sábado, 6 de fevereiro de 2021

Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas


 


Folia no seringal: alegoria e paródia em O amante das amazonas

Zemaria Pinto

 

Como trabalho, a literatura faz uma transformação da realidade. Transformação da história. A história é um processo unitário, um devir, um pôr-se, um produzir-se e reproduzir-se, implicando que o homem toma cada vez mais consciência de si mesmo como ser social.

Rogel Samuel[1]

 

O carnaval é a segunda vida do povo, baseada no princípio do riso. É a sua vida festiva.

Mikhail Bakhtin[2]

 

Concentração: muito siso e pouco riso

O ciclo econômico da borracha foi curto, mas muito rentável, para as contas do decaído império e da nascente república. No âmbito literário, entretanto, apresenta um considerável déficit: nada além de alguns contos, meia dúzia de romances, uma ou outra peça de teatro, um poema de fôlego. Além de um projeto frustrado, destinado a se tornar um clássico: Um paraíso perdido, de Euclides da Cunha, o seu “segundo livro vingador”, do qual sobraram alguns textos que antecipavam a obra-prima, reunidos em À margem da história (1909) sob o subtítulo “Terra sem história”, além de uma coleção de textos erradios, sob o mesmo título previamente escolhido pelo autor.[3] O poema referido é A Uiara (1922/2007), de Octavio Sarmento, em que, embora o motivo seja moderno – uma análise psicanalítica da solidão no seringal –, a forma ainda vacila num caldeirão romântico-simbolista-parnasiano. Folias do látex (1976), peça de Márcio Souza, homenageada intertextualmente em nosso título, tem o vaudeville como forma e o humor carnavalizado como fim. Os contos e a quase totalidade dos romances são de extração naturalista. As exceções são Dos ditos passados nos acercados de Cassianã (1969), de Paulo Jacob, exarado numa linguagem recriada, à maneira de Guimarães Rosa, mas afiliado ao neorrealismo, que no Brasil tomou outros nomes, inclusive o execrável “regionalismo”; e O amante das amazonas, de Rogel Samuel, sobre o qual iremos refletir.

Rogel Samuel, professor-doutor aposentado pela UFRJ, tem vários livros publicados, nos gêneros poesia, romance e ensaio, onde sobressaem-se os livros sobre Teoria Literária. Em sintonia com as novas mídias, Samuel colabora regularmente com portais de literatura, como Entretextos e Blocos, além de ter o seu próprio sítio.

Publicado em 1992, dividido em vinte e três capítulos, O amante das amazonas é anunciado pelo autor como um livro de ficção baseado em fatos reais, incluindo o depoimento de testemunhas e relatos de seu pai, que navegou pela Amazônia por 40 anos e foi o seu guia no conhecimento da floresta, a bordo do Adamastor.[4] Para esta análise, vamos nos ater à definição do narrador, “paródia de romance histórico” (p. 16),[5] tomando como parâmetro investigativo não o conceito backthiniano de carnavalização, mas o próprio carnaval brasileiro, buscando conexões entre a estrutura da obra e elementos do carnaval, identificando o caráter polifônico do romance, obtido por intermédio da paródia, da alegoria e da metalinguagem, e pelo dialogismo intertextual estabelecido na dicotomia ficção-história, numa fusão do sublime com o grotesco, do sagrado com o profano e do sério com o cômico.

Mas não se iluda, esta é apenas a apresentação de uma obra literária, importante e singular, sem pretensões epistemológicas ou hermenêuticas. 

 

Enredo

A narrativa gira em torno dos habitantes do seringal Manixi, a mais de 3 mil quilômetros de Manaus, propriedade do francês Pierre Bataillon, que ali chegara em 1876. A região era habitada pelos índios Caxinauás e Numas, antípodas: estes, guerreiros, jamais aceitaram a presença do invasor, enquanto os primeiros se deixaram escravizar e, lentamente, dizimar. Culto e refinado, Coronel Baitaillon constrói um colosso arquitetônico no seringal, o Palácio Manixi, uma espécie de Xanadu tropical, delirante representação da opulência proporcionada pelo ganho fácil na exportação do látex. Sua esposa, Ifigênia Vellarde, era, assim como ele, descendente de linhagens nobres europeias. Vieram para o Amazonas porque a saúde de Bataillon pedia “climas quentes”. Os dois morrem em um naufrágio, no rio Juruá, em 1910. Pouco antes, intuindo a queda nos preços internacionais, o Coronel vendera o seringal a Antônio Ferreira, testa de ferro de um comendador de Manaus, que já havia comprado outras áreas adjacentes. O filho deles, Zequinha Bataillon, nascido a bordo do navio Adamastor, em 1890, quando sua mãe fugia de um surto epidêmico de malária, tem como maiores amigos dois caxinauás: Paxiúba, o Mulo, espécie de guarda-costas e pau-pra-toda-obra, e Maria, pouco mais velha que ele, “segunda mãe e primeira amante” (p. 77).  Educado em Paris, Zequinha retorna em 1908, passando, com os dois amigos, a “viver no exótico, pela singularidade da vida afastada dos costumes e expectativas gerais” (p. 86). Quatro anos depois, dá-se o desaparecimento misterioso de Zequinha, que vai pontuar toda a narrativa.

