sábado, 30 de junho de 2018

NEIDE GONDIM,falecida hoje




DO PALEOLÍTICO AO MODERNO: MAD MARIA
 Neide Gondim

É la que cedo ou tarde concentrar-se-há a civilização do globo.
Humboldt apud Rego Filho, 1899
Aquele recanto da terra, fim do mundo civilizado e começo de linhas ainda frágeis, bem podia ser reproduzido como a “sepultura do suicida moral, a pátria dos proscritos!
Hall Caine apud Foot Hardman
O herói moderno não é herói - é a representação do herói. A modernidade heróica revela-se como tragédia em que o papel do herói está disponível.
W. Benjamin
      A “modernização” brasileira deu-se diferentemente da européia em decorrência de aqui não haver se processado rupturas profundas na sociedade, pré-requisitos indispensáveis à implantação do capital. O que se viu foi um salto, não um processo dialético. Esse quadro paradoxal serviu para alicerçar oligarquias oriundas do campo através da ascensão de seus representantes aos quadros políticos nacionais, o que significa dizer que a permanência de uma mentalidade aberta aos ventos modernistas conservou-se estagnada quando interesses pessoais, provincianos, podiam ser prejudicados. Este é o assunto contido na primeira parte deste trabalho. 
     O livro que serviu de impulso para a compreensão aprofundada de um processo que muitas vezes pode parecer incompreensível, é uma obra de ficção, Mad Maria, do escritor amazonense Márcio Souza. Dessa forma, ao mesmo tempo em que se entende a história do Amazonas, compreende-se a brasileira. A obra mostra como lugarejos distanciados do centro nervoso nacional foram, não obstante, peças importantes na alteração do quadro político e econômico brasileiro. 
     A figura de um anti-herói é concretizada no representante do capital norte-americano - Percival Farquhar - que dá seu corpo para, através dele, o leitor entender a volubilidade e adaptabilidade do capital em um país sequer totalmente democrático, sequer possuidor de uma identidade nacional, porém em choque frontal com algo que dispensa nacionalidade porque apátrida, internacional. Daí poder-se dizer que as tradições brasílicas são inventadas. 
      Márcio tenta resgatar as tradições indígenas contidas nos relatos míticos, a grande maioria desaparecida com a morte em massa ou solitária de um único remanescente. O índio “caripuna”, personagem de Mad Maria, é o retrato nostálgico de uma brasilidade volatilizada pela solidez do capital mercantil e/ou internacional. Personagens com Finnegan e Collier são preciosidades para a compreensão da racionalidade/irracionalidade do sorvedouro que representou o capital no extremo norte. Consuelo e o índio mostrarão mimeticamente a transformação do homem nesse processo de reificação do lucro e conseqüente aniquilamento humano. Mad Maria é o assunto da segunda parte. 
      A formação espiritual, política e econômica do Amazonas guarda nuances que se distinguem da contextualidade nacional. Numa rápida visada (poder-se-ia dizer ingênua e/ou alienada), a idéia que se cristalizou ao longo dos séculos foi a de que a Amazônia era possuidora de uma natureza indomável e gestadora de endemias. Seus habitantes, normalmente vistos como criaturas exóticas, provenientes de um espaço geográfico mitificado, ainda carregam consigo o estigma/novidade do desconhecido e, ao mesmo tempo, o caráter de subalternidade, exatamente porque oriundos de uma região que possui como cartão postal um teatro de arquitetura francesa inserido no meio de uma floresta tropical. Esses dois símbolos são um atestado veemente da simbiose esdrúxula do natural com o civilizado, o salto do paleolítico ao moderno.

     À primeira vista, a permanência da natureza poderia significar a necessidade da preservação de uma tradição, mesmo que mítica, da história cultural de um povo. Se se retroceder ao passado, no entanto, a construção histórica feita a partir da descoberta do Mundo Novo, vai demonstrar toda uma artificialidade que não oferecia lugar para nela ser inserido o nativo, isto por um lado e, por outro, o mesmo nativo foi utilizado como justificativa da conquista aos olhos europeus ou seja, critianizar o silvícola, o que significava dizer civilizá-lo e, concomitantemente, metamorfoseá-lo em elemento terrífico, exótico, o que atenuaria o malogro das expedições(1). 
      Na atualidade, a dicotomia natural/moderno permanece tatuada nas Zona Franca, um setor que manipula tecnologia de ponta, a mais avançada do mundo capitalista. O amazônida convive com esta tensão instaurada pelo natural e pelo civilizado, tensão quadruplicada pelo ilhamento geográfico ao qual foi condenada a região. 
     Durante o período em que a borracha amazônica foi avidamente disputada no mercado internacional, as estradas líquidas possuíam um trafego jamais igualado, facilitando uma aproximação maior e sem percalços com a Europa, distanciando o Amazonas do território nacional. Cessada a corrida daquilo que comumente é alcunhado de ouro negro, cessou também a regularidade, segurança e conforto do transporte fluvial. 
     A tentativa nos anos de 1970 de ligação da região ao Brasil, por terra, não logrou concretizar-se, e a Transamazônica foi encoberta pela mata, tragando e levando em seu bojo, vidas humanas, vegetais e animais, além de desequilibrar a ecologia ao ter seu traçado cortado rios e igarapés, impedindo a reprodução dos peixes. 
     No final do século 19 e início deste, houve duas tentativas de construção de uma estrada de ferro, alcunhada com Maria Maluca (Vicki Baum) Mad Maria (Márcio Souza), mas batizado pelos governos Imperial e Republicano como Madeira - Mamoré, uma estrada que saía de parte alguma e se dirigia para lugar nenhum. 
      Essa tensão, que se perde nos tempos, de junção artificial do natural com a modernidade, via de regra é interpretada como um enorme esforço das autoridades no sentido de integrar, civilizar e fazer progredir um região difícil de ser “domesticada”, cuja palavra de ordem é “ocupar o vazio”. Se fosse questionada essa expressão, o traço de subalternidade que tem acompanhado o nativo se explicitaria no momento em que a solidez cultural e física legada pelos seus antepassados é esfumada pela modernidade, porque o vazio é o nada e como tal a herança cultural de um povo não existe. Em seu lugar são criadas outras tradições. 
