino
para combater a malária. E como pagariam? Com o produto de seu trabalho,
remunerado de acordo com a produção obtida, chovesse ou fizesse sol. Esse valor
estava diretamente atrelado à cotação da borracha no mercado internacional.
Euclides da Cunha e Samuel Benchimol deixaram páginas memoráveis sobre o que
Euclides chamou de “a mais criminosa organização do trabalho”.[7]
Contrariando todas as expectativas, Ribamar galga o posto de
administrador do seringal Manixi e, em Manaus, torna-se empresário de sucesso.
Daí para a política é apenas uma questão de tempo, tornando-se nosso herói
senador da república. Uma antialegoria ou, antes, uma alegoria paródica do
imigrante nordestino que iria, sobrevivente do seringal, povoar as favelas das
cidades amazônicas.
O mesmo se dá com Pierre Bataillon ou Coronel Bataillon – um
título comprado. Cidadão francês, Bataillon representa não apenas o capital
estrangeiro, mas também o domínio cultural da França à época. Antônio Ferreira,
que o sucede como proprietário do Manixi é uma personagem menor, do ponto de
vista moral, um testa de ferro, mas nem por isso menos representativo, pois é o
símbolo do capital nacional arruinado pela debacle. Seu patrão e financiador, o
Comendador Gabriel da Cunha, representa o poder do capital nacional,
manipulando o jogo político, de acordo com seus interesses.
Na disputa política, Juca das Neves, inimigo do Comendador, é a
representação do empresário urbano que ruiu sob os escombros da cidade
destruída. Mas é de sua amizade com Bataillon, já falecido, que Ribamar se
serve para aproximar-se dele e soerguer sua fortuna – em proveito próprio,
claro.
Zequinha Batelão, como o chamavam à boca miúda, é uma alegoria da
riqueza obtida sem maiores incômodos, o que o leva a uma vida de aventuras,
culminando com o seu misterioso desaparecimento e todo o lendário construído em
torno disso. Amante de Maria Caxinauá, uma das lendas sobre o seu
desaparecimento é que Zequinha teria seguido uma índia Numa e, como os Numas, se
tornado invisível. É ele, o venturoso e aventureiro José Bataillon, o amante
das amazonas que dá título à narrativa.
É importante frisar a participação feminina na trama. Por
enquanto, vamos falar das “brancas”: Ifigênia, Constança e Glorinha. Meramente
decorativas, as três personagens representam a dimensão feminina de um mundo
cruelmente masculino. Ifigênia, a soberba dama europeia. Constança, a louca
matrona amazônica. E Glorinha, inexpressiva, quase idiota, impropriamente
chamada de lambisgoia, o que para ela seria um elogio.
As “índias” Maria, Ivete, Júlia, Eudócia e Diana têm participação
muito mais acentuada, inclusive como alegorias. Maria Caxinauá é uma personagem
sublime, representação de todo o povo Caxinauá, é a própria encarnação da
tragédia que se abate sobre sua nação. Ivete Maacu é a representação da cabocla
sedutora, tão explorada, especialmente nas festas juninas – não são à toa as
tatuagens em vermelho e azul. Ribamar não economiza advérbios, verbos e
adjetivos ao se referir a ela:
Bruscamente, incompreensivelmente,
irrompendo com fúria e fulgor como Febo no horizonte – alta, forte, violenta,
vigorosa, portentosa índia maacu, como uma deusa, surge, aparece, explode pela
porta e tem os braços tatuados de vermelho e azul, e quase nua, envolta em um
manto de seda prateada e em chamas brilhantes como o céu. (p. 55)
Diante dessa visão, o indefeso Ferreira apaixona-se e, arriscando
a ira do chefe, seu sogro, abandona a inútil Glorinha e casa-se com aquela
visão, alimentando a lenda de que as caboclas amazônicas são insuperáveis no
quesito sensualidade.
Júlia é representante dos míticos Numas, só que visível e
palpável. E fazendo jus à fama de sua gente, cativa de guerra que era, armou
vingança e encantou-se no invisível.