É importante salientar o simbolismo dessas datas. Em 1910, começa o declínio do comércio internacional da borracha. Em 1912, os seringalistas compreendiam que aquela era uma viagem sem volta. Poucos seringais insistiam em se manter ativos, buscando diversificar a produção com outros itens. O Manixi, decadente, fora abandonado pelos novos donos.

O mais conhecido romance sobre o período, A selva (1930), de Ferreira de Castro, de cunho naturalista tardio, situa sua ação no período 1919-1921 e esta é, entre tantas outras, sua maior falha, porque o pretenso realismo da ficção se anula quando cotejada com a realidade: à época, a economia baseada no extrativismo do látex já estava reduzida a pó.[6]   

A partir de 1912, dá-se uma guinada na narrativa, conduzida por Ribamar de Sousa, que até então mantivera-se discreto, semioculto diante dos fatos contados, assumindo o protagonismo da trama, que passa a ter como moldura e fundo não mais a selva amazônica, mas a deslumbrante Manaus, a Paris dos trópicos, que, por reflexo do que acontecia nos seringais, afundava-se em ruínas – não há antonímia digna para deslumbrante.

As peripécias narradas por Ribamar envolvem desde expedições em busca de Zequinha Bataillon até a revelação sobre um tesouro desaparecido do palácio Manixi. De humilde imigrante a senador da república, “uma das fortunas mais sólidas de Manaus” (p. 143), Ribamar conduz o leitor ao desfecho da trama, valendo-se de uma narrativa feérica, em que não falta nem mesmo um paradoxo temporal.

 

Comissão de frente

O capítulo dezesseis – “Benito” – sintetiza o procedimento narrativo, reunindo exemplos de paródia, alegoria, metalinguagem e intertextualidade. O Bar Bacurau era uma representação microcósmica da Manaus em tempos de sombras, onde avulta acima de tudo e de todos a paradigmal figura de Benito Botelho, arruinado fisicamente, “parecidíssimo com Mário de Andrade” (p. 121), um prodígio literário, com uma memória fotográfica incomum. Polemista profissional, Benito era “poeta e poliglota, lia e falava francês, inglês, alemão e italiano, além de [ter] sólidos conhecimentos de grego e de latim” (p. 121). Mas ele não estava sozinho no bar, onde se juntava a velha guarda boêmia da cidade.

 

No Bacurau se reunia a escória da sociedade manauara. Eram pescadores, policiais, bichas, poetas, presidiários, prostitutas, comunistas, peixeiros, músicos e o grupo do Clube Satírico Gregório de Matos, que infernizava a vida dos poetas maiores do Clube da Madrugada. (p. 122)

 

Benito Botelho “era a única voz de oposição naquela sociedade louvaminheira, laudatória, servil, risonha e patriarcal” (p. 126).

Sob a liderança arruinada de Benito, a escória do Bar Bacurau abre o nosso desfile.

 

Porta-bandeira e Mestre-sala

Adiante, daremos ênfase na fundamentação alegórica das personagens de O amante das amazonas, mas comecemos por destacar dois papéis que, secundários, têm fundamental importância na trama: Paxiúba e Maria, ambos caxinauás. Antagônicos, os dois se completam na subserviência ao patrão Zequinha. É curiosa a definição dos caxinauás, dada pelo Coronel Bataillon:

 

Eles constituem um povo simbiótico, um organismo só, vivo, único. Não são seres individuais. O indivíduo é o povo, a raça. (p. 68)

 

A relação especial dos dois com Zequinha Bataillon, sintetiza essa simbiose: enquanto Paxiúba é o braço armado, sanguinário, de Zequinha, Maria é o lado amoroso – mãe, irmã, amante. Separados, Paxiúba continua seu mister de violência, mas Maria se transforma, para os que ameaçavam o seu território sagrado: “hostil, aquela existência silenciosa e animal concentrava-se em si mesma, refluía em si, como serpente” (p. 68-69).

