quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

ERNEST CASSIRER




ERNEST CASSIRER

UMA CHAVE PARA A NATUREZA DO HOMEM: O SíMBOLO

O BIOLOGISTA Johannes von Uexkül1 escreveu um livro em que procede a uma revisão crítica dos princípios da biologia. De acordo com UexküI (NOTA l), a biologia é uma ciência natural, que precisa ser desenvolvida por meio dos métodos empíricos usuais - os da observação 'e experimentação. O pensamento biológico, por outro lado, não pertence ao mesmo tipo do pensamento físico ou do químico. Uexküll é um resoluto campeão do vitalismo, defendendo o princípio da autonomia da vida. A vida é uma realidade final e dependente de si mesma. Não pode ser descrita nem explicada em termos de física ou de química. Partindo deste ponto de vista, Uexküll desenvolve um novo esquema geral de pesquisa biológica. Como filósofo, é idealista ou fenomenalista. Mas seu fenomenalismo não se baseia em considerações metafísicas ou epistemológicas, mas, antes, em princípios empíricos. Como ele assinala, seria de um dogmatismo muito ingênuo a presunção de que existe uma realidade absoluta de coisas, idêntica para todos os seres vivos. A realidade não é uma coisa única e homogênea; imensamente diversificada, possui' tantos padrões e planos diferentes quantos são os organismos diferentes. Todo organismo, por assim dizer, é um ser monadário. Tem um mundo próprio, porque tem uma experiência própria. Os fenômenos que encontramos na vida de certas espécies biológicas não são transferíveis para nenhuma outra espécie. As experiências - e portanto as realidades - de dois organismos diferentes são incomensuráveis entre si. No mundo de uma mosca, diz UexküIl, só encontramos "coisas de moscas"; no mundo de um ouriço do mar só encontramos "coisas de ouriços do mar".
Partindo desta pressuposição geral, Uexküll desenvolve um plano originalíssimo e engenhoso do mundo biológico. Desejando evitar todas as interpretações psicológicas, segue um método inteiramente objetivo ou behaviorista. A única chave para a vida animal nos é proporcionada pelos fatos da anatomia comparada. Se conhecermos a estrutura anatômica de uma espécie animal, possuiremos todos os dados necessários à reconstrução de seu modo especial de experiência. Um estudo cuidadoso da estrutura do corpo animal, do número, da qualidade e da distribuição dos vários órgãos dos sentidos e das condições do sistema nervoso, nos dará uma imagem perfeita do mundo interior e exterior do organismo. Uexküll principia suas investigações com um estudo dos organismos inferiores; estendeu-as gradativamente a todas as formas da vida orgânica. Em certo sentido, recusa-se a falar em formas inferiores ou superiores de vida. A vida é perfeita em toda parte; é idêntica, tanto no menor como no maior dos círculos. Todo organismo, até o mais rudimentar, não só se acha adaptado, num sentido vago (angepasst) ao seu meio, mas também inteiramente coordenado ( eingepasst) com seu ambiente.
De acordo com sua estrutura anatômica, possui certo Merknetz e certo Wirknetz - um sistema receptor e um sistema destinado a responder à estimulação. Sem a cooperação e o equilíbrio destes sistemas o organismo não poderia sobreviver. O sistema receptor, pelo qual uma espécie biológica recebe os estímulos externos e o sistema pelo qual reage a ele estão, em todos os casos, intimamente interligados. São elos da mesma cadeia, descrita por Uexküll como o círculo funcional (Funktionskreis) do animal. (Veja Johannes von Uexktill, Theoretische Biologie (2.' edição, Berlim, 1938); Umwelt und Innenwelt der Tiere 0909; 2.' edição, Berlim, 1921).

