segunda-feira, 26 de abril de 2010

"Não serei conhecido, serei uma lenda"


Livro narra a trajetória de Freddie Mercury, a principal estrela do Queen que abalou o Rock in Rio, em 1985


Lúcio Flávio

Para fugir do exílio na Ilha de Creta, Dédalos, pai de Ícaro, confeccionou dois pares de asas usando penas e cera. A fuga do desterro teria sido bem-sucedida se o filho não tivesse se aproximado tão perto do sol, derretendo seus alados acessórios. O incidente o levaria à morte. Meio que encarnando o personagem da mitologia grega, o cantor britânico Freddie Mercury também alcançou os pontos mais altos do firmamento na condição de astro de rock e, tal qual o herói ateniense, se viu diante da derrocada ao ser alvejado por doença incurável.

A analogia com o mito grego quem traça é o escritor francês Selim Rauer, autor de biografia sobre o líder da banda Queen que acaba de chegar às livrarias pela editora Planeta. "À princípio meu desejo era escrever um livro sobre música, especialmente sobre uma figura importante do rock, alguém que fosse, em minha opinião, simbólico o bastante, fascinante e capaz de trazer uma multiplicidade de acesso e entendimento. Achei que o paralelo com o mito de Ícaro poderia ser, em termos de literatura, muito interessante", comenta Rauer, em entrevista por e-mail.

"Não havia na França absolutamente nenhum livro sobre Freddie Mercury, então pensei na possibilidade de trabalhar numa biografia sobre esse artista. Minha meta foi fazer uma obra que fosse ao mesmo tempo acessível para qualquer um, mantendo o mais alto padrão de qualidade", confessa o autor, que trabalhou cinco anos no projeto.

Ao longo desse período, Rauer debruçou-se num minucioso trabalho de pesquisa que consistiu em livros, documentários e vídeos de bastidores dos shows, além das antológicas apresentações ao vivo do grupo. Também ouviu inúmeras pessoas que trabalharam ou conviveram com o artista, além dos três remanescentes integrantes da banda que já vendeu mais de 300 milhões de cópias em todo o mundo desde sua formação em Londres, em meados dos anos 1970. "Não sei se poderia dizer se esta é uma 'biografia definitiva' sobre o cantor. Sempre damos o melhor de si naquilo que fazemos."

Apesar das poucas fotos, a obra, intitulada simplesmente de Freddie Mercury, conta com narrativa honesta e direta sobre a trajetória do cantor. O mais intrigante diz respeito às origens de Mercury, que remontam à Ilha de Zanzibar, localizada ao largo da costa da Tanzânia. Foi ali que o artista nasceria em 5 de setembro de 1946 com o nome de Farrokh Pluto Bulsara. Seus pais, indianos seguidores da religião zoroastriana, tinham descendências persas e viveram na região até o início da década de 1960, quando tiveram que deixar a ilha devido a conflitos políticos e religiosos.

Radicada em Londres, a família Bulsara daria início a uma nova vida. Para o escritor Selim Rauer, a formação familiar do jovem Farrokh foi determinante para moldar o personagem Freddie Mercury. "Ele nunca falava sobre sua infância e origem, tudo isso era uma espécie de jardim secreto para ele. Tal inacessibilidade ajudou a criar o mito em torno de sua figura", observa Rauer.

Pompa
Como já era de se esperar, a melhor parte da biografia, óbvio, é quando o autor esmiuça os detalhes da formação de uma das bandas de rock mais importantes do planeta. Chama atenção detalhes como o símbolo imponente da banda criado por Mercury a partir de sua herança como designer e a origem do nome do grupo. "É grande, pomposo", justificaria o vocalista, que se autodefinia como uma prostituta do rock.

O livro detalha também como Farrokh Bulsara chegou ao nome e persona Freddie Mercury, este último rabiscado de um verso confuso escrito por ele próprio - "Mother Mercury, look what you have done to me, I can not run, I can not hide (Mamãe Mercury, veja o que você me fez, Não posso fugir nem me esconder) -, ou a forte influência exercida pela passagem do xamã Jimi Hendrix (para Mercury uma figura exótica) por Londres, entre 1965 e 1966, na sonoridade do que viria a ser o Queen.

Mais tarde seriam somados a esse rol de referências o rock purpurina do T-Rex, a poesia engajada de Bob Dylan e a química explosiva trabalhada entre o guitarrista Jimmi Page e o vocalista Robert Plant, as principais cabeças do Led Zeppelin. "Não serei conhecido, serei uma lenda...", vaticinou Mercury, bem antes de se tornar o mito que conhecemos.

Com a atenção devida de um crítico musical, coisa que não é, o escritor Selim Rauer vasculha com precisão os bastidores de cada álbum do Queen, mostrando não apenas a evolução, disco a disco, dos quatro integrantes, mas a força criativa de cada elemento da banda formada ainda pelo baterista Roger Taylor, o baixista John Deacon e o guitarrista Brian May, um dos principais compositores ao lado de Mercury. Vai mais além ao elucidar o estilo musical da banda que unia numa única paleta cores ilustrativas como música clássica, ópera, comédia trágica, rock, pop e uma boa dose de teatralidade.

Elementos facilmente detectados, por exemplo, na obra-prima A night at the opera, 1975. "Naquele momento, precisávamos de uma virada, de uma mudança radical, e apostamos tudo naquele álbum, sem saber onde aquilo nos levaria", registra, no livro, o baterista Roger Taylor. Outro tópico relevante abordado pelo autor foi a importância que o Queen teve como performance de palco com apresentações antológicas ao vivo em grandes estádios. A inovação da banda foi pomposa, condizente com o nome criado por eles e nesse sentido pode-se dizer que o quarteto londrino foi maior que os Beatles. Vai ficar para sempre na lembrança das pessoas a imagem de Mercury regendo um coro de mais de 200 mil vozes, no Rock in Rio, em 1985, quando cantou a imortal balada Love of my life.

UMA MORTE LENTA
Com algumas revelações surpreendentes, pelo menos aos olhos dos fãs brasileiros, entre elas, um casamento do astro com Mary Austin (com quem viria a ser grande amiga e principal retentora de seus bens), ainda no início da carreira, e o envolvimento amoroso com a atriz alemã, de origem austríaca, Barbara Valentin (na época um conhecido caso do cineasta alemão Werner Fassbinder), em meados da década de 1970, a biografia encontra o clímax nos últimos anos de vida do cantor. Período que vai de sua descoberta como portador do vírus HIV (um dos primeiro da esfera musical), até a morte lenta, triste e agônica de um superstar. O autor Rauer percorre os últimos passos do artista, mostrando a aflição dos colegas de trabalho e de pessoas próximas, passando pela preocupação dos fãs diante de visível degradação física do ídolo, e o assédio desavergonhado da imprensa sensacionalista britânica. Mostra o desespero e a preocupação de Mercury de todo tempo querer maquiar a morte, com a entrega total no estágio mais crítico da doença. "A morte de Mercury foi um desses dramas que provocam um autêntico choque na opinião pública. Aquele homem tinha encarnado todo um mundo, toda uma época. Com a morte de Mercury, Farrokh Bulsara é que seria enfim liberado", arremata o autor.

FREDDIE MERCURY
Selim Rauer. Editora
Planeta. 320 páginas.
R$ 49,90.

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