Numa paráfrase intertextual entre o libelo político e o ensaio sociológico, o narrador dá a sua versão de Maria Caxinauá:

 

São raças inteiras espoliadas, traumatizadas, despossuídas de seus deuses e de suas riquezas construídas durante séculos, sangradas em hecatombes, liquidadas para sempre. Contaminadas de doenças, escravizadas e corrompidas, submetidas ao trabalho escravo que consumiu o sangue de milhões de pessoas desprovidas de suas economias de subsistência, tragicamente transformadas em exércitos de massas proletárias – vinte milhões de índios massacrados no Brasil se corporificavam ali, no gesto cego de Maria Caxinauá. (p. 69)

 

Os caxinauás, nas figuras de Maria e Paxiúba, alegorizam as nações exterminadas no contato/enfrentamento com o invasor branco.

 

Fantasias: ambiente

A trama de O amante das amazonas se desenvolve basicamente em dois ambientes: a selva amazônica, proximidades do Rio Jordão, hoje território do Acre; e a cidade de Manaus.

A selva amazônica é um intricado de ambientes diversos, mas, para delimitá-lo, ao entrar no ponto exato da trama, o Igarapé do Inferno, o autor usa uma metáfora que não deixa dúvidas quanto à sua localização: “o marco extremo de nós mesmos, o mais longínquo e interno lugar do orbe terrestre (...), limite do fim do mundo” (p. 11). A área onde hoje se localiza o estado do Acre pertencia à Bolívia, mas foi invadida, desde os anos 1870, por seringalistas brasileiros. Os invasores enfrentaram não somente a hostilidade natural do meio, mas também a resistência dos nativos. A pendência internacional só foi resolvida em 1903, quando o Brasil, literalmente, comprou o Acre.

A cidade de Manaus, a partir de 1912, quando fica patente que a debacle estava em curso, transforma-se de “Paris dos trópicos” em uma cidade em ruínas – física e moralmente. Essa letargia se estenderia até a primeira metade dos anos 1940, quando a economia com base na exploração dos seringais nativos recebe um influxo motivado pela demanda americana, na segunda grande guerra. Terminado o conflito, a cidade volta às sombras, período que se estende até a década de 1960, com a implantação da Zona Franca de Manaus.

Um terceiro ambiente, apresentado como um apêndice no meio da narrativa, é a Rua das Flores, situada na Vila de Transvaal, às margens do rio Jordão; provavelmente, o ponto urbano mais próximo do seringal Manixi. Ribamar, o enternecido narrador, é frequentador assíduo do “mais belo jardim urbano” (p. 128) do Amazonas.

Do ponto de vista cronológico, a ambientação se dá em duas fases distintas: de 1876, quando Pierre Bataillon se instala na região, até 1912, quando Ribamar abandona o seringal Manixi e vai para Manaus; e daí em diante até meados dos anos 1950, quando Ribamar já consolidara sua fortuna e seu poder. Portanto, em torno de 80 anos.

 

Samba-enredo: o narrador

A narrativa começa da forma mais convencional possível, fornecendo informações precisas sobre a personagem que vai se configurar como de suma importância para o enredo: era o natal de 1897 quando o narrador, ainda adolescente, se despede de sua mãe, que ficaria em Patos, Pernambuco, iniciando viagem para o Amazonas, em busca de um tio e um irmão, num certo seringal Manixi, às margens do Igarapé do Inferno. Esse narrador, ficamos sabendo depois, se chama Ribamar d’Aguirre de Sousa, e como narrador-personagem, esforçando-se por parecer secundário, ele atrai para si as atenções a partir da segunda metade da narrativa, passada em Manaus.

Ribamar é um narrador complexo. Mesmo em permanente contato com o leitor – “Mas silenciosos, sozinhos, sigamos nós, leitor” (p. 87) –, ele às vezes se esconde, num procedimento parodístico, sob um diáfano véu de onisciência, que é apenas a expressão do que ele tem como a sua verdade. O capítulo treze, por exemplo – “Conversas” –, é todo em terceira pessoa: mostra os detalhes de uma conversa entre o Comendador Gabriel Cunha e o padre Pereira. Como um dos motivos era o próprio Ribamar, ele imagina como poderia ter sido a interlocução entre os dois e a reproduz com todos os travessões e reticências. Antes, no capítulo dez – “Perdida” –, ele narra a violência de um encontro entre Maria e Paxiúba e coloca-se em posição de onisciência – pois somente as duas personagens poderiam narrar a cena –, de tal modo que, ao se autorreferir, o faz em terceira pessoa: “(...) e a sede ficara sob as ordens de um Ribamar (d’Aguirre) de Sousa, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o primeiro capítulo desta narrativa” (p. 102): paródia, metalinguagem, intertextualidade.  