     Como entender a simbiose artificial, esdrúxula da realidade amazônica, se a modernidade é conseqüência  da racionalidade que a tudo homogeniza; se pressupõe uma eficaz manipulação da técnica que traz em sua esteira a produção em série, a sociedade dividida em classes, as profundas mudanças ônticas e de percepção do social, ocasionadas pela implantação gradativa do capitalismo, que tem demonstrado ser um dos sistemas econômicos dos mais perversos já implantados pelo homem e que retirou desse mesmo homem a segurança do palpável, do visível, oferecendo-lhe a instabilidade do efêmero, transformando seu corpo e sua alma em mercadoria: sangue, músculos, nervos e consciência, o qual permitiu-lhe, por outro lado, tornar-se senhor de seu próprio destino? 
     Esse dilema emanado de uma estrutura econômica atesta  
sua incansável e insaciável demanda de crescimento e progresso; sua expansão dos desejos humanos para além das fronteiras locais, nacionais e morais; sua pressão sobre as pessoas no sentido de explorarem não só aos outros seres humanos mas a si mesmas; a volubilidade e a interminável metamorfose de tudo e todos os seus valores no vórtice do mercado mundial; a impiedosa destruição de todos os que a moderna economia não pode utilizar - quer em relação ao mundo pré-moderno, quer em relação a si mesmo e ao próprio mundo moderno - e sua capacidade de explorar a crise e o caos como trampolim para ainda mais desenvolvimento, de alimentar-se da sua própria autodestruição (Berman, 1987: 117-8).

       Os efeitos advindos da estrutura econômica automaticamente englobam a superestrutura numa dialética que facilita a compreensão dinâmica do processo de transformação do ser social. A manipulação com o ilusório é o passaporte para a liberdade. Esse mundo que reifica o trabalho como trampolim para a auto-afirmação, não distingue a máquina do homem, colocando a ambos no caudal do progresso, pressuporto da modernidade. Tal como a indecisão hamletiana, o ser ou não ser trágico não mais se opõe, sozinho, à sociedade, pelo contrário, é por ela tragado e se vê solitariamente no meio da multidão. A releitura de Berman sobre a obra de Marx como escritor modernista atesta  
o desenvolvimento dos temas pelos quais o modernismo viria a se definir: a glória da energia e o dinamismo modernos, a inclemência da desintegração e o niilismo modernos, a estranha intimidade entre eles; a sensação de estar aprisionado numa vertigem em que todos os fatos e valores sofrem sucessivamente um processo de emaranhamento, explosão, decomposição, recombinação; uma fundamental incerteza sobre o que é básico, o que é  real ; combustão das esperanças mais radicais, em meio à sua radical negação (Id., ib.:117).

      A dificuldade de se compreender a forma artificial da modernidade concebida aos saltos, manipulada pelo capital internacional - caso específico da realidade amazônica - , sem oferecer uma base definidora daqueles fundamentos já explicitados, é facilitada quando se é municiado pela literatura, principalmente a prosa de ficção, conseqüência da dinâmica dialógica instaurada por sua tendência narrativa. Convém assinalar que se está falando de uma arte compromissada tão-somente com o homem e cuja abordagem não pressupõe o questionamento de verdades históricas, mas visa a saber como se efetiva a dialética do desenvolvimento artificial, que se torna achatador ao criar novas tradições e novos perfis sociais. Dizendo de outra maneira, a literatura permite a imersão/emersão através da técnica narrativa, via personagens, que podem responder a questionamentos e permitem conhecer os meandros obscuros de um processo que se revitaliza ao exaurir o outro, o ator social. 
      Uma obra que corresponde a essas expectativas é Mad Maria, do escritor amazonense Márcio Souza. Sobre ela assim se expressou Foot Hardman:  
a narrativa não se equilibra a contento, principalmente em função de certo esquematismo antiimperialista, que obriga a uma complicação empobrecedora do enredo, com a ação sendo entremeada de cenas das negociatas políticas na Capital Federal. A despeito disso, Mad Maria apresenta alguns momentos de tensão dramática bem construídos (Hardman, 1988:233).
      Se avaliada como um todo, a produção artística de Márcio Souza aponte para a releitura/reescritura da história amazonense a partir da ótica do nativo. Trata-se de uma região que serviu de cenário para as manipulações do capital internacional e mercantil, haja vista a política pombalina no século 18, a apropriação da economia local pelas casa bancárias européias e norte-americanas durante o curto hiato de tempo que durou a demanda gomifera, no século passado e início deste. Na atualidade, a oferta da mão-de-obra barata utilizada pelas indústrias implantadas no Distrito Industrial da Zona Franca transformou, finalmente, a região no paraíso do capital multinacional. A par dessa realidade, a ideologia do Estado brasileiro tem veiculado o jargão de que a Amazônia é um enorme vazio, como já foi dito páginas atrás. Márcio mostra que é naquele vazio que se encontra uma cultura secular e que, apesar das tentativas de dilapidação, ainda permanece. É nela que se encontra o caráter mais viril da brasilidade em constante tensão com o neocolonialismo sistemático o qual, sistematicamente, tem subalternizado a região. 
     Exemplificando, as peças de teatro Jurupari, a guerra dos sexos e A maravilhosa história do sapo Tarô Bequê, tematizam mitos seculares indígenas, cujo tratamento diferencia-se daquelas que abordam fatos históricos. Nestas, a própria adjetivação de teatro de vaudeville é uma metáfora irônica de como o Autor avalia a penetração alienígena na área. Em Zona Franca meu amor a personagem Floresta Amazônica é retratada com uma prostituta que é descartada quando não mais é útil. Romances como Galvez, imperador do Acre, mostram a forma anárquica, descompromissada e inconseqüente do arrivista, cujo jogo de interesses dos políticos é uma miniatura do quadro político brasileiro. A resistível ascensão do Boto Tucuxi não foge à regra: o populismo brasileiro tem aí sua exemplaridade. 