Eudócia, tia de Benito Botelho, até por contraste com o próprio
sobrinho, representa o conformismo do povo, que se resigna à condição de
semiescravo.
Diana, por outro lado, ainda que pouco apareça, é a síntese da
mulher moderna, que começa a surgir ainda na primeira metade do século 20, com
intensa participação social e política e reivindicando um status de
igualdade com o macho opressor.
Paxiúba, é o “emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria,
desconhecida, nociva” (p. 39). Quem define o Mulo é o próprio narrador, que o
conheceu de perto. Uma ameaça para os outros viventes, Paxiúba era um mero
xerimbabo de Zequinha: “dormia a seus pés, como um cão” (p. 79). Paxiúba
representa a violência tão presente nas relações amazônicas – sejam políticas,
de trabalho ou de família.
Uma personagem com um simbolismo muito forte é Sebastiana Vintém,
manicure e fofoqueira profissional. Barbadiana, representa a imigração
estrangeira. A escolha tem um toque de humor paródico, porque portugueses,
japoneses, turcos e árabes – o principal contingente migratório – acumularam,
em um século de histórias, dezenas de casos de sucesso, contra nenhum caso de
família negra. O narrador ironiza: Sabá Vintém “envelheceu próspera; almoçava e
jantava na casa das madames” (p. 106).
Conchita del Carmen e Fernandinho de Bará quase ficam de fora da
trama, mas, já que entraram, precisamos dizer que eles estão ligados pelos
laços indissolúveis do comércio sexual, sucesso em qualquer parte do mundo, em
qualquer época.
Duas personagens, pelo que têm de fascinantes, só adquirem pleno
sentido quando vistos juntos: Benito Botelho, filho de Isaura, cozinheira do
Palácio Manixi, “o maior intelectual amazonense” (p. 58), é levado ainda
criança por uma varíola para Manaus, o que o aproxima de Frei Lothar, uma
espécie quixotesca – sensível e enlouquecido. Benito e Lothar são um desafio à
história oficial, onde os intelectuais são cooptados – vide o “revolucionário”
Álvaro Maia – e a Igreja, apenas um braço do poder instituído. Benito mantém-se
bêbado e íntegro, um modelo de intelectual incorruptível, enquanto Frei Lothar
segue fazendo sua obra: “lutar contra a miséria, contra as doenças, contra a
ignorância amazonense...” (p. 163).
Neste ponto entra Abraão Gadelha, jornalista e político, o
protótipo do oportunismo nas duas áreas. Uma personagem típica: o intelectual
canalha. Gadelha “tinha sido Interventor Federal” (p. 150), mas “o prestígio de
seu padrinho Vargas entrava em declínio” (p. 155). Álvaro Maia se enquadraria
nesse perfil como uma luva, mas este não é um roman à clef, logo, apague
Álvaro Maia da sua lista dos suspeitos de sempre.
Mas, numa narrativa sobre o ciclo econômico da borracha, está
faltando um elemento, um mero coadjuvante, uma personagem chapada, sem nenhuma
relevância: o seringueiro. Ora, esta é uma ficção paródica da história,
construída para denunciar os delírios alucinatórios do capital e as alucinações
delirantes proporcionadas pelo capitalismo. Fosse uma narrativa naturalista,
teríamos uma daquelas personagens secundárias sonhando sonhos impossíveis,
revoluções descabidas e improváveis. Não, nesta narrativa paródica pós-moderna
triunfa o grande capital, como um eco da vida real. É por tudo isso que, representando
milhares de seringueiros, o narrador vai buscar em sua própria família, seu tio
Genaro e seu irmão Antônio, dois fracassados – ao encontro de quem ele viera
viver a ilusão de enriquecer no seringal, um Eldorado de papel. A página é antológica:
Pois do lado de cá ficava como um sapo
em sua poça, condenado ao que seria a família constituída, dois machos protagonistas
do enigma do meu silêncio e angustiosa comunicação gestual, parentes quase
mudos bichos, que salvavam a vida do deserto por resmungos monossilábicos,
viventes sem mulheres e amizades, existindo na prisão geográfica onde só
recordar era possível sob a pressão da materialidade selvagem e da
solidariedade de guerra: que de madrugada partiam para a estrada como para a
morte, impulsionados por uma ordem biológica. (p. 30)
Genaro e Antônio não são alegorias. São apenas recortes, feitos de
papelão ordinário, no majestoso carro alegórico do seringal, onde se destaca uma
enorme hévea – a árvore que sendo mártir é mãe –, rodeada pela floresta exuberante,
flores extravagantes e animais exóticos. O distinto público leitor nem
perceberá a presença deles.