Ribamar é um típico narrador-personagem, que se limita a narrar apenas o que é do seu conhecimento, mas que não se furta, em nome do estilo, em fazer-se de narrador pressuposto. Afinal, acima de tudo, sua função maior é a de protagonista da paródia.

 

Harmonia: o uso do tempo

A fragmentária narrativa de O amante das amazonas é feita em flashback. Ribamar narra muitos anos depois dos acontecimentos.

 

Porque estou velho mas não estou louco. (...) Sou de outra época. Sou do tempo de um capitalismo primitivo, arcaico, luxuoso, feito tricotado em ouro e pedras preciosas. (p. 18-19)

 

Memória e não linearidade narrativa podem induzir o leitor a pensar em tempo psicológico, mas não é o caso, posto que o narrador, ainda que por vezes tenha as lembranças embaralhadas, sempre busca o tempo cronológico, a referência precisa, a exatidão fictícia, mas histórica. A não linearidade narrativa, entretanto, respeita os limites das duas partes identificadas: a primeira, que vai até 1912; e a segunda, daí em diante. Mas, ao apresentar a personagem Benito Botelho, o narrador permite-se uma licença poética, ao mostrar Benito, de 37 anos, que fora amigo de infância de Zequinha Bataillon, bebendo com os poetas do Clube da Madrugada. Pela descrição, infere-se que o ano dos acontecimentos seja 1927, um pouco mais, um pouco menos. O caso é que, por essa época, o pessoal do Clube, que viria a ser fundado em 1954, ainda não nascera. Mas Ribamar – o velho narrador – traz no próprio nome a explicação para esse paradoxo temporal. No filme Aguirre, a cólera dos deuses (1972), o diretor Werner Herzog funde duas expedições ao Rio Amazonas, separadas por 20 anos, em uma só, fazendo um filme extraordinário. Fosse um documentário, seria mistificação. Sendo uma ficção, esse paradoxo é um artifício que o autor lança mão para enriquecer seu universo. Em favor de Ribamar, diga-se que os copos de Manaus à época não eram muito interessantes: Maranhão Sobrinho e o Conde Stradelli estavam mortos; Nunes Pereira, vivia enfiado entre os índios, tomando caxiri. Era preciso buscar no futuro bebedores à altura, entre os poetas do Clube da Madrugada, a mais extraordinária explosão de talentos sobre a linha do equador, no século 20.

A fragmentação narrativa é um puzzle que o leitor vai encaixando aos poucos, posto que todos os fatos narrados levam, na primeira parte, à queda do seringal Manixi; e na segunda parte, à ascensão de Ribamar, o repositório das lembranças perdidas do seringal, o único a poder narrar O amante das amazonas, pois todas as outras personagens já eram finadas.  

 

Alegorias: personagens

As personagens de O amante das amazonas são todas alegóricas, porém elaboradas com o senso da paródia. Como num vaudeville.

Tomemos como paradigma o próprio narrador, Ribamar de Sousa, que já identificamos como o protagonista. Sua trajetória é inversa à trajetória dos imigrantes nordestinos que vieram “fazer a Amazônia” na época da borracha. Estes, recrutados com promessas de enriquecimento fácil, vinham em condições miseráveis, e se tornavam escravos dos donos dos seringais, que lhes cobravam absolutamente todas as despesas, desde a passagem de vinda até o indefectível quinino para combater a malária. E como pagariam? Com o produto de seu trabalho, remunerado de acordo com a produção obtida, chovesse ou fizesse sol. Esse valor estava diretamente atrelado à cotação da borracha no mercado internacional. Euclides da Cunha e Samuel Benchimol deixaram páginas memoráveis sobre o que Euclides chamou de “a mais criminosa organização do trabalho”.[7]

Contrariando todas as expectativas, Ribamar galga o posto de administrador do seringal Manixi e, em Manaus, torna-se empresário de sucesso. Daí para a política é apenas uma questão de tempo, tornando-se nosso herói senador da república. Uma antialegoria ou, antes, uma alegoria paródica do imigrante nordestino que iria, sobrevivente do seringal, povoar as favelas das cidades amazônicas.

O mesmo se dá com Pierre Bataillon ou Coronel Bataillon – um título comprado. Cidadão francês, Bataillon representa não apenas o capital estrangeiro, mas também o domínio cultural da França à época. Antônio Ferreira, que o sucede como proprietário do Manixi é uma personagem menor, do ponto de vista moral, um testa de ferro, mas nem por isso menos representativo, pois é o símbolo do capital nacional arruinado pela debacle. Seu patrão e financiador, o Comendador Gabriel da Cunha, representa o poder do capital nacional, manipulando o jogo político, de acordo com seus interesses.

