domingo, 24 de junho de 2007



A GARÇA

Rogel Samuel


O sol na linha do horizonte é uma bola de fogo.Do outro
lado está a Ilha do Fundão. E a lua. Estou indo para o
aeroporto. O mar estende seu manto por toda parte. Uma
leve aragem vem vindo devagar. Mas o calor se anuncia.
Pássaros pelo ar sujo. Quando jovens, nadávamos naquela
praia, hoje vala negra. No caminho do Galeão havia uma
praia que desapareceu. Diziam que ali estavam as
perigosas aranhas viúvas negras. Mortais. Meu amigo pescava ali.
Fomos, pelo meio do capim, até uma outra ilha, hoje
desaparecida. Na Freguesia havia um cinema de espelhos.
Era o mais belo cinema do Rio. Havia espelhos de cristal
até no teto. Os astros. À noite:

A gentileza da lua
no espelho das águas
brilha, nua.

Quando eu cheguei ao Rio, vindo do Norte, passei por ali.
Trazia esperanças e a juventude dos dezoito anos.
Tinha uma carta para o Diretor Comercial da TV Rio,
escrita por sua irmã e minha amiga Alice Senna. Logo
ganhei um emprego na Redação da TV, onde trabalhavam
vários rapazes desconhecidos, hoje famosos. Mas não
fiquei muito tempo no emprego, porque o trabalho era de
noite e eu tinha aula na Faculdade pela manhã. A TV ficava
no Posto Seis, defronte do mais belo mar. Foi lá que vi
Juscelino pela primeira vez. Alguns anos depois ele falou
na nossa FNFi. Entrou sob vaia. Demorou para conseguir
iniciar. Sua fala durou uma hora. Depois respondeu às
perguntas, todas contra. Não perdia o sorriso, a gentileza.
Foi o homem mais educado que conheci. Saiu dando
autógrafo.
Naquele mesmo salão devia falar Lacerda, como paraninfo
da ala da Direita que se formava. Nós o impedimos de
entrar. Fechamos as portas. Lá de cima, gritávamos:
"assassino!" Lacerda, impaciente, do outro lado da rua,
mandou que a PM arrombasse a porta. Nós chamamos o
Exército... de Jango. Foi terrível: de um lado o Exército,
armado. Do outro a PM, com o Governador Lacerda.
Penso que o Golpe de 64 nasceu ali, no meio da rua, em
frente ao prédio da Faculdade Nacional de Filosofia, hoje
Casa de Itália. Depois, os dois comandantes se
encontraram e evitaram o pior. O Exército se retirava, e a
PM também se retirava, mas sob grande vaia. Lacerda,
inconformado, queria briga. Pouco tempo depois a tropa invadiu o prédio, quebrou tudo, bateu e prendeu. Ainda bem que, naquele dia, eu não estava ali.
Mas perdemos a máquina datilográfica do centro de
estudos, e os discos clássicos da discoteca. Até mulher
grávida apanhou.
A política daquele tempo era assim. Assisti a Jânio
Quadros em Manaus, na sua campanha à Presidência.
Havia um palanque montado em frente à nossa casa, na
Getúlio. Primeiro falou Plínio Coelho, hoje ainda vivo. Tinha
a voz nasal e era um famoso orador. Depois Jânio. Os
grande olhos abertos, a voz rouca. Alucinado, abria os
braços com que dominava tudo. Como Hitler, batia
frenético na plataforma: "O Brasil... já tem idade... de
deixar de viver... da caridade internacional!" Era um
delírio.
Impressionante foi ouvir o velhíssimo Sobral Pinto na
abertura das "Diretas-Já!" Já estava curvado, já era muito
frágil. "Silêncio!", ele disse. "Peço silêncio! Quero falar em
nome do povo do Brasil!"
A branca e bela garça sobrevoa e baila, alcançando o
escuro campo onde reina. Será mesmo uma garça? Ou
será uma deusa tecida de estrelas? A massa de sua luz no
céu subitamente se abre e desce, sobre a penumbra do
Universo. E eu me esqueço. Me esqueço.

Um comentário:

Giovani Iemini disse...

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