terça-feira, 15 de janeiro de 2008
QUE IMPORTA O AREAL E A MORTE E A DESVENTURA?
A leitura do romance histórico de Aydano Roriz, O DESEJADO, me fez reler a terceira parte da MENSAGEM de Fernando Pessoa.
'Sperai! Cai no areal e na hora adversa
Que Deus concede aos seus
O romance me surpreendeu. Em vários pontos.
O autor diz que o jovem rei era hermafrodita, e por isso não se casou.
Seu cadáver foi embalsamado em Marrocos, e anos mais tarde resgatado por Felipe de Espanha.
Oh, tudo é mistério, e não 'haverá rasgões no espaço / que dêem para outro lado'...
Romance intrigante, momentos de rara beleza. Mas volto ao mito. Prefiro o mito.
Sou, a meu modo, um sebastianista: Durante 15 anos minha amiga X. pagou todas as prestações de seu apartamento com a pontualidade que somente mulheres honestas sabem ter, e ao fim e ao cabo o Banco (particular, o maior do Brasil) lhe disse que ainda devia o preço total. Ela não tinha o dinheiro: Não consegui convencê-la do contrário - ela vendeu o imóvel e pagou pela segunda vez a mesma dívida... (mais pagaria se não fosse, para tanto pagar tão curta a vida...). Por isso Camões entregou seu poema a D. Sebastião.
O jovem rei no livro é rapaz extremamente religioso, pudico, puritano, que se delicia em matar porcos na cozinha, em assistir às sessões de tortura, ao suplicio dos condenados. Havia condenados pelos mais extremos e hediondos crimes, como o crime da masturbação etc.
A obsessão do rei de matar-mouros lembra certo presidente de nação distante, hoje. Conflito que vem de longe, entre nossa boníssima civilização cristã e a dos cruéis árabes pagãos. Mas:
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Devemos a D. Sebastião o nome da nossa cidade do Rio de Janeiro.
Quem vem viver a verdade
Que morreu D. Sebastião?
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Acabo de assistir ao filme de Karim Ainouz, Madame Satã. Quase um grande filme. Fotografia luxuosa. Cenário da Lapa fantástico. O jovem ator Lázaro Ramos convence em tudo. Ainda não vi Cidade de Deus, filme extraído do romance de Paulo Lins, meu ex-aluno na Faculdade de Letras da UFRJ. Conheci João Francisco dos Santos, ou Madame Satã. Na Ilha grande, onde acampei no início dos anos 70. Já bem velho, mais de 70 anos, ainda bem forte.
O filme, porém, não deprime, é positivo, levanta o moral brasileiro. É apologia do espírito nacional. As cenas de sexo nada acrescentaram porém, e umas senhoras da platéia muito se incomodaram com elas. Mas não é nada explícito, somente beijos e navalhadas. Madame Satã, afinal, morreu velho, realizado, em paz, no Abraão, povoado da Ilha Grande, onde o vi. Feliz.
Hoje teria sido logo morto. Não antes sem uma sessão de tortura piedosa.
Satã deve ter sido descendente de rei africano: orgulhoso, imbatível, não se curvava. Nem à polícia. Duplamente discriminado, foi uma espécie de Zumbi na Lapa. Em suas memórias, ditadas a um jornalista do Pasquim, ele não fala de seus amores, de sua privacidade.
Num país onde a discriminação é mais forte hoje do que naquele tempo devido a Aids, ele era fiel a si mesmo, preferia a morte à humilhação.
O filme não conta que pôs a nocaute vários marinheiros, que invadiu uma delegacia para quebrar cara de delegado, etc.
Talvez seja Mito.
Prefiro o Mito.
No imenso espaço seu de meditar,
Constelado de forma e de visão,
Surge, prenúncio claro do luar,
El-Rei D. Sebastião.
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