Lucilene Gomes Lima
FICÇÒES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS
Estudo comparativo dos romances A selva, Beiradão e O amante das amazonas
O amante das amazonas: o ciclo sob o olhar de um analista-autor
Rogel Samuel, autor de O amante das amazonas, agrega duas características relevantes para nosso estudo sobre as obras literárias do “ciclo da borracha”. A primeira delas é a experiência que, em seu caso, não é direta, vem de reminiscências legadas pela memória de antepassados, como o avô, um alsaciano enriquecido pelos lucros da borracha amazônica, no início do século XX. A segunda característica motivadora do estudo desse romance surge do fato de o autor ser analista literário, atividade resultante de sua carreira no magistério.[213]
Entendemos ser a atividade de analista empreendida por Rogel Samuel a promotora da diversificação de abordagem do romance O amante das amazonas. Não o nomeamos, contudo, um escritor-crítico, conforme concebe Leyla Perrone-Moisés[214] por entendermos que o autor exerce a atividade de analista paralelamente a de escritor e por considerarmos que tanto a sua produção teórica quanto a sua produção ficcional não alcançaram a extensão e o nível de sistematização necessários à qualificação de escritor-crítico, como o estabelece o estudo de Perrone-Moisés. Uma vez que Samuel não pratica a análise do texto ficcional como corolário de sua atividade de escritor, podemos considerar o oposto: que sua atividade de professor e analista possibilitou a expressão de ficcionista, expressão essa que marcará a renovação da terceira fase ficcional do ciclo.
O amante das Amazonas realiza a brevidade que, segundo lembra o narrador de um romance de Ítalo Calvino, é necessária aos romances modernos: “[...] Hoje em dia, escrever romances longos é um contra-senso: a dimensão do tempo foi estilhaçada, não conseguimos viver nem pensar senão em fragmentos de tempo que se afastam, seguindo cada qual sua própria trajetória e logo desaparecem [...].”[215] Dessa forma, o romance se divide em 23 capítulos curtos: Viagem, Palácio, Numas, Paxiúba, Ferreira, Júlia, Desaparece, Ratos, Frei Lothar, Perdida, Ribamar, Manaus, Conversas, O leque, A livraria, Benito, Rua das Flores, Encontro, Mistério, Noite, O pórtico, Jornal, Fim. São capítulos que, por sua vez, não estabelecem uma continuidade linear do enredo, alguns deles basicamente introduzem personagens, o que reforça a característica fragmentária da narrativa.
Fragmentado é ainda o narrador do romance. Divide-se entre primeira e terceira pessoas. Em primeira pessoa, narra Ribamar, retirante do povoado de Patos, em Pernambuco, vindo para a Amazônia em 1897. Já a voz que narra alternando a primeira e terceira pessoas tece comentários, dialoga com o leitor, insere digressões e se assume como ser ficcional: “[...]sei, e de antemão o digo, que esta é apenas uma obra de ficção, e portanto mentirosa, dentre as várias que há na literatura amazonense, e espere o leitor e a leitora o surpreender-se como, apesar disso, o fio do destino do que vai descobrir é correto. Todos os fatos, aqui expostos, foram realidades notáveis e aconteceram realmente para a minha imaginação [...].”[216]
As narrações em primeira e terceira pessoas, portanto, não se apresentam como instâncias independentes. Por vezes, a forma indireta da terceira pessoa se personaliza. Expressa-o o fato de que o romance se inicia com a narração em primeira pessoa da personagem Ribamar para, posteriormente, no capítulo dez, ser atribuída ao narrador em terceira pessoa, que destaca: “O Manixi naquela época agonizava, improdutivo. Fazia dois anos que o próprio Ferreira não aparecia, e a sede, depois da morte do Capitão João Beleza, ficara sob as ordens de um Ribamar (d’Aguirre) de Souza, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o primeiro capítulo desta minha narrativa.”[217]
Depreendemos que a impessoalidade da terceira pessoa transforma-se em diversos momentos da narrativa em uma voz paralela à do narrador-personagem Ribamar. Essa outra voz que também fala em primeira pessoa (minha narrativa/Eu, o narrador) e se assume como narrador, concomitantemente cria uma noção de veracidade extratextual, entretanto, há aí também um artifício ficcional: “[...] do que pude conseguir de jornais da época e de cartas de familiares, o desaparecimento de Zequinha Batelão nas margens do Igarapé do Inferno se deu em janeiro de 1912. Não fosse essa uma obra de ficção e poderia citar, em notas de pé de página, as fontes de onde obtive tal informação [...]”[218]
A abertura do segundo capítulo do romance apresenta-se como um dos momentos em que narrador-personagem e narrador analista se fundem. Essa passagem norteia a própria leitura que devemos fazer do romance, pois a ficção se auto-define:
[...] esta narrativa-paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha tardia confissão - vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Souza, aquele adolescente que eu era aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes politonais sobre o que sentado estava num banco de madeira no alpendre do tapiri ao som do suporte de compassos 5/4 do Igarapé do Inferno, que sai no Igarapé Bom Jardim que sai no Rio Jordão, que sai no Rio Tarauacá, que sai no Rio Juruá, afluente do Rio Amazonas, o Solimões, aonde estamos retornando.[219]