      Não é sem fundamento que Márcio interpreta a história da vida espiritual, política e econômica utilizando a ficção - o romance histórico-irônico, o vaudeville, a tragédia. Excluindo-se as peças que manipulam o sagrado ou seja, a cultura mítica indígena, os demais gêneros apresentam uma feição satírica fazendo com que, muitas vezes, o leitor, ao rir-se daquela região subalternizada, colonizada, esteja rindo, na verdade, de sua própria incapacidade crítica, de sua pseudo-superioridade e flagrante alienação. 
      O pensador italiano Antonio Gramsci, abordando a Questão Meridional, já apontara que as profundas divergências entre o Norte e o Sul da Itália somente resultaram no fortalecimento da classe dirigente, a composição social mais interessada na fragmentação cultural, política e econômica daquelas camadas subalternas. 
      Renato Ortiz mostra o papel civilizador desigual desempenhado pela burguesia européia face ao descompasso brasileiro, cuja burguesia nacional, segundo Florestan Fernandes,  
portadora de moderado espírito modernizador, implanta uma democracia restrita que não estende o direito de cidadania a toda população, e... utiliza a transformação capitalista para reforçar seus interesses estamentais (Fernandes apud Ortiz, 1988:17).
      O recurso à ironia é utilizado pelo autor de Mad Maria enquanto crítica mordaz a essa burguesia descrita por Florestan Fernandes. Nesse sentido, a maior parte das obras de Márcio segue a tradição machadiana, cujo parentesco com a produção de Oswald de Andrade é um dado revitalizador da moderna ficção brasileira. 
       Dentre outras, a análise que se direciona para uma visão globalizante da história nacional deixa transparecer a vitalidade prosódica de Márcio. A constante preocupação que aponta para a questão nacional no traçado da brasilidade, as tradições asfixiadas pelo capital apátrida - nivelador das desigualdades, conseqüência de uma política econômica que passa ao largo dos interesses nacionais -, retiram o produto do trabalho do Autor amazonense da visão estreita do regionalismo para inseri-lo em cenário mais amplo, nacional. 
      Nesse sentido, a crítica de Hardman sobre “certo esquematismo antiimperialista” não deixa de soar estranhamente, uma vez que a personagem principal Mad Maria vem a ser o capital internacional. Diferentemente da escritora alemã Vicki Baum autora da epopéia da borracha no instigante romance A árvore que chora, a protagonista é a borracha. 
      Nesta obra, a Autora mostra a trajetória da goma elástica a partir do século 18, nos confins do Amazonas, cuja técnica de transformação da seiva em utensílios manufaturados deveu-se aos índios omágua. Dali a borracha se espalhou pelo mundo e se transformou em matéria vital para atender à modernidade, instigada pela criação da indústria automobilística. 
      O capítulo A morte do índio (pp. 208-232) é o relato pungente do extermínio dos nativos e de como se processou a aculturação e a escravidão da mão-de-obra amazônida. Chama a atenção a narrativa, neste capítulo, se desenrolar na primeira pessoa, tendo o narrador assumido o foco narrativo indígena, o que torna o relato mais verossímil, e a “ingenuidade” que envolve as reflexões do índio oferece um resultado incrivelmente cruel do violento processo por que passaram os nativos. 
      Um outro capítulo (pp. 330-354) tematiza a construção da Madeira-Mamoré. Em retrospectiva, o alemão Enrique “La Bala” relembra para o cientista norte-americano Maxwell Tyler a época em que trabalhou na Maria Maluca e as atrocidades cometidas em nome de algo que não era perceptível, mas que deixara cicatrizes indeléveis na vida de quantos para o capital venderam sua força de trabalho. 
     Mesmo in ausentia, a borracha se presentifica no decorrer de todo o romance, cujo subtítulo é O romance da borracha. Fica claro o encarniçamento do jogo internacional ao ser traçada a biografia de Henry Ford, por exemplo, cujo afã pelo lucro anula até mesmo os autores das pesquisas bancadas pelas indústrias Ford, numa flagrante reificação do capital. 
     Torna-se complicado, conseqüentemente, tematizar a modernidade sem que o capital não se faça presente; sem que inexista a tensão entre a visão “sólida” e “diluidora” da vida moderna (CF. Berman, op. cit.: 89). Como disse Berman, tudo que é sólido desmancha no ar; e Marx, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente forçados a enfrentar com sentidos mais sóbrios suas reais condições de vida e sua relação com outros homens (Marx apud Berman. Id. ib.: 89). 
      Nesse sentido Mad Maria mimetiza essa profanação levada a efeito pelo avanço do capital conforme pensou Marx. No Amazonas não ocorreram etapas formadoras de um processo, mas saltos fragmentados impostos por consciências reificadoras, niilistas, desintegradas e dinâmicas, conseqüência de uma vivência secular implantada nos países de origem dessas consciências; espaços geográficos que tiveram outra história, sofreram outros processos, exemplificados nos Estados Unidos e Inglaterra e, nos primórdios, por Portugal. 
     Mad Maria apresenta personagens internacionais ao lado de nacionais e nativas da região amazônica. O painel amplo permite a abrangência histórica, política e cultural dificilmente encontrada em compêndios que historicizam o processo de conquista da região Norte.
 
      Quase tudo neste livro bem podia ter acontecido como vai descrito. No que se refere à construção da ferrovia há muito de verdadeiro. Quanto à política das altas esferas, também. E aquilo que o leitor julgar familiar, não estará enganado, o capitalismo não tem vergonha de se repetir (Souza, 1980: 11). 
     Assim se inicia o romance Mad Maria. 
     Constituído em cinco livros - Ocidente Express, Arbeit macht Frei, Um dia ainda vamos rir disso tudo, Quando não puder resistir, relaxe e goze e As delícias da acumulação primitiva -, os títulos irônicos já dão as pistas do direcionamento da narrativa, principalmente o último, que na visão marxista, significa os processos que antecederam o capitalismo, tais como a expropriação camponesa e indígena, e que permitiram a formação de um exército de reserva quando o capital já se encontrava implantado. 
     Dividido em cinco subcapítulos, segmentados por sua vez em cinco partes que se repetem na ordem de aparição da primeira, o Livro I secciona, como flashes cinematográficos, a história das personagens, cujas ações ora se passam no Amazonas, ora se fixam no Rio de Janeiro, de onde emanam a política econômica do capitalista norte-americano Percival Farquhar e o jogo de interesses de personalidades brasileiras como Ruy Barbosa, inimigo político de J. J. Seabra e de Hermes da Fonseca. 