Na disputa política, Juca das Neves, inimigo do Comendador, é a representação do empresário urbano que ruiu sob os escombros da cidade destruída. Mas é de sua amizade com Bataillon, já falecido, que Ribamar se serve para aproximar-se dele e soerguer sua fortuna – em proveito próprio, claro.

Zequinha Batelão, como o chamavam à boca miúda, é uma alegoria da riqueza obtida sem maiores incômodos, o que o leva a uma vida de aventuras, culminando com o seu misterioso desaparecimento e todo o lendário construído em torno disso. Amante de Maria Caxinauá, uma das lendas sobre o seu desaparecimento é que Zequinha teria seguido uma índia Numa e, como os Numas, se tornado invisível. É ele, o venturoso e aventureiro José Bataillon, o amante das amazonas que dá título à narrativa.

É importante frisar a participação feminina na trama. Por enquanto, vamos falar das “brancas”: Ifigênia, Constança e Glorinha. Meramente decorativas, as três personagens representam a dimensão feminina de um mundo cruelmente masculino. Ifigênia, a soberba dama europeia. Constança, a louca matrona amazônica. E Glorinha, inexpressiva, quase idiota, impropriamente chamada de lambisgoia, o que para ela seria um elogio.  

As “índias” Maria, Ivete, Júlia, Eudócia e Diana têm participação muito mais acentuada, inclusive como alegorias. Maria Caxinauá é uma personagem sublime, representação de todo o povo Caxinauá, é a própria encarnação da tragédia que se abate sobre sua nação. Ivete Maacu é a representação da cabocla sedutora, tão explorada, especialmente nas festas juninas – não são à toa as tatuagens em vermelho e azul. Ribamar não economiza advérbios, verbos e adjetivos ao se referir a ela:

 

Bruscamente, incompreensivelmente, irrompendo com fúria e fulgor como Febo no horizonte – alta, forte, violenta, vigorosa, portentosa índia maacu, como uma deusa, surge, aparece, explode pela porta e tem os braços tatuados de vermelho e azul, e quase nua, envolta em um manto de seda prateada e em chamas brilhantes como o céu. (p. 55)  

 

Diante dessa visão, o indefeso Ferreira apaixona-se e, arriscando a ira do chefe, seu sogro, abandona a inútil Glorinha e casa-se com aquela visão, alimentando a lenda de que as caboclas amazônicas são insuperáveis no quesito sensualidade.

Júlia é representante dos míticos Numas, só que visível e palpável. E fazendo jus à fama de sua gente, cativa de guerra que era, armou vingança e encantou-se no invisível. 

Eudócia, tia de Benito Botelho, até por contraste com o próprio sobrinho, representa o conformismo do povo, que se resigna à condição de semiescravo.

Diana, por outro lado, ainda que pouco apareça, é a síntese da mulher moderna, que começa a surgir ainda na primeira metade do século 20, com intensa participação social e política e reivindicando um status de igualdade com o macho opressor.

Paxiúba, é o “emblema da Amazônia amontoada e brutal, sombria, desconhecida, nociva” (p. 39). Quem define o Mulo é o próprio narrador, que o conheceu de perto. Uma ameaça para os outros viventes, Paxiúba era um mero xerimbabo de Zequinha: “dormia a seus pés, como um cão” (p. 79). Paxiúba representa a violência tão presente nas relações amazônicas – sejam políticas, de trabalho ou de família.

Uma personagem com um simbolismo muito forte é Sebastiana Vintém, manicure e fofoqueira profissional. Barbadiana, representa a imigração estrangeira. A escolha tem um toque de humor paródico, porque portugueses, japoneses, turcos e árabes – o principal contingente migratório – acumularam, em um século de histórias, dezenas de casos de sucesso, contra nenhum caso de família negra. O narrador ironiza: Sabá Vintém “envelheceu próspera; almoçava e jantava na casa das madames” (p. 106).

Conchita del Carmen e Fernandinho de Bará quase ficam de fora da trama, mas, já que entraram, precisamos dizer que eles estão ligados pelos laços indissolúveis do comércio sexual, sucesso em qualquer parte do mundo, em qualquer época.  