Bateria: paródia
e metalinguagem
Em O amante das amazonas, a paródia se estrutura em uma
narrativa sem precedentes na literatura sobre o período da borracha, quebrando
paradigmas institucionalizados, especialmente em relação ao Realismo/Naturalismo.
Citamos antes As folias do látex – assim como Márcio Souza, Rogel Samuel
ousa rir do empolamento e seriedade como o período é visto enquanto tragédia.
Porque este é o lado oposto da questão. Mas não é apenas a oposição
cômico-trágico que está em tela: é um discurso dissonante do discurso oficial,
mostrando que a história pode ser contada de outra forma. E essa outra forma
escolhida por Samuel é a contramão do discurso consagrado.
O amante das amazonas contempla narrar as histórias de
personagens que não nos enchem de cuidados, embora alguns nos causem repulsa –
estes são exatamente aqueles que, literários, são intertextos de narrativas
ditas sérias, como Paxiúba e João Beleza. Assim, a obra não é paródia de um ou de
outro livro: é paródia de uma maneira de ver e de fazer literatura.
A fragmentação da narrativa é parte do procedimento paródico
também, uma vez que contraria o padrão convencional da literatura sobre o
período, cuja fábula, a despeito dos movimentos temporais, pode ser montada linearmente.
De outro lado, o inegável caráter metalinguístico da narrativa
acentua a sua qualidade paródica, pois amiúde confronta o leitor com a própria
carpintaria do trabalho.
E naqueles mesmos dias ocorreram
grandes fatos em outros lugares e horas, históricos e decisivos para o sucesso
desta ficção e que relatarei no momento oportuno, mas que para tanto ainda
tenho de revelar surpresas de muitos outros ocorridos. (p. 46-47)
No teatro, chamaríamos a esse procedimento de distanciamento. Em
outras ocasiões, o narrador olha nos olhos do leitor:
O leitor não dará crédito ao que que
vou narrar, pois eu vi prodígios que ainda agora me surpreendem. (p. 86)
A metalinguagem serve-se também do humor, instaurando insólitos paradoxos:
Esta é apenas uma obra de ficção, e
portanto mentirosa, dentre as várias que há na literatura amazonense (...) Todos
os fatos, aqui expostos, foram realidades notáveis e aconteceram realmente para
a minha imaginação. (p. 88)
Em um bom desfile, não pode faltar o recuo da bateria, momento em
que a bateria literalmente estaciona, e alas que estavam atrás dela passam à
frente. O recuo é mais que um preciosismo: é uma transição no desfile, marcando
a passagem para a evolução final. Em O amante das amazonas, essa
transição é marcada pelo capítulo doze – “Manaus” –, em que o narrador,
caminhando por uma cidade arrasada, sente que a ama, e, por isso mesmo, pode
reerguê-la. Trabalhando no icônico Armazém das Novidades, em troca de comida
e alojamento em um úmido porão, Ribamar de Sousa inicia ali, 15 anos após o
início dos fatos narrados, a sua trajetória vitoriosa.
Eliminando a distância entre realidade e imaginação, o autor esfarinha
a muralha que separa história e ficção – e o faz com o uso cirúrgico da paródia
e da metalinguagem ditando o ritmo e a cadência da narrativa.
