quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Cristovam de Pavia





Cristovam de Pavia


(Portugal, 1933-1968)‏


EPÍGRAFE

Um barco sem velas
e sem rumo
Singrando um mar de fumo,
Mas descobrindo estrelas...

nisto me resumo.

Em Poesia -Esparsas
D.Quixote, 2Lisboa,010

“Não fugir…”


Não fugir. Suster o peso da hora
Sem palavras minhas e sem os sonhos,
Fáceis, e sem as outras falsidades.
Numa espécie de morte mais terrível
Ser de mim todo despojado, ser
Abandonado aos pés como um vestido.
Sem pressa atravessar a asfixia.
Não vergar. Suster o peso da hora
Até soltar sua canção intacta.


PRELÚDIO

Levanta-se da rocha a flor esmagada
Mais dura do que a rocha e cristalina.
Raízes, caule, pétalas, angústia.

Raízes para sempre ali cravadas,
Caule verticalmente inexorável,
Pétalas miraculosas: pura água.

Minhas mãos são chagas,
Para te colher…
Minhas mãos são chamas,
Pedaços de gelo…
Levanta-se da rocha a flor esmagada.



Poeta português, nascido em 7 de Outubro de 1933, em Lisboa, e falecido a 13 de Outubro de 1968, na mesma cidade, filho do poeta presencista Francisco Bugalho, oriundo de Castelo de Vide. A partir de 1940 reside em Lisboa, onde terminou os estudos liceais. Frequentou a Faculdade de Direito de Lisboa, que abandonará para ingressar na Faculdade de Letras. Entre 1960 e a sua morte, trabalhando na construção civil, viveu entre Lisboa, Castelo de Vide, Paris e Heidelberg, onde recebeu acompanhamento psicoterapêutico. A sua única obra poética publicada em vida, 35 Poemas, data de 1959, embora tenha publicado anteriormente colaboração poética em jornais e revistas, como Diário Popular, Árvore, Anteu, Távola Redonda, Serões. Além do pseudónimo Cristovam Pavia, António Flores Bugalho assinou composições com os pseudónimos, ou "semi-heterónimos" (cf. BENTO, José - introdução, notas e comentários a Poesia de Cristovam Pavia, Lisboa, 1982), Sisto Esfudo, Marcos Trigo e Dr. Geraldo Menezes da Cunha Ferreira. Para José Bento, "A poesia de Cristovam Pavia é a revelação de si próprio, de uma personalidade em conflito com o mundo em que vive e que procura uma fuga pela recuperação da infância morta, pela aceitação do seu conhecer-se diferente e despojado do que lhe é mais caro (a infância, o amor, o espaço e o tempo em que ambos se situavam), a transformação do seu próprio ser pelo sofrimento, num movimento de ascese e de autodestruição, quando o poeta atinge a consciência de si próprio e da sua voz." ("Sobre a Poesia de Cristovam Pavia", in Poesia de Cristovam Pavia, Lisboa, 1982, p.15).

Bibliografia: 35 Poemas, Lisboa, 1959; Poesia, Lisboa, 1982

http://www.infopedia.pt/$cristovam-pavia

Ainda em 1950 encontramos nos poemas de Cristovam Pavia duas figuras que voltarão posteriormente: o cão e o próprio poeta como morto. O cão é em Cristovam Pavia um símbolo de total pureza e disponibilidade, continuação e espírito da terra onde vive, testemunho da integridade da infância perdida, da amizade, da presença que na sua mudez exprime o que de mais fundo possui, da fidelidade da sua planície. É de 1950 o poema Ao meu cão «Fixe», de que se fala mais adiante. E um dos poucos poemas que conhecemos dos últimos anos da sua vida e que sabemos ter sido escrito depois da publicação dos 35 Poemas é Ao meu cão, que é o único poema seu em que se reflecte o remorso. Para quem tinha uma tão profunda religiosidade, que o mesmo é dizer que se sentia religado a tudo o que conhecia, só um cão (porventura companheiro da adolescência, da solidão, de horas cuja angustia talvez ninguém conheça) de olhos / Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de aceitação / De tudo... lhe mereceu um pesado remorso por o ter deixado só, à hora de morrer, talvez por nele encontrar a grandeza que então não reconhecia aos homens. (Sublinhe-se que este poema é de 1966, quando o poeta já tinha vivido quase tudo o que tinha para viver.) Talvez a morte deste cão lhe tenha despertado a lembrança da morte dum outro cão, ocorrida na sua infância, que nunca esqueceu, a ponto de a lembrar muito depois num poema que é só esta nota profundamente ferida: Há-de haver sempre meninos a chorar ao pé do velho cão morto.

[...]

Um poema [...], Ao meu cão «Fixe», é o olhar saudoso do estudante de 17 anos, preso em Lisboa pelos seus afazeres escolares, que divisa o mundo da sua infância, onde espera ir, provavelmente nas ferias de Natal que se aproximam. (Vem aí Dezembro). Uma das razões por que deseja partir para essa paisagem amada é porque para o seu cão ainda sou o teu menino, isto é: para o mundo que o rodeia e lhe é hostil o poeta perdeu a infância, mas para o mundo animal, isento de julgamento porque inocente, ele continua a ser o menino que interiormente sente que é ou que deseja ser.
[...]

José Bento
Poesia [de Cristovam Pavia]
Moraes Editores, 1982
Oferecido por Rui Almeida.

Desajustado aos estudos, aos amores, à cidade, foi para o estrangeiro, tentou a psicoterapia, mas sem resultado. Em 1968, atirou-se para debaixo de um comboio. Não podemos ignorar a importância do convívio pessoal e da morte súbita, factores muitas vezes invocados e que emprestam uma aura à poesia de Pavia que às vezes vai bastante além do que encontramos nos poemas. Mas o livro de 1959 é muito significativo em termos da evolução da poesia portuguesa pós-presencista. A "geração de 50" debateu-se com as mais variadas influências e seguiu todo o tipo de caminhos. Basta dizer que Pavia publicou em revistas com poéticas tão diferentes como a "Távola Redonda" (neo-lirismo) e a "Árvore" (humanismo). "Poemas" recolhe o livro de 1959, uma secção de dispersos e outra de inéditos. O volume, com organização de Joana Morais Varela, retoma a compilação homónima editada em 1982 e acrescenta novos textos e uma nova disposição, mais notas e uma marginália crítica, num trabalho irrepreensível. O prefácio é de Fernando J. B. Martinho, que conhece como ninguém a poesia portuguesa da época. Martinho explica que Pavia, tal como outros pós-regianos, recuperou a penumbra existencial de Pessanha, a teatralidade mimada de Nobre e Sá-Carneiro, mais o Pessoa ortónimo, bem como os poetas brasileiros e Rilke. Ou seja, apesar de ter editado em 1959, Pavia é ainda de algum modo um simbolista tardio, incompletamente modernista, ligado a um confessionalismo adolescente e meditativo.

POR PEDRO MEXIA

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