Duas personagens, pelo que têm de fascinantes, só adquirem pleno sentido quando vistos juntos: Benito Botelho, filho de Isaura, cozinheira do Palácio Manixi, “o maior intelectual amazonense” (p. 58), é levado ainda criança por uma varíola para Manaus, o que o aproxima de Frei Lothar, uma espécie quixotesca – sensível e enlouquecido. Benito e Lothar são um desafio à história oficial, onde os intelectuais são cooptados – vide o “revolucionário” Álvaro Maia – e a Igreja, apenas um braço do poder instituído. Benito mantém-se bêbado e íntegro, um modelo de intelectual incorruptível, enquanto Frei Lothar segue fazendo sua obra: “lutar contra a miséria, contra as doenças, contra a ignorância amazonense...” (p. 163).

Neste ponto entra Abraão Gadelha, jornalista e político, o protótipo do oportunismo nas duas áreas. Uma personagem típica: o intelectual canalha. Gadelha “tinha sido Interventor Federal” (p. 150), mas “o prestígio de seu padrinho Vargas entrava em declínio” (p. 155). Álvaro Maia se enquadraria nesse perfil como uma luva, mas este não é um roman à clef, logo, apague Álvaro Maia da sua lista dos suspeitos de sempre.

Mas, numa narrativa sobre o ciclo econômico da borracha, está faltando um elemento, um mero coadjuvante, uma personagem chapada, sem nenhuma relevância: o seringueiro. Ora, esta é uma ficção paródica da história, construída para denunciar os delírios alucinatórios do capital e as alucinações delirantes proporcionadas pelo capitalismo. Fosse uma narrativa naturalista, teríamos uma daquelas personagens secundárias sonhando sonhos impossíveis, revoluções descabidas e improváveis. Não, nesta narrativa paródica pós-moderna triunfa o grande capital, como um eco da vida real. É por tudo isso que, representando milhares de seringueiros, o narrador vai buscar em sua própria família, seu tio Genaro e seu irmão Antônio, dois fracassados – ao encontro de quem ele viera viver a ilusão de enriquecer no seringal, um Eldorado de papel. A página é antológica:

 

Pois do lado de cá ficava como um sapo em sua poça, condenado ao que seria a família constituída, dois machos protagonistas do enigma do meu silêncio e angustiosa comunicação gestual, parentes quase mudos bichos, que salvavam a vida do deserto por resmungos monossilábicos, viventes sem mulheres e amizades, existindo na prisão geográfica onde só recordar era possível sob a pressão da materialidade selvagem e da solidariedade de guerra: que de madrugada partiam para a estrada como para a morte, impulsionados por uma ordem biológica. (p. 30)

 

Genaro e Antônio não são alegorias. São apenas recortes, feitos de papelão ordinário, no majestoso carro alegórico do seringal, onde se destaca uma enorme hévea – a árvore que sendo mártir é mãe –, rodeada pela floresta exuberante, flores extravagantes e animais exóticos. O distinto público leitor nem perceberá a presença deles.

 

Bateria: paródia e metalinguagem

Em O amante das amazonas, a paródia se estrutura em uma narrativa sem precedentes na literatura sobre o período da borracha, quebrando paradigmas institucionalizados, especialmente em relação ao Realismo/Naturalismo. Citamos antes As folias do látex – assim como Márcio Souza, Rogel Samuel ousa rir do empolamento e seriedade como o período é visto enquanto tragédia. Porque este é o lado oposto da questão. Mas não é apenas a oposição cômico-trágico que está em tela: é um discurso dissonante do discurso oficial, mostrando que a história pode ser contada de outra forma. E essa outra forma escolhida por Samuel é a contramão do discurso consagrado.

O amante das amazonas contempla narrar as histórias de personagens que não nos enchem de cuidados, embora alguns nos causem repulsa – estes são exatamente aqueles que, literários, são intertextos de narrativas ditas sérias, como Paxiúba e João Beleza. Assim, a obra não é paródia de um ou de outro livro: é paródia de uma maneira de ver e de fazer literatura.

A fragmentação da narrativa é parte do procedimento paródico também, uma vez que contraria o padrão convencional da literatura sobre o período, cuja fábula, a despeito dos movimentos temporais, pode ser montada linearmente.

De outro lado, o inegável caráter metalinguístico da narrativa acentua a sua qualidade paródica, pois amiúde confronta o leitor com a própria carpintaria do trabalho.

