POR NEUZA MACHADO
O Manixi
da narrativa rogeliana poderá ser visto pelo mesmo prisma que revelou aos
leitores universais o Sertão ficcional de Guimarães Rosa. Assim como o Sertão
roseano, oriundo do sertão de Minas Gerais, que “está em todo lugar”, como diz
Riobaldo (o personagem-narrador de Guimarães Rosa), do mesmo modo percebo o
Manixi ficcional rogeliano. Assim como o Sertão de Guimarães Rosa foi visto,
por mim, em meu livro, Do Pensamento Contínuo à Transcendência Vital (do
cogito(1) ao cogito(3)), como um reflexo da casa primordial, repensada a partir
da ciência filosófica de Gaston Bachelard, da mesma forma o espaço ficcional do
Manixi será aqui interpretado. A narrativa revelou-me, e revelará aos futuros
leitores rogelianos, as íntimas lembranças (memória) e recordações (matéria
poética) do narrador amazonense, sobre a sua “casa primordial” inesquecível. Os
sentidos vitais (auditivos, visuais, nasais, táticos, gustativos), provindos da
infância e adolescência, vividos ali, permaneceram/permanecem intensos e
persistentes em suas lembranças poetizadas, mesmo que ele esteja hoje
distanciado geograficamente de seu lugar de nascimento, e são percebidos
liricamente (matéria lírica interferindo no relato ficcional) ao longo da
narrativa. Quem se lembra (recorda ficcionalmente) do Igarapé do Inferno (por
que “do Inferno”?) e de toda aquela paisagem dantesca é o segundo narrador,
originário do entrópico século XX. O personagem-narrador Ribamar de Sousa
apenas se coloca como o porta-voz de suas reminiscências (ou o duplo, ou a máscara
ficcional do criador singular atavicamente preso às lembranças e recordações do
passado, fossem boas ou más).
“Pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era, quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco”, afirma(m) o(s) narrador(es) (s). O primeiro narrador, Ribamar de Sousa (reduplicado por uma pluralização pessoal) chega ao Palácio Manixi quando este já começava a apresentar-se em seu processo de decadência. Para revelá-lo reflexivamente aos leitores atuais e do futuro, buscarei reforço analítico-interpretativo na Poética da Casa de Gaston Bachelard e em outras interferências filosóficas (citações), valiosas, retiradas dos diversos livros de sua fase noturna. O Palácio, a Floresta, a Cidade, todos os planos desta obra diferenciada se distinguem a partir de um único princípio, ou seja, refletem a “casa inesquecível” de que nos fala Bachelard, com seus recantos secretos aninhados no mais profundo dos pensamentos. Por isto, o “Igarapé do Inferno” (por que Igarapé do Inferno?) se revela a sinalizar íntimas lembranças infernais, lembranças que obrigam o primeiro narrador a revelá-las. Quem está buscando o “passado interdito” é o segundo narrador, porque foi ele, enquanto singularidade ativa de seu núcleo social primitivo, que chegou ali, pelo nascimento, já no final de uma era de glórias capitalistas, já no início da decadência do esplendor da borracha.
O Palácio Manixi como reflexo das ruínas da casa natal. O Palácio como reverberação das perdas existenciais de um narrador invulgar que poderia ter nascido, crescido e permanecido na opulência, por ser herdeiro de nomes notáveis (perdidos, por interferência de durações mal administradas), mas que se viu na contingência de sair pelo mundo (assim como o Ribamar de sua história), “a criar [suas] próprias pélas” . O segundo narrador, certamente oriundo de famílias destacadas daquele passado de glórias, poderia ter sido, naquelas paragens de nascimento, um Zequinha Bataillon bem edificado. A crise da borracha decidiu o contrário. Seu parente Maurice Samuel (citação do romance), rico judeu-francês, figura de destaque na cidade do princípio do século XX, perdeu toda a sua fortuna, quando da recessão econômica da borracha, ficando na bancarrota. Foi, talvez, a partir da imagem de Maurice (possivelmente e sintagmaticamente, sempre destacada com reverência e respeito), metaforicamente assimilada (somatório) às antigas figuras dos chefes políticos manauaras, que houve surgir representações/recriação do poderoso Pierre Bataillon.
Recuperando as informações bachelardianas, contidas no capítulo “A dialética do energismo imaginário” , do livro A Terra e os Devaneios da Vontade, e se as comparo com as informações contidas no texto ficcional rogeliano, a delineação de grande efeito, poderosa, do personagem Pierre Bataillon, se tornará mais transparente.
Bachelard diz: “A vontade de poder inspirada pela dominação social não é nosso problema”, quer dizer, não é problema do filósofo (não é problema dele, do Gaston Bachelard). E continua: “Quem quiser estudar a vontade de poder é fatalmente obrigado a examinar primeiro os signos da majestade”, e isto é um problema do ficcionista-criador, e neste caso específico, do ficcionista manauara. Quem terá de se deixar seduzir momentaneamente pelo instante metafísico pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, pelo “hipnotismo das aparências”, dos simulacros cotidianos que imperam em seu momento histórico, e quem terá de se embaraçar nos “ouropéis da majestade” de um personagem ímpar, poderoso, é o “demiurgo do vulcanismo”, conectado indissoluvelmente e indistintamente ao “demiurgo do netunismo” ─ o demiurgo da terra flamejante acoplado ao demiurgo da terra molhada ─ [oferecendo] “seus excessos contrários à imaginação que trabalha o duro e àquela que trabalha o mole”. “A vontade de trabalho não pode ser delegada, não pode usufruir o trabalho dos outros”, explica Bachelard. Então, a “vontade de trabalho” ficcional do narrador pós-moderno, extremamente diferenciada, ao revelar a grandeza e declínio da Era da Borracha, no Amazonas, não poderá ser avaliada como subproduto de suas inúmeras leituras (históricas ou não) sobre o assunto. Sua “vontade de trabalho”, ao intuir a sua ficção singular, ultrapassou os limites do explicitamente oferecido. Sua “vontade de trabalho” criou “as imagens de suas forças” narrativas, forças que o animaram “por meio das imagens materiais”, ficcionistas, de um Manixi esplendoroso e de um Pierre Bataillon repleto de um supremo poder (o poder capitalista selvagem que grassou no Amazonas, a partir do século XIX até meados do século passado ─ século XX ─, e que se enfraqueceu, posteriormente, retirando do lugar o esplendor de outrora).