Não posso entrar aqui na discussão dos princípios biológicos de UexküIl. Referi-me tão-somente aos seus conceitos e à sua terminologia a fim de formular uma pergunta geral. Será possível utilizar o plano proposto por Uexküll para uma descrição e caracterização do mundo humano? É evidente que este mundo não constitui exceção às regras biológicas que governam a vida de todos os outros organismos. Entretanto, no mundo humano encontramos uma nova característica, que parece ser a marca distintiva da vida humana. O círculo funcional do homem não foi apenas quantitativamente aumentado; sofreu também uma mudança qualitativa. O homem, por assim dizer, descobriu um novo método de adaptar-se ao meio. Entre o sistema receptor e o sistema de reação, que se encontram em todas as espécies animais, encontramos no homem um terceiro elo, que podemos descrever como o sistema simbólico. Esta nova aquisição transforma toda a vida humana. Em confronto com os outros animais, o homem não vive apenas numa realidade mais vasta; vive, por assim dizer, numa nova dimensão da realidade. Existe uma diferença inequívoca entre as reações orgânicas e as respostas humanas. No primeiro caso, a resposta dada a um estímulo exterior é direta e imediata; no segundo, a resposta é diferida. É interrompida e retardada por um lento e complicado processo de pensamento. A primeira vista, este atraso pode parecer uma vantagem. muito discutível. Inúmeros filósofos lançaram advertências contra este pretenso progresso. "L'homme qui médite", diz Rousseau, "est un animal dépravé": não se aprimora, mas se deteriora a natureza humana quando ultrapassa as fronteiras da vida orgânica. Entretanto, não existe remédio contra essa inversão da ordem natural. O homem não pode fugir à própria consecução. Não pode deixar de adotar as condições da própria vida. Já não vive num universo puramente físico, mas num universo simbólico. A linguagem, o mito, a arte e a religião são partes deste universo. São os vários fios que tecem a rede simbólica, a teia emaranhada da experiência humana. Todo o progresso humano no pensamento e na experiência aperfeiçoa e fortalece esta rede. Já não é dado ao homem enfrentar imediatamente a realidade; não pode vê-Ia, por a~sim dizer, face a face. A realidade física parece retroceder proporcionalmente, à medida que avança a atividade simbólica do homem. Em lugar de lidar com as próprias coisas, o homem, em certo sentido, está constantemente conversando consigo mesmo. Envolveu-se por tal maneira em formas lingüísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou em ritos religiosos, que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão pela interposição desse meio artificial. Tanto na esfera teórica quanto na prática, a situação é a mesma. Nem mesmo nesta última vive o homem num mundo de fatos indisputáveis, ou de acordo com suas necessidades e desejos imediatos. Vive antes no meio de emoções imaginárias, entre esperanças, temores, ilusões e desilusões, em seus sonhos e fantasias. "O que perturba e alarma o homem", diz Epicteto, "não são as coisas, são suas opiniões e fantasias a respeito das coisas".
Do ponto de vista a que acabamos de chegar, podemos corrigir e ampliar a definição clássica do homem. A despeito de todos os esforços do irracionalismo moderno, a definição do homem como animal rationale não perdeu sua força. A racionalidade, com efeito, é uma característica inerente a todas as atividades humanas. A própria mitologia não é, pura e simplesmente, um conjunto vulgar de superstições ou de grosseiras ilusões. Não é puramente caótica, pois possui forma sistemática ou conceitual. (Veja Cassirer, Die Begrittstorm im mythischen Denken (Lipsia, 1921). Mas, por outro lado, fora impossível caracterizar como racional a estrutura do mito. A linguagem foi freqüentemente identificada com a razão, ou com a própria origem da razão. Mas é fácil ver que esta concepção não consegue abarcar todo o campo. É uma pars pro toto; oferece-nos uma parte pelo todo. Pois lado a lado com a linguagem conceitual há a linguagem emocional; lado a lado com a linguagem lógica ou científica há a linguagem da imaginação poética. Em primeiro lugar, a linguagem não expressa pensamentos nem idéias, mas sentimentos e afeições. E até uma religião "dentro dos limites da razão pura", como a concebeu e elaborou Kant, não é mais que uma simples abstração. Transmite apenas a configuração ideal, a sombra de uma genuína e concreta vida religiosa. Os grandes pensadores que definiram o homem como um animal rationale não eram empiristas, nem jamais tentaram oferecer uma explicação empírica da natureza humana. Por meio desta definição, expressavam antes um imperativo moral fundamental. Razão é um termo muito pouco adequado para abranger as formas da vida cultural do homem em toda sua riqueza e variedade. Mas todas estas formas são simbólicas. Portanto, em lugar de definir o homem como um animal rationale, deveríamos defini-Io como um animal symbolicum. Deste modo, podemos designar sua diferença específica, e podemos compreender o novo caminho aberto ao homem: o da civilização.
(1. Veja Cassirer, Die Begrittstorm im mythischen Denken (Lipsia, 1921).


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