MEDITAÇÃO NO PARQUE
Rogel
Samuel
Meditação
no parque. Vento frio, apesar do verão. Frio, em Poços de Caldas. Reflexão no
Parque. O ano de 2003. Passou. A criança passa, passa por mim, na pequena
bicicleta. Olha para mim. Sorri. Nenhum plano, para o futuro. O futuro, esse
não existe. Possivelmente não, nada será igual ao que planejamos. 2003 sim, foi
muito bom. Mesmo. Passou, mas valeu. Se tive lá o meu cálice de lágrimas,
também sorvi, e com avidez, a minha taça de prazeres e realizações. De um certo
ponto de vista, esse foi um dos melhores tempos de toda a minha vida. Não, não se deve pensar em melhorar o que é,
o que está, e está bem em sua própria natureza de ser. A vida, esta coisa se
oferece, como ampla paisagem, - nós tomamos o rumo. A vida é restauração, é
tempo, tempo que se esgota, que se encurta, momento a momento, cada vez menor.
Menos tempo, menos vida, a cada respiração mais próximos do fim, a
temporalidade se põe no horizonte, como o sol, ainda muito brilhante, mas
cadente. Que fizemos nós, do tempo que dispomos? Dizia o mestre Suzuky: «O Zen
ordena que neguemos tudo o que se atravesse em nosso caminho, e mesmo essa
tentativa de negar deve ser negada». Toda experiência de vida é única, se
recusa a ser explicada. A vida, - um presente que recebemos devido à nossa
coragem, ao nosso amor, ao nosso interesse pelas outras pessoas. Que fizemos
nós, em 2003, na vida? Da vida? A que tipo de vida nós nos propusemos? Somo
todos esquecidos, vivemos sonâmbulos ou irrequietos.
Nós nos esquecemos dela, da vida, seja o que for, do viver com amplidão de
sentido. Nos esquecemos. Em 2003 escrevi essas crônicas. Com regularidade. Tive
quem mas lessem. Tive alguns bons leitores. De qualidade. Veja você. Há uns
poemas de Saichi, o carpinteiro poeta, que dizem:
Onde estas tu, Saichi?
No céu?
Aqui
é o céu.
Esse
eu, com um olho dado por ti,
O
olho que te vê.
Soam
agradavelmente aos ouvidos os ruídos do parque. Algumas vozes. Longínquas.
Gritinhos estrídulos, crianças, pássaros. As velhas andam, vagarosas. Pesadas
de passado. Se se libertassem do passado, dançariam, livres, leves, soltas no
ar como nuvens. Como pássaros. O passado tem seu peso morto, acumulado, lastro
do navio casco cheio de lodo ferro. Entre as flores passam jovens namorados,
ainda jovens, ainda puros. Ele acreditam no amor, acreditam na vida. Seus
corpos belos frescos, eles irradiam felicidade. Rosas. Eu hoje acredito no
amor. Acredito na vida. As rosas abertas ao verão, às chuvas de verão. Sinto-me
irmão daquelas velhas, confuso, lúcido, como os namorados, as crianças.
Escreveu Fernando Pessoa (ou melhor Ricardo Reis, seu outro):
Prazer,
Mas devagar,
Lídia, que a
sorte àqueles não é grata
Que lhe das
mãos arrancam.
Furtivos
retiremos do horto mundo
Os depredandos
pomos.
Não
despertemos, onde dorme, a Erínis
Que cada gozo
trava.
Como um
regato, mudos passageiros,
Gozemos
escondidos.
A sorte
inveja, Lídia. Emudeçamos.
Sim, Pessoa, ou Ricardo Reis, tão
sábio. As Erínias eram as Fúrias, seres terríveis que representavam o
restabelecimento da Ordem, destruída por um crime. Eram vinganças vivas, e
viviam no Erebo. Seres anteriores ao próprio Zeus. Geralmente havia três
deusas, três Fúrias, tinham víboras em lugar de cabelos, cara de cão, corpo de
vampiro, os olhos sanguíneos. «Erinis» significa «odiosa». O chamá-las de
«Fúrias», como os Romanos, significava que eram «a loucura da vingança». Pessoa
considera o prazer como um «crime», ou melhor, ele criminaliza o prazer do
amor, o resvala na sua sexualidade. «Não despertemos, onde dorme, a Erínis /
Que cada gozo trava»,
significa «gozemos escondidos». Como um regato entre
árvores, como passageiros mudos, como adolescentes em «pecado», gozemos no
escondido, no escuro, ou nas sombras do parque desta meditação do parque, com o
cuidado e o medo do despertar policial das Erinis.