      Finnegan, Consuelo, Collier e índio, personagens que entram em cena no Livro I, têm suas ações embricadas nos demais livros, cujo fio condutor - a pseudo modernidade -, quer se efetivar através do fantasma do capital norte-americano em luta contra o alemão. 
      A franquia para a expansão, no Brasil, do capital norte-americano, paradoxalmente irá depender de um obscuro povoado localizado no Amazonas, o Abuña, em Guajará Mirim, onde estava sendo construída, pela segunda vez, uma ferrovia cuja obra tivera início em 1870 e fora retomada em 1909, durante o expansionismo do capital internacional em busca de novos mercados consumidores.
 
      Mas, quem é essa personagem vampiresca, onipotente, tentacular? E por que o Amazonas entra nessa jogada? 
      Farquhar empreitava rodovias na Colômbia, era dono de hotéis e ferrovias em Cuba, explorava Madeira em Formosa, controlava o porto, os telefones e os bondes elétricos de Belém, era o verdadeiro proprietário da Companhia de Eletricidade de São Paulo, possuía um seringal no Amazonas e uma cidade, Porto Velho, cuja língua oficial era a inglesa. Pretendia construir uma ferrovia no Paraná. Porém, com a queda do grupo político que apoiava, capitaneado pela personagem Ruy Barbosa e a ascensão de Hermes da Fonseca, presidente com pendores modernistas, que via com bons olhos a eficiência técnica dos alemães, viu esse projeto ser obstado. Os problemas decorrentes com a desapropriação de terras, fartamente divulgados pela imprensa, foi mais um dos motivos que levou Hermes da Fonseca a desconfiar daquele capitalista norte-americano. Some-se ainda a concorrência fraudulenta para a construção da Madeira-Mamoré.

     Farquhar sabia dessa ligação de Hermes com os alemães e agora se sentia no papel de representar a força do capital norte-americano presente no país capaz de barrar a chegada dos alemães. (Id. Ib.: 55)(2). 
     É nesse momento que Ruy - advogado de Farquhar quando os negócios estavam emperrados - sugere seja discretamente divulgada pela imprensa, matéria paga falando do recomeço da construção da ferrovia. Esta seria o cartão de apresentação do capitalista frente ao governo brasileiro. Diante da extensão dos outros projetos, esta ferrovia representava o mínimo em termos de negócios. 
     O plano surte efeito. Autoridades, amigos, são convidados a visitar Porto Velho, com as despesas correndo por conta do capitalista norte-americano, cujo objetivo era possuir o testemunho ocular da modernidade que se implantava nas selvas amazônicas. 
      A chegada da comitiva à cidade artificialmente construída para abrigar uma ferrovia é um dos poucos momentos em que aparece a ironia prosódica de Márcio, um dos traços característicos de sua produção artística. Na cidade totalmente submetida ao domínio de Farquhar, é içada a bandeira norte-americana, substituída às pressas pela brasileira, que galhardamente sobe de cabeça para baixo, tendo sua ordem e seu progresso positivamente bordados em inglês, fato sequer notado pelas autoridades, unicamente preocupadas em participar daquele piquenique festivo. 
     O capital, porém, não dorme em serviço. 
     Farquhar “não se queixava, a desordem brasileira também era de certo modo providencial e a melhor aliada do seu sucesso empresarial” (34). Os cadinhos todos eram transformados em lucros para o capitalista, até as caminhadas que fazia à noite, no Rio de Janeiro, “eram horas mortas e saborosas como um inesperado lucro” (50). Outras vezes “o lucro se revelava diferente, mas sem escapar da rotina”, isso momentos antes do relacionamento sexual com a amante do político baiano J. J. Seabra, aquela, peça importante no jogo de interesses (50). “Ele estava usando cada trepada com um investimento e devia ter algum lucro com isto. Farquhar tinha a maior veneração pela instituição do lucro e chegava a acreditar que o lucro era a maior criação de Deus. Na natureza tudo era fonte de lucro e ele tinha certeza que um Deus esperto não teria agido assim por nada. E aquela trepada, realizada com perícia, o corpo perfumado dela com as fragrâncias exatas, era uma antecipação como um depósito bancário a prazo fixo” (69). 
     Essa personagem trajava-se bem, sem jamais ultrapassar  “os limites da boa apresentação”, ao falar, no entanto, possuía uma “confiança inabalável de rufião, uma perseverança de vigarista que desestimulava qualquer retaliação da parte dos interlocutores” (20). Objetivo, essa personificação do capital atestava a “reprodução da energia dos negócios norte-americanos. Sorria um pouco, nunca prometia nada e cumpria rigorosamente todos os acertos. Por esse motivo era igualmente respeitado e odiado, o que ele compreendia perfeitamente, pois sabia que num país como o Brasil, repleto de vícios e não inteiramente democrático, a objetividade ou seja lá o que outro nome usassem, era uma virtude menor frente a dissimulação. E a dissimulação brasileira se parecia muito de perto com aquela cobiça infantil, quase uma volúpia inocente, que ele sentia observando os doces defendidos pela vidraça” da Confeitaria Colombo (21). 
     Além da dissimulação, outra “virtude” brasileira se apresentara como a mais difícil de contornar - o espírito de conciliação: 
     Os brasileiros eram aventureiros mas cultivavam outra coisa pior que a aventura, os brasileiros adoravam a conciliação. Considerava a conciliação incompatível com a civilização moderna. O mundo moderno, para construir e produzir riquezas, devia evitar a conciliação, as rupturas eram necessárias e nada devia estancar no meio quando uma das partes apresentava condições de sair lucrando. Nos seus lances de vigarice a conciliação encontrava-se impossibilitada de sobreviver. As leis internas da vigarice eram rígidas como num jogo de xadrez, o azar e a imponderabilidade deviam ser banidos a níveis desprezíveis. Na vigarice, livre da violência física, não havia também espaço para negaças e manhas. A trapaça era tão respeitável porque resultava por alguma coisa parecida com a manifestação divina. Mas no Brasil raramente alguém se iluminava pela pura trapaça, a violência afastava a sofisticação quase mística da vigarice (152-3). 