“Pois nós retornávamos em busca daquele passado interdito, pois nós chegávamos no fim daquela era, quando o Palácio transparecia com deslumbramento nos seus múltiplos reflexos das quinquilharias de cristal, janelas e bandeiras das portas transformadas em lúcidas placas de ouro reluzente e vívido e muito louco”, afirma(m) o(s) narrador(es) (s). O primeiro narrador, Ribamar de Sousa (reduplicado por uma pluralização pessoal) chega ao Palácio Manixi quando este já começava a apresentar-se em seu processo de decadência. Para revelá-lo reflexivamente aos leitores atuais e do futuro, buscarei reforço analítico-interpretativo na Poética da Casa de Gaston Bachelard e em outras interferências filosóficas (citações), valiosas, retiradas dos diversos livros de sua fase noturna. O Palácio, a Floresta, a Cidade, todos os planos desta obra diferenciada se distinguem a partir de um único princípio, ou seja, refletem a “casa inesquecível” de que nos fala Bachelard, com seus recantos secretos aninhados no mais profundo dos pensamentos. Por isto, o “Igarapé do Inferno” (por que Igarapé do Inferno?) se revela a sinalizar íntimas lembranças infernais, lembranças que obrigam o primeiro narrador a revelá-las. Quem está buscando o “passado interdito” é o segundo narrador, porque foi ele, enquanto singularidade ativa de seu núcleo social primitivo, que chegou ali, pelo nascimento, já no final de uma era de glórias capitalistas, já no início da decadência do esplendor da borracha.
O Palácio Manixi como reflexo das ruínas da casa natal. O Palácio como reverberação das perdas existenciais de um narrador invulgar que poderia ter nascido, crescido e permanecido na opulência, por ser herdeiro de nomes notáveis (perdidos, por interferência de durações mal administradas), mas que se viu na contingência de sair pelo mundo (assim como o Ribamar de sua história), “a criar [suas] próprias pélas” . O segundo narrador, certamente oriundo de famílias destacadas daquele passado de glórias, poderia ter sido, naquelas paragens de nascimento, um Zequinha Bataillon bem edificado. A crise da borracha decidiu o contrário. Seu parente Maurice Samuel (citação do romance), rico judeu-francês, figura de destaque na cidade do princípio do século XX, perdeu toda a sua fortuna, quando da recessão econômica da borracha, ficando na bancarrota. Foi, talvez, a partir da imagem de Maurice (possivelmente e sintagmaticamente, sempre destacada com reverência e respeito), metaforicamente assimilada (somatório) às antigas figuras dos chefes políticos manauaras, que houve surgir representações/recriação do poderoso Pierre Bataillon.
Recuperando as informações bachelardianas, contidas no capítulo “A dialética do energismo imaginário” , do livro A Terra e os Devaneios da Vontade, e se as comparo com as informações contidas no texto ficcional rogeliano, a delineação de grande efeito, poderosa, do personagem Pierre Bataillon, se tornará mais transparente.
Bachelard diz: “A vontade de poder inspirada pela dominação social não é nosso problema”, quer dizer, não é problema do filósofo (não é problema dele, do Gaston Bachelard). E continua: “Quem quiser estudar a vontade de poder é fatalmente obrigado a examinar primeiro os signos da majestade”, e isto é um problema do ficcionista-criador, e neste caso específico, do ficcionista manauara. Quem terá de se deixar seduzir momentaneamente pelo instante metafísico pós-moderno/pós-modernista de Segunda Geração, pelo “hipnotismo das aparências”, dos simulacros cotidianos que imperam em seu momento histórico, e quem terá de se embaraçar nos “ouropéis da majestade” de um personagem ímpar, poderoso, é o “demiurgo do vulcanismo”, conectado indissoluvelmente e indistintamente ao “demiurgo do netunismo” ─ o demiurgo da terra flamejante acoplado ao demiurgo da terra molhada ─ [oferecendo] “seus excessos contrários à imaginação que trabalha o duro e àquela que trabalha o mole”. “A vontade de trabalho não pode ser delegada, não pode usufruir o trabalho dos outros”, explica Bachelard. Então, a “vontade de trabalho” ficcional do narrador pós-moderno, extremamente diferenciada, ao revelar a grandeza e declínio da Era da Borracha, no Amazonas, não poderá ser avaliada como subproduto de suas inúmeras leituras (históricas ou não) sobre o assunto. Sua “vontade de trabalho”, ao intuir a sua ficção singular, ultrapassou os limites do explicitamente oferecido. Sua “vontade de trabalho” criou “as imagens de suas forças” narrativas, forças que o animaram “por meio das imagens materiais”, ficcionistas, de um Manixi esplendoroso e de um Pierre Bataillon repleto de um supremo poder (o poder capitalista selvagem que grassou no Amazonas, a partir do século XIX até meados do século passado ─ século XX ─, e que se enfraqueceu, posteriormente, retirando do lugar o esplendor de outrora).
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