Evolução:
estrutura
A narrativa de O amante das amazonas é fragmentada, o que
lhe empresta um ar de simpática anarquia. É que o narrador, Ribamar d’Aguirre
de Sousa, anda ali pelos 80, 85 anos – o que se depreende do fato de que em
1897 ele era adolescente, e a história de estende até meados dos anos 1950.
Como ele narra anos depois do fim dos acontecimentos, passamos facilmente dos 75
anos, o que justifica, ao concluir, ele dizer: “mas nesse ponto me falta o
fôlego enquanto eu chego ao fim dessa minha história” (p. 163). Se lhe falta o
fôlego, eventualmente, embaraça-se-lhe a memória. É compreensível. Assim como em Riobaldo, seu solilóquio
revela-se um diálogo: “é tempo de você partir, meu amigo, que eu fico aqui e
tudo já vimos do que deveria ser visto” (p. 163). Mas esse amigo, claro, como
em Riobaldo, pode ser apenas o caro leitor.
O primeiro capítulo – “Viagem” –, onde o narrador conta como chega
à Amazônia, vindo de Pernambuco, prenuncia uma narrativa convencional. Não há como
não lembrar da modorrenta viagem de Alberto, em A selva. Não por
qualquer semelhança, mas exatamente pelas diferenças na dinâmica dos dois
narradores.
No terceiro capítulo, o narrador introduz os Numas, uma tribo
mítica, irreal, invisível: “eles não eram aparência, mas imanência” (p. 26).
Assim como nos referimos aos caxinauás como representação das nações dizimadas,
os Numas, seu contraponto, alegorizam a resistência idealizada. O Coronel
Bataillon, com um paradoxal amálgama de desprezo e admiração, os chama de
“novos Ajuricabas” (p. 81), numa referência ao guerreiro que preferiu a morte a
submeter-se à coroa portuguesa. Ribamar, o
narrador, é tão encantado com os Numas que os sublima sexualmente, no
aparecimento de duas indiazinhas adolescentes: “aquelas meninas estavam ali
excessivamente reais, muito mais reais e humanas do que os sediciosos machos
seus irmãos (...) nus, de enormes falos escuros” (p. 31-32, p. 27). A
explicação para esse contraste é metalinguística: “a poesia apronta um mundo, a
prosa outro” (p. 32).
Mas os Numas habitavam para além da mente de Ribamar e no início
da estação de chuvas de 1906, que começou, como todo ano, no ano anterior,
promovem matança em larga escala, entulhando o Igarapé do Inferno com 300
corpos caxinauás e marcando a fogo o rosto de Maria.
O capítulo oito – “Ratos” – ilustra a queda definitiva do seringal
Manixi, invadido por milhares de ratos. A misteriosa índia Júlia os dizima de
forma inusitada. Na sequência, ela envenena seu algoz, João Beleza, que matara
sua mãe e a fizera amante. O seringal se finava ali. Júlia desaparece na
floresta como “encantada” e o narrador tropeça nas próprias lembranças: “Ela
estava uma moça, que isso aconteceu alguns anos depois não sei bem, não sei,
não, não sei” (p. 92).
Até o décimo capítulo – “Perdida” –, a selva amazônica destaca-se,
com o seringal Manixi e o palácio de mesmo nome ao centro. O capítulo seguinte,
apropriadamente intitulado “Ribamar”, introduz o narrador como protagonista – o
que ele anunciara ainda no início: “todo este livro é a confissão da minha
vida” (p. 12); ou “pois que esta narrativa vai-lhe revelar a vida tão
surpreendente de Ribamar de Sousa, aquele adolescente que eu era” (p. 16).
Daquele ponto em diante, já o dissemos, Ribamar sai das sombras para o
proscênio. A transição é representada pela debacle da borracha e a ida de
Ribamar do Manixi para Manaus, onde se tornaria empresário e político influente
e poderoso.