     Tem-se, de um lado, a sofisticação da vigarice científica aliada à seriedade da trapaça planejada. Tudo muito asséptico, muito correto, ordeiro, sério, objetivo, funcional,  eficiente. Do outro, a moralidade, a dissimulação, o aventureirismo, o carreirismo, o espírito conciliador, o nacionalismo e a violência física - antíteses e entraves da modernidade - num convívio com a modernização da cidade do Rio de Janeiro que se processava pelas mãos de Passos. Nessa mesma cidade que tinha suas ruelas dando lugar a largas avenidas, casarões seculares sendo substituídos por construções modernas, aninhavam-se as duas mentalidades. Percival Farquhar e seus auxiliares como Mackenzie. Hermes da Fonseca, Ruy Barbosa, Coronel Agostinho, Alberto Torres e o ministro J. J. Seabra. 
     O Brasil vivia seu momento de transição política, mas a mentalidade ainda estava fortemente ligada a velhas estruturas oligárquicas. A República não conseguia manter-se apesar da obstinação prussiana do Presidente Hermes. “O marechal estava cada dia mais confuso com a situação política nacional, enleado pelas maquinações das oligarquias estaduais” (122). Moralista, não admitia a prática do adultério por seus auxiliares, motivo que o levou a demitir o Major Quintanilha, seu ajudante-de-ordens da Casa Militar, o primeiro a cair na armadilha preparada por Farquhar. 
     Aos poucos o capitalista norte-americano se aproxima do novo governo. Afinal, vários projetos estavam paralisados. O golpe mais seguro foi oferecido pelo Ministro de Viação e Obras Públicas, o pernambucano J. J. Seabra, que cancelou a concessão da Southern Brazil Lumber and Colonization Company, no Paraná, cujo diretor-presidente fora o cel. Agostinho, agora substituindo o Major Quintanilha, e homem de confiança do presidente. 
     Avesso à violência, Farquhar aquiesce em sequestrar a amante de J. J. Seabra, para obrigá-la a denunciar o ministro como corruptor e assim prejudicar seu ralacionamento junto à presidência. O plano malogra pois a amante se recusa a cooperar, apesar de ter também um caso com o americano. Entra em cena o estilo de Seabra. Um dos associados de Farquhar é surrado a mando do ministro. O conhecedor das manhas brasileiras, Ruy Barbosa, é procurado pelo capitalista e traça novo plano: ao invés de denegrir a moral de Seabra, reabilitá-la. O relatório falso do cel. Agostinho dissipa os boatos sobre a amante do pernambucano e o reaproxima do presidente. 
     Aquele homem rico, “inimigo dos oligarcas passadistas”, proveniente de uma tradicional família de Pernambuco, político experimentado, rebento de “uma geração de citadinos senhores de engenho”, se deixa dobrar, passa a receber o apoio de Farquhar à sua candidatura ao governo da Bahia e dá-lhe a concessão da Southern Brazil Lumber (117 e 112). “A violência tinha sido dominada, os sinais reduzidos a pó, ele [Farquhar] agora tinha pela frente a sua política predileta” (241). 
     O alvo agora é Alberto Torres, “fervoroso nacionalista” (286). Seus artigos inflamados contestavam a lisura da concorrência da Madeira-Mamoré. Era contrário à tese de que a agressividade do meio ambiente amazônico era responsável pelo alto índice de mortalidade dos trabalhadores. A causa residia na “absurda e cruel organização de trabalho que oferecia condições desumanas de sobrevivência, onde um homem sadio somente podia aspirar, em tal situação, não mais do que noventa dias de vida” (287). 
     Este homem representava, realmente, um problema sério para Farquhar. Era incorruptível. A saída para contornar e abafar denúncias mais uma vez é dada por Ruy. Torres obtivera aquelas informações de segunda mão. Era necessário que parlamentares conhecessem a obra e rebatessem as críticas enquanto testemunhas oculares “que somente verão o que for conveniente para vocês”, diz Ruy (292). 
     A aliança Ruy/Farquhar fora providencial. Vaidoso, dissimulador, “anti-americano em Haia, pró-americano no Senado e sem posição nenhuma no final das contas”, era o tipo acabado para introduzir o americano em um país de mentalidade tão eclética  (51). “Farquhar já tinha aprendido que não era um bom negócio ser violento com a classe dominante, no Brasil os poderosos estavam se mantendo lá em cima há muito tempo pelos métodos violentos e sabiam o que estavam fazendo” (178). Por esse motivo pretendia dosar a vigarice com os métodos brasileiros. Para ele Ruy era “um dos poucos brasileiros capazes de juntar a modernidade, como fazia com o timbre em moderna tipografia, e a reserva à moda antigas, reconhecida no lacre vermelho esmagado por um sinete” (36). Aos favores recebidos pagara com outro: enviou uma amante do advogado - Luiza Rosalvo -, para trabalhar na sua Companhia de Eletricidade em São Paulo. Ela estava se tornando muito exigente e quase um estorvo. 
     O plano de Ruy surte efeito. A viagem a Porto Velho fora um sucesso. Além de Farquhar e sete políticos, a comitiva somava cinqüenta pessoas “entre esposas, amantes, criados e outros agregados” (292). O dr. Montenegro, senador pelo Amazonas, encerrou a “fase dolorosa dos discursos” recitando uma estrofe de Olavo Bilac (313). Ainda dentro da programação constava uma apresentação do pianista índio Joe caripuna, grande atração do Cassino de Farquhar, o “índio-vitrine” na expressão de Hardman, cujas proezas com os pés não rendeu o lucro esperado pelo capitalista no Rio de Janeiro (Hardman, 1988:16). A recompensa surgiu quando foi vendido para ser atração nos Estados Unidos.
 
     Sem entender as “novidades” ocorrendo ao seu redor, no início da narrativa, o índio é um olho crítico, somente um olho ou uma consciência. Não compreendia aquele trabalho feito com tanto desespero “embora estivesse sempre por perto, não fazia parte daquele mundo que agora estava invadindo as terras que pertenciam ao seu povo nos tempos dos antigos costumes e que os velhos falavam com emoção” (Souza, 1980:19). 
