Naquela mesma noite Ribamar de Souza se instalou no porão. Encontrou abandonado o Armazém, e durante todo o dia em que ali esteve não se fez nenhum negócio. Era como se a peste desabasse sobre Manaus. A crise se demonstrava naquele silêncio quente, ao pôr-do-sol, luzes moribundas, o apagar do apogeu capitalista. A Amazônia ficou sem 80% da sua economia, um deserto morto, estéril, sobre a planície encharcada numa crise que durou meio século. As famílias ricas partiam para Paris, Lisboa. Quem ficou, estava como que morto. Fortunas colossais se reduziram a pó. Maurice Samuel, um dos ricos, perdeu até os móveis de sua casa, penhorados, e mudou-se para uma pequena casa alugada na Silva Ramos. Jóias eram vendidas a qualquer preço. Mulheres ficavam viúvas, passavam a costurar, para sobreviver. O capital desapareceu. Tudo o que era sólido se desfazia no ar e ruía como um castelo de cartas. O Teatro Amazonas foi abandonado, transformado em depósito de borracha velha. O que sobrou foi muito pouco, mas era o que eu mais amava.
D. CONSTANÇA tinha sido educada para ser uma boneca inútil. Exagerara e ficou louca. Magrinha, baixinha, nervosinha, logo que a beleza desapareceu, parecia uma bruxa, ogra, rosto pálido e plano no centro do qual avultava o nariz curvo e o risco de faca reto da boca, aberta a golpe fino, sem lábios. Os olhos graúdos piscavam muito, muitíssimo. D. Constança se abanava com o leque, como se a queimasse um fogo interior. E tinha péssimo caráter, bastava a pessoa dar as costas para que ela começasse a retaliação. Voz fina, língua viperina. Olhar de fuzilante ódio. Os seres das classes inferiores eram “gentinha“, não existiam. Pedro Alonso, no dia em que perdeu a Inspetoria do Tesouro, foi cortado da lista de um jantar quando já tinha saído de casa (soube no caminho). Ela era o ponteiro da seleção social: Aristides Lourenço, pessoa a quem nunca cumprimentou, viu-se um dia com um inesperado convite nas mãos pois que eleito para o Conselho Municipal. D. Constança, cheia de amabilidades durante todo o seu mandato, voltou-lhe as costas quando ele não foi reeleito e retomou ao humilde cargo de revisor na Imprensa Oficial. D. Constança discriminava abertamente, sem disfarce.
Nunca teve uma amiga. Começava a falar de todas logo que fechava a porta da rua. Falava para Juca das Neves, falava muito rapidamente, a voz nervosa, fina, angustiada. Passava horas e horas em fofocas, maledicências, escondendo-se atrás de portas para ouvir, entreabrindo janelas para espiar. Vestia as pessoas com tudo o que pensava a respeito, a todos nutrindo um ódio que a corrompia por dentro. Era mesmo capaz de longa viagem pelo prazer de «saber». Sua face então se irradiava, seus olhos brilhavam, ela delirava. “Não me diiiiga, querida ...“. As novidades a mantinham viva. E o que ela não sabia a torturava, contratava pessoas para saber - “tenho de saber, juro que vou saber” - a sua vida dependia de informações, assim que diziam que Juca das Neves era meio surdo por causa da fina e incessante voz, que feria os tímpanos, com seu timbre cruel dissimulado na vozinha de menina indefesa. E durante o almoço D. Constança falava ininterruptamente, sem pausa, sem respirar, como se as palavras lhe queimassem a boca, o patati-patatá metálico, falando da vida alheia, e abanando-se, frenética, falando, e abanando-se, e falava junto ao marido, sussurrando-lhe ao ouvido, cutucando-o por baixo quando alguém se aproximava, e abanava-se, e era gentil e educada. O leque e a tagarelice maledicente alcançaram o seu maior esplendor na pessoa magra e franzina de D. Constança!
Pois à medida que foi envelhecendo foi ficando pior. Começou a falar e abanar-se sozinha, sentada na cadeira de balanço onde se abanava e falava até tarde da noite. E sozinha falando, falando, e abanando-se, abanando-se, os olhos se fixaram numa característica sua, que era o “rabo de olho”, como ela dizia, já não olhando de frente para ninguém, não encarando ninguém, o olhar fixo nos lados e cantos das órbitas como se sempre procurasse ver e ouvir algo que se passava pelos lados e atrás, um olhar congelado numa expressão de ódio, e até hoje me lembro dela assim sentada, olhando para os lados e para trás, como cercada de inimigos, abanando-se frenética e falando aflita, falando mal de seres imaginários, de pessoas que já tinham morrido há muito e sozinha, esquecida...
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