O capítulo dezessete – “Rua das Flores” – tem uma relevância
especial no desenvolvimento da trama, representando quase uma digressão, e o
quase vai por conta de um fio que une a rua ao seringal; mas vamos deixar esse
fio para a descoberta do leitor. Importa é que Conchita del Carmen, a dona da
rua, e Fernandinho de Bará, espécie de administrador da rua, são símbolos dos
poderes instituídos: Conchita é uma imperatriz em miniatura, enquanto De Bará é
nomeado como prefeito pelo narrador. E como já dissemos antes, esse poder
emanava da atividade que eles exerciam: o comércio sexual.
O fechamento da narrativa obedece à regra clássica das obras
fechadas: nenhum ponto fica sem seu respectivo nó. Desvendam-se o misterioso desaparecimento
de Zequinha, bem como o sumiço de uma fortuna em libras esterlinas, propriedade
do patriarca Bataillon, pela qual a doce Maria fora torturada e quase morrera.
A simbologia com que o livro se estrutura é clara: os dez
primeiros capítulos, passados na região do seringal, representam o apogeu
econômico da borracha; nos treze capítulos seguintes, quando a narrativa
redireciona-se para Manaus, têm-se a representação da decadência, que iria
ensombrar a cidade pelos seguintes cinquenta anos.
Apoteose:
possível conclusão
Arquitetado sobre uma plataforma combinatória de paródia,
alegoria, intertextualidade e metalinguagem, O amante das amazonas é o
retrato expressionista de uma época, cuja essência, mais de cem anos passados, ainda
não foi desvelada na sua integralidade. Mas, isso seria possível? Só temos
certeza de que a aparência é enganosa, pois acumula discursos que se contrapõem,
variando de acordo com os interesses imediatos. É certo, entretanto, que no
texto de Rogel Samuel, narrativa, ambiente e personagens nos são revelados para
muito além da percepção dos sentidos, como representações inauditas da
violência coletiva e do vício individual: deformações do corpo, da alma e da razão.
O mundo em desconcerto, a vida em dissonância. A realidade fictícia de Samuel
não nos dá esperanças para o futuro, mas nos mostra como fomos no passado e,
por analogia, como somos agora.
Misto de romance de aventura, policial, histórico, indianista e de
costumes, O amante das amazonas estabelece uma ponte entre sua época –
agora – e a tradição de romances sobre a Amazônia, que, afora os autores
citados, remonta ao visionário Gaspar de Carvajal, passa por Júlio Verne, Raul
Pompeia, Conan Doyle, Gastão Cruls, Mário de Andrade e Raul Bopp, além dos
autores da região, num diálogo intertextual que avança muito adiante da relação
cômico-trágica, proporcionando uma visão panorâmica sobre o período, mas com
uma perspectiva nova e inovadora, ressignificando o conceito de romance
amazônico.
[1]
“Arte e sociedade” (p. 10). In: SAMUEL, Rogel (org.). Manual de Teoria
Literária. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.
[2]
BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais. Tradução: Yara Frateschi Vieira. 6. ed. São
Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 2008. p. 7.
[3]
Um paraíso perdido tem pelo menos três edições diferentes. A primeira,
de 1976, organizada por Hildon Rocha; a segunda, de 1986, organizada por
Leandro Tocantins; e a terceira, sem crédito de organização, publicada em 2003,
pela Editora Valer, Governo do Amazonas e Editora da UFAM.
[4]
Informações constantes da orelha da segunda edição do livro estudado.
[5]
Todas as citações do livro analisado referem-se a SAMUEL, Rogel. O amante
das amazonas. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.
[6]
Ver PINTO, Zemaria. A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade.
Manaus: Valer, 2020. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1p2fNt5_aYezgM-dCTsinsabVSg-ry2Br/view
[7]
CUNHA, Euclides da. À margem da história. São Paulo: Unesp, 2019. p. 57.
Além
dos dois livros citados de Euclides da Cunha, que têm a Amazônia por tema,
recomendo o infelizmente raro livro de Samuel Benchimol Amazônia: um
pouco-antes e além-depois. Manaus: Calderaro, 1977.
Um comentário:
Excelente viagem pelo "Amante das Amazonas"!👏👏👏
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