     Último remanescente de um povo pacífico, vira sua família ser exterminada pelo “civilizado”, as mulheres mortas ou prostituídas em Santo Antonio, no Abunã; os poucos homens, alcoólatras ou seringueiros. Sem mais ninguém, sentindo-se invisível, tudo o que tinha era fome, muita fome. Às vezes ele conseguia roubar comida dos civilizados e devorava sem mesmo sentir o gosto (...) Era um homem magro, pele flácida e terrosa, tinha perdido o viço moreno de sua raça. (...) cada dia regredia para um estágio em que as sensações pouco contavam, estava envilecido. O ato de roubar os civilizados não tinha para ele nenhuma conotação real de roubo. Ele tirava dos civilizados o que lhe fascinava (...) Estava vestido com um calção puído e sujo e não tirava aquilo há mais de um ano (...) Não sabia que o calção, presente dos civilizados que andavam com o Pai Rondon, podia ser lavado. (...) Ele fedia muito mas não percebia, tinha perdido também o poder de sentir seu próprio cheiro. Inteiramente isolado no mundo, ele gravitava em torno dos civilizados e contentava-se com as sobras deles. Não tinha ilusões, nem sonhos, nem mesmo esperava um dia se tornar pelo menos amigo dos civilizados. Outros irmãos seus tinham tentando  e haviam morrido ou agora andavam trabalhando duro em Santo Antônio, bebendo muito e sem mulheres. O fato dos civilizados viverem sem mulheres lhe dava a certeza de que sua possível aceitação no meio deles era impossível. (...) Sem a ponte da mulher ele não alimentava ilusões (66). 
     Síntese do extermínio de inúmeras Nações indígenas, a história desse índio “capiruna”, designação inventada pelo civilizado, comprova o processo de devastação física e cultural que se verificou no Amazonas a partir do momento em que a região foi invadida pelo colonizador. Flagrado roubando uma tenda, tem suas mãos decepadas pelos trabalhadores da ferrovia, o exército de reserva pretendido pelo capitalismo internacional. 
     A historia de vida do índio embrica-se com a de Consuelo exatamente no momento em que ambos perdem algo. Ela, o marido - vendedor de partituras e instrumentos musicais em Sucre -, e o piano de cauda importado da Alemanha, sonho jamais realizado, ambos tragados pelas fortes corredeiras do Ribeirão no Abuña. Nova vida se abre para os dois. Da pacatez habitual, são jogados no redemoinho das obras da Madeira-Mamoré. Consuelo se deixa possuir por Finnegan, numa tentativa de recomeço, mas é descartada pelo médico; o índio, já alcunhado de Joe Caripuna, aproxima-se daquela mulher que se-lhe apresentava como a concretização da possibilidade de sua própria sobrevivência. 
     Consuelo chegara a odiar o médico, ele lhe vira nua, não exatamente nua porque a despira quando tinha chegado desacordada, mas nua como um suspiro, um sopro, um segredo revelado à força. Mas Finnegan parecia onipresente, estava ao seu lado quando ela abria os olhos e os seus pensamentos giratórios lhe pediam para abandonar a vida (162). 
     O índio, por outro lado, ainda que mutilado,  
fazia brincadeiras e jamais de lamentavas pelo fato de não ter mãos, era como nunca tivessem existido e não fizesse falta. (...) Consuelo gostava dele, ele não se afogava em ectoplasmas, tinha coragem ou qualquer coisa parecida. Fosse lá o que fosse, ele lhe empurrava e lhe obrigava a reconsiderar a vida. Os dois ajudavam-se sem que um nada pedisse ao outro, viviam amparados, uma simbiose de sofrimentos que lutava para retomar o destino que parecia torto (162).
      O idealista Finnegan, autocompadecendo-se de sua própria sorte, reconhece em Joe Caripuna  
uma força, uma energia muito especial que lhe escapava e que tornava aquele homem sem mãos diferente de todos. Não era passividade, nem conformismo perante a tragédia, o índio era possuidor de um aprumo emocional que lhe deixava surpreso. (...) perante o índio, as tragédias ficavam reduzidas às devidas proporções, não eram mais tragédias e sim um esvaziamento, um esquecimento do sagrado. O índio tinha alguma coisa de sagrado, pequenos deuses que lhe completavam as mãos ausentes. (...) O índio era uma coisa completa, não exatamente uma coisa, uma personalidade cujas mãos haviam se tornado invisíveis e por isto mais presentes do que antes. Sou incompleto e tenho mãos, pensava Finnegan, não mereço a compaixão que sinto por mim mesmo. (...) Este índio me estremece porque ao preencher-se na incapacidade anula as minhas comiserações. (...) Eu tenho minhas mãos, tenho meu povo, não sofro de verdade. (...) Finnegan era um homem de boa vontade e por isto estava se fodendo. A única opção lhe parecia aderir à vigarice, embora o índio invadisse o mundo pela porta perigosa da coragem. (163-4).
      Logo que chega ao Abunã, Finnegan ainda é um profissional preocupado em redigir relatórios médicos. É na brutalidade da vida à qual é lançado, que tem origem sua metamorfose. O Finnegan que aparece ao final do romance tem sua violência detida pelo engenheiro Collier, inglês aposentado, experimentado em construção de ferrovias, convidado por Farquhar para dirigir as obras da Madeira-Mamoré. Sua única obsessão restringia-se à conclusão da ferrovia. Insensível, matava os desordeiros cujos atos pudessem prejudicar o andamento dos trabalhos. Comovia-se com a sorte da antecessora da Mad Maria, quase enterrada na lama, abandonada pelo cel. Church nos idos de 1870. Irritava-se ainda ao lembrar a resposta de Farquhar a uma pergunta sua sobre o por que da construção de “uma estrada de ferro entre o nada e o nada. (...) Porque isto pode ser tão lucrativo quanto um ato de Deus. (...) Este era o seu destino, entregar-se nas mãos dos filhos da puta do tipo Farquhar” (255). 