 

E naqueles mesmos dias ocorreram grandes fatos em outros lugares e horas, históricos e decisivos para o sucesso desta ficção e que relatarei no momento oportuno, mas que para tanto ainda tenho de revelar surpresas de muitos outros ocorridos. (p. 46-47)

 

No teatro, chamaríamos a esse procedimento de distanciamento. Em outras ocasiões, o narrador olha nos olhos do leitor:

 

O leitor não dará crédito ao que que vou narrar, pois eu vi prodígios que ainda agora me surpreendem. (p. 86)

 

A metalinguagem serve-se também do humor, instaurando insólitos paradoxos:

 

Esta é apenas uma obra de ficção, e portanto mentirosa, dentre as várias que há na literatura amazonense (...) Todos os fatos, aqui expostos, foram realidades notáveis e aconteceram realmente para a minha imaginação. (p. 88)

 

Em um bom desfile, não pode faltar o recuo da bateria, momento em que a bateria literalmente estaciona, e alas que estavam atrás dela passam à frente. O recuo é mais que um preciosismo: é uma transição no desfile, marcando a passagem para a evolução final. Em O amante das amazonas, essa transição é marcada pelo capítulo doze – “Manaus” –, em que o narrador, caminhando por uma cidade arrasada, sente que a ama, e, por isso mesmo, pode reerguê-la. Trabalhando no icônico Armazém das Novidades, em troca de comida e alojamento em um úmido porão, Ribamar de Sousa inicia ali, 15 anos após o início dos fatos narrados, a sua trajetória vitoriosa.

Eliminando a distância entre realidade e imaginação, o autor esfarinha a muralha que separa história e ficção – e o faz com o uso cirúrgico da paródia e da metalinguagem ditando o ritmo e a cadência da narrativa.

 

Evolução: estrutura

A narrativa de O amante das amazonas é fragmentada, o que lhe empresta um ar de simpática anarquia. É que o narrador, Ribamar d’Aguirre de Sousa, anda ali pelos 80, 85 anos – o que se depreende do fato de que em 1897 ele era adolescente, e a história de estende até meados dos anos 1950. Como ele narra anos depois do fim dos acontecimentos, passamos facilmente dos 75 anos, o que justifica, ao concluir, ele dizer: “mas nesse ponto me falta o fôlego enquanto eu chego ao fim dessa minha história” (p. 163). Se lhe falta o fôlego, eventualmente, embaraça-se-lhe a memória. É compreensível.  Assim como em Riobaldo, seu solilóquio revela-se um diálogo: “é tempo de você partir, meu amigo, que eu fico aqui e tudo já vimos do que deveria ser visto” (p. 163). Mas esse amigo, claro, como em Riobaldo, pode ser apenas o caro leitor.

O primeiro capítulo – “Viagem” –, onde o narrador conta como chega à Amazônia, vindo de Pernambuco, prenuncia uma narrativa convencional. Não há como não lembrar da modorrenta viagem de Alberto, em A selva. Não por qualquer semelhança, mas exatamente pelas diferenças na dinâmica dos dois narradores.

No terceiro capítulo, o narrador introduz os Numas, uma tribo mítica, irreal, invisível: “eles não eram aparência, mas imanência” (p. 26). Assim como nos referimos aos caxinauás como representação das nações dizimadas, os Numas, seu contraponto, alegorizam a resistência idealizada. O Coronel Bataillon, com um paradoxal amálgama de desprezo e admiração, os chama de “novos Ajuricabas” (p. 81), numa referência ao guerreiro que preferiu a morte a submeter-se à coroa portuguesa. Ribamar, o narrador, é tão encantado com os Numas que os sublima sexualmente, no aparecimento de duas indiazinhas adolescentes: “aquelas meninas estavam ali excessivamente reais, muito mais reais e humanas do que os sediciosos machos seus irmãos (...) nus, de enormes falos escuros” (p. 31-32, p. 27). A explicação para esse contraste é metalinguística: “a poesia apronta um mundo, a prosa outro” (p. 32).

Mas os Numas habitavam para além da mente de Ribamar e no início da estação de chuvas de 1906, que começou, como todo ano, no ano anterior, promovem matança em larga escala, entulhando o Igarapé do Inferno com 300 corpos caxinauás e marcando a fogo o rosto de Maria.    

O capítulo oito – “Ratos” – ilustra a queda definitiva do seringal Manixi, invadido por milhares de ratos. A misteriosa índia Júlia os dizima de forma inusitada. Na sequência, ela envenena seu algoz, João Beleza, que matara sua mãe e a fizera amante. O seringal se finava ali. Júlia desaparece na floresta como “encantada” e o narrador tropeça nas próprias lembranças: “Ela estava uma moça, que isso aconteceu alguns anos depois não sei bem, não sei, não, não sei” (p. 92).