      Poder-se-ia dizer que Collier era possuidor de um tipo de modernidade irracional/racional ou seja, a imagem acabada de um tecnocrata, enquanto que Finnegan representa, no início da obra, um tipo de modernidade racional que prevê um processo de aperfeiçoamento gerador e continuador do progresso mas que, aos poucos, não nutre mais nenhuma ilusão quanto aos objetivos primeiros que o levaram a trocar um confortável consultório montado pelo pai em Saint Louis, pela possibilidade de estudar doenças parasitológicas nos confins do Amazonas.  
- Fique tranqüilo [responde Collier a Finnegan] que eu não vou andar por aí passando receitas ou tomando o pulso de ninguém. Se estou obrigando essa gente a engolir uma pílula com uma winchester nas costelas não é por me preocupar com a saúde de ninguém. Eu quero é que essa escória morra, mas antes executem (sic) o trabalho conforme o planejamento. (...)
- Eu estou entendendo. (...) no fundo o senhor é um bom homem.
- Se há uma categoria que me deixa irado é esta de “homem bom” (143).
      A imaturidade de Finnegan inibe a tomada de consciência de há muito alicerçada na vida de Collier. Diz este ao médico:  
- Vocês, americanos, acabaram com os pioneiros (...) Ser pioneiro agora é ser caçador de índios e pistoleiro metido a puritano.
- O mundo estava precisando de um pouco de ordem, ironizou Finnegan.
- Bravo, menino. A velha mania de grandeza , tão cara do Império Britânico, não podia continuar. O saque agora precisa de ordem.
- Quem falou em saque?
- Eu falei, é o que estamos fazendo aqui, você não sabia?
- Deixa de merda, Collier. Estamos aqui trabalhando.
- Trabalhando? Eu nunca deixei me enganar.
- Foi por isso que você sacou o revolver para os alemães?
- Porque eu sou um profissional. E daria um tiro no primeiro que se metesse a bobo.
- Você é um engenheiro, Collier, não um policial.
- É a mesma coisa!
- Não concordo. Você e eu trabalhamos pelo progresso.
- Um caralho! Quer saber o que significa para mim o progresso? Uma política de ladrões enganando países inteiros. Birmânia, Índia, África, Austrália, os nossos alvos.
- Mas nos estamos deixando a nossa marca.
- É claro que estamos deixando a nossa contribuição. Ao lado da cadeia de tijolos, está a escola para formar funcionários nativos subalternos. Nós não nos esquecemos nem de ensinar os jovens nativos o futebol. E aprendem a beber uísque, principalmente a beber uísque. Enquanto isso, nos clubs dos pukkasahibs, nós repetimos ano após ano a mesma conversa. E enchemos a cara enquanto enriquecemos, enquanto destruímos tudo, enquanto espalhamos os nossos próprios vícios.
Collier sentiu que Finnegan não concordava.
- Não pense que os americanos são diferentes, as coisas não mudaram nada com vocês. A única diferença é que vocês não terão de agüentar  os nativos, nós deixaremos nativos tão corruptos que considerarão natural a supremacia de vocês. 
(.........)
- E a Bolívia precisava de uma saída para o mar?
- Isto não tem nenhuma inportância . Quem é a Bolívia para precisar de alguma coisa?
- Não consegui entender nada!
- Nem eu, não é para entendermos, rapaz.
- Mas as coisas precisam ficar claras.
- Elas são claras, claríssimas.
- E como é que nós não entendemos?
- Porque eu não sou o Barão de Rothschild e nem você é Percival Farquhar (257-8).
       A irracionalidade do profissionalismo de Collier é a própria conseqüência da racionalidade do profissional ou, melhor dizendo, o capital não admite a desordem porque não pode conviver com a falta de projetos, números e datas. A estatística é sua desculpa. Collier matava quem se interpunha entre o calendário e a obra. É a eleição da irracionalidade para a implantação da racionalização. A máquina não pode parar. O exército de homens tem que ser reproduzido, recomposto para fazer avançar o capital. Collier alienou-se à necessidade da modernidade via expansão do capitalismo concretizada nas inúmeras construções de ferrovias que dirigiu. Reificou a modernidade e tornou-se escravo sem usufruto de seus benefícios. 
     Não foi a natureza insalubre, selvagem, exótica dos locais onde trabalhou que o levou à alienação, mas o movimento do capital. A eficiência aliada à falta de escrúpulos, à desumanidade, foram seu cartão de apresentação mesmo depois de aposentado. Tinha consciência da devastação que o capital promovia por onde quer que passasse, mas não era nenhum Rotschild para entender esse movimento. Sabia que era bucha de canhão nesse processo, mas sua força de trabalho já não mais lhe pertencia. Tornara-se peça daquela engrenagem. 
     A outra face da moeda é Finnegan. Sem a experiência de Collier, acreditava ser possível modificar o percurso do capital e, ingenuamente, dava a ele uma nacionalidade. Acrescentava-lhe virtudes que pensava pudessem emanar do esboço de solidez apregoado pelo progresso e pela ordem, quais dádivas singelas para o combate das moléstias, pré-requisito para a implantação da modernidade, da civilização.Reconhecendo a fluidez de suas ilusões, ele é mais uma peça impedidora do decréscimo da força de trabalho concretizada na distribuição do quinino:  
Collier aparece e segura Finnegan pela mão que porta o ameaçador revólver. (...)
- Chega, Finnegan. Assim você vai acabar com a minha mão de obra, rapaz.
Três homens se contorcem no chão, malferidos, e seis morreram ao receber a descarga de winchesters. O sangue escorre pela poeira, empapando a terra e sumindo para baixo dos dormentes. Finnegan passa a mão no queixo dolorido e olha para o engenheiro. Collier sacode a cabeça e Finnegan vê naquele gesto uma ponta de ironia. Pouco se importa, a ironia, o deboche e a irreverência de Collier já não mais lhe tocavam, o que era uma pena.
      Junta sua arma que caiu no chão, limpa a poeira e recoloca-a no coldre. O suor escorre pelo pescoço e Finnegan sente-se cansado. O máximo que ele podia sentir agora era cansaço, muito cansaço, pois só os bobos podiam se importar com alguma coisa além da arte de ficar vivo (343-4).
      A modernidade brasileira não deixa de ser, na verdade, a moderna tradição brasileira, como denominou Ortiz a seu livro homônimo. É uma modernidade que se delineia sobre os ainda robustos alicerces de uma tradição oligárquica rural, responsável pela irresolução de problemas tornados crônicos porque oriundos de processos concretizados pela metade e, desta forma, impedidores de que rupturas profundas se efetivassem. 
     J. J. Seabra e Ruy Barbosa, personagens secundárias de Mad Maria, mimetizam essa realidade. A primeira, mesmo que pertencendo a “uma geração de citadinos senhores de engenho”, ainda utilizava os métodos violentos de seus antepassados para fazer calar o adversário: “podia ordenar uma agressão até mesmo um assassinato com a mesma expressão benevolente com que participava nos freqüentes batizados e crismas onde ampliava a sua clientela” (Souza, 1980: 112 e 151). 
     A outra, Ruy, era um citadino experimentado nos meandros tortuosos da política brasileira. Aprovava ou rejeitava pareceres jurídicos segundo seu estado de espírito, decorrente de uma vaidade exacerbada, obnubiladora das realidades e novidades oriundas do novo regime político por que passava o país. Não é à toa que o narrador chama a atenção do leitor para uma carta enviada por ele a Farquhar, onde conviviam duas mentalidades incompatíveis: o moderno timbre tipográfico esmagado pelo lacre passadiço. 
     A incorruptibilidade de Alberto Torres não se reproduz no meio daquela política de interesses pessoais, oligárquicos, provincianos, que deixava aturdido o moralista Hermes da Fonseca. Elegendo o aprumo amoroso de seus auxiliares e flertando com as técnicas primorosas da modernidade, o idealismo moralizante era um qualificativo anacrônico diante das modernas abordagens do expansionismo do capital norte-americano. 
     Assim, pouco antes rejeitado, o capital ressurge mais vigoroso pelo governo que pretendia sanear as coisas públicas. Alimentado com a concessão fácil e abundante de verbas, o capital se espalha tentacularmente por todo o território nacional, exaurindo-o em nome de uma modernidade que se alimentava da mentalidade retrógrada de seus atores políticos. 
     O discurso de Farquhar para uma platéia de políticos em Porto Velho, atesta a violência de como se efetivou esse avanço:  
procuramos desempenhar a nossa tarefa com o afinco de uma guerra contra o crime que lesava as possibilidades de lucro cada vez maior. Derrubamos árvores seculares, enfrentamos e civilizamos selvagens que mourejavam na idade da pedra, aqui estamos trabalhando com a disposição de dar até a nossa própria vida porque é assim o gênio americano (311).
      Um dos selvagens remanescentes vai alimentar a curiosidade dos norte-americanos pelo exotismo do Terceiro Mundo. Joe e Consuelo, tornados amantes, são mandados para os Estados Unidos a fim de cumprirem uma série de shows. O índio pianista que executava com os pés a valsa de um minuto em trinta segundos, faz delirar a platéia com a execução do hino norte-americano e o parabéns pra você. A amputação sofrida por ambos é a metáfora de todos os povos que sofreram os efeitos do expansionismo do capital internacional. A aceitação da nova vida tem como sintoma a dolorosa amputação física e cultural dessas personagens. É a ruptura drástica exigida pelo progresso. “Consuelo perdera a inocência mas não conseguira adquirir a terrível e necessária frieza para viver entre aqueles homens” (316). 
     O médico Finnegan se degrada entre aquele sistema desumano de trabalho. Seu idealismo é tragado pelo sorvedouro de um processo que não admitia o respeito pelo homem, pois reificava o lucro e este só se efetivava com o sacrifício e anulação humanos. Collier abate como moscas os que entravavam o avanço da modernidade. De origem inglesa, esse dado esclarece o espírito irônico com que tratava a grossura e a burrica dos empregados norte-americanos, os mais graduados da ferrovia. Sua superioridade ante todos os incidentes que diuturnamente ocorriam na Madeira-Mamoré, era o atestado de uma experiência sedimentada por séculos de dominação, e que cedera espaço para outro domínio. Seus métodos, no entanto, não diferiam de outros. Era capataz do capital. 
     Pois é, para Farquhar, “a riqueza era uma coisa simples, estava próxima de um dos atributos divinos que era a facilidade de estar em muitos lugares ao mesmo tempo” (242). 
      Em Mad Maria há a eclosão explícita, em algumas passagens, de uma ironia exacerbada. O livro, todo ele, da temática à construção do texto, dos diálogos à caracterização das personagens, é todo construído em cima de uma fina e mordaz ironia, que leva o leitor a plagiar  os autores da frase: afinal, que país é esse? 
     O compasso narrativo é dado pelos cortes cinematográficos, as partes seccionando-se e embricando-se até formar um todo que convive com a modernização do Rio de Janeiro e a floresta amazônica, ainda vivendo seu período jurássico. Naquele cenário cenozóico, formigas pliocênicas convivem com borboletas oligocênicas; insetos silurianos aninham-se em árvores cretáceas. Impassível, a natureza assiste aquele exército de “maltrapilhos, abatidos, esqueléticos, decrépitos como condenados de um campo de trabalhos forçados” e não se deixa penetrar (18-8). Sobrevive, apesar da matilha lumpenizada que assenta dormentes de eucaliptos importados de Formosa. Não se subjuga. Vez ou outra mostra seu poder. Collier mata quem atrasa os trabalhos, enquanto que a natureza manda tempestades que destroem, em poucas horas, um trabalho de meses. 
BAUM, Vicki. A árvore que chora. O romance da borracha. Rio de Janeiro, Globo, 1946
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar.  São Paulo, Companhia das Letras, 1987.
HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma.  A modernidade na selva. São Paulo, Companhia das Letras, 1988.
ORTIZ, Renato. A moderna ficção brasileira. Cultura brasileira e indústria cultural. São Paulo, Brasiliense, 1988.
SOUZA, Márcio Bentes de. Mad Maria. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1980. 
(1) Não foi por acaso que o frei Gaspar de Carvajal sustentou em seu diário de viagem (século 16), ter visto mulheres guerreiras 0 as Amazonas -, ferocíssimas, atacarem os expedicionários. 
(2)Quando as citações forem extraídas do romance Mad Maria, somente serão colocados os números das páginas. 

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