Até o décimo capítulo – “Perdida” –, a selva amazônica destaca-se, com o seringal Manixi e o palácio de mesmo nome ao centro. O capítulo seguinte, apropriadamente intitulado “Ribamar”, introduz o narrador como protagonista – o que ele anunciara ainda no início: “todo este livro é a confissão da minha vida” (p. 12); ou “pois que esta narrativa vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Sousa, aquele adolescente que eu era” (p. 16). Daquele ponto em diante, já o dissemos, Ribamar sai das sombras para o proscênio. A transição é representada pela debacle da borracha e a ida de Ribamar do Manixi para Manaus, onde se tornaria empresário e político influente e poderoso.

O capítulo dezessete – “Rua das Flores” – tem uma relevância especial no desenvolvimento da trama, representando quase uma digressão, e o quase vai por conta de um fio que une a rua ao seringal; mas vamos deixar esse fio para a descoberta do leitor. Importa é que Conchita del Carmen, a dona da rua, e Fernandinho de Bará, espécie de administrador da rua, são símbolos dos poderes instituídos: Conchita é uma imperatriz em miniatura, enquanto De Bará é nomeado como prefeito pelo narrador. E como já dissemos antes, esse poder emanava da atividade que eles exerciam: o comércio sexual.   

O fechamento da narrativa obedece à regra clássica das obras fechadas: nenhum ponto fica sem seu respectivo nó. Desvendam-se o misterioso desaparecimento de Zequinha, bem como o sumiço de uma fortuna em libras esterlinas, propriedade do patriarca Bataillon, pela qual a doce Maria fora torturada e quase morrera.

A simbologia com que o livro se estrutura é clara: os dez primeiros capítulos, passados na região do seringal, representam o apogeu econômico da borracha; nos treze capítulos seguintes, quando a narrativa redireciona-se para Manaus, têm-se a representação da decadência, que iria ensombrar a cidade pelos seguintes cinquenta anos.

 

Apoteose: possível conclusão

Arquitetado sobre uma plataforma combinatória de paródia, alegoria, intertextualidade e metalinguagem, O amante das amazonas é o retrato expressionista de uma época, cuja essência, mais de cem anos passados, ainda não foi desvelada na sua integralidade. Mas, isso seria possível? Só temos certeza de que a aparência é enganosa, pois acumula discursos que se contrapõem, variando de acordo com os interesses imediatos. É certo, entretanto, que no texto de Rogel Samuel, narrativa, ambiente e personagens nos são revelados para muito além da percepção dos sentidos, como representações inauditas da violência coletiva e do vício individual: deformações do corpo, da alma e da razão. O mundo em desconcerto, a vida em dissonância. A realidade fictícia de Samuel não nos dá esperanças para o futuro, mas nos mostra como fomos no passado e, por analogia, como somos agora.    

Misto de romance de aventura, policial, histórico, indianista e de costumes, O amante das amazonas estabelece uma ponte entre sua época – agora – e a tradição de romances sobre a Amazônia, que, afora os autores citados, remonta ao visionário Gaspar de Carvajal, passa por Júlio Verne, Raul Pompeia, Conan Doyle, Gastão Cruls, Mário de Andrade e Raul Bopp, além dos autores da região, num diálogo intertextual que avança muito adiante da relação cômico-trágica, proporcionando uma visão panorâmica sobre o período, mas com uma perspectiva nova e inovadora, ressignificando o conceito de romance amazônico.   



[1] “Arte e sociedade” (p. 10). In: SAMUEL, Rogel (org.). Manual de Teoria Literária. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1985.

[2] BAKHTIN, Mikhail. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução: Yara Frateschi Vieira. 6. ed. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora da UnB, 2008. p. 7.

[3] Um paraíso perdido tem pelo menos três edições diferentes. A primeira, de 1976, organizada por Hildon Rocha; a segunda, de 1986, organizada por Leandro Tocantins; e a terceira, sem crédito de organização, publicada em 2003, pela Editora Valer, Governo do Amazonas e Editora da UFAM.

[4] Informações constantes da orelha da segunda edição do livro estudado.

[5] Todas as citações do livro analisado referem-se a SAMUEL, Rogel. O amante das amazonas. 2. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2005.

[6] Ver PINTO, Zemaria. A selva: a verdade da ficção e a ficção da verdade. Manaus: Valer, 2020. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1p2fNt5_aYezgM-dCTsinsabVSg-ry2Br/view

[7] CUNHA, Euclides da. À margem da história. São Paulo: Unesp, 2019. p. 57. Além dos dois livros citados de Euclides da Cunha, que têm a Amazônia por tema, recomendo o infelizmente raro livro de Samuel Benchimol Amazônia: um pouco-antes e além-depois. Manaus: Calderaro, 1977.

Um comentário:

Marta Cortezão disse...

Excelente viagem pelo "Amante das Amazonas"!👏👏👏