sexta-feira, 11 de julho de 2014

CORONEL DE BARRANCO

O romance Coronel de barranco

 

 
 

Lucilene Gomes Lima
 
 
FICÇÒES DO CICLO DA BORRACHA NO AMAZONAS
Estudo comparativo dos romances A selva, Beiradão e O amante das amazonas
 

O romance Coronel de barranco também apresenta um caso de negociação da mulher, sendo que, desta vez, ela é uma mercadoria trazida pelo regatão. Este é um dos poucos romances da borracha em que o seringalista é solteiro e  leva a vida a divertir-se com prostitutas estrangeiras nas viagens que faz a Manaus. As obras, em geral, apresentam seringalistas casados que aproveitam as viagens para aventuras extraconjugais. Cipriano, a personagem do seringalista, em Coronel de barranco, permanece sem mulher no barracão, até que recebe do regatão uma mercadoria que lhe custa um punhado de notas de quinhentos réis. A chegada dessa mercadoria é assim descrita pela personagem Matias: “[...] de braço dado com Cipriano vi a ‘encomenda’ chegando ao barracão, com chapéu de plumas, deixando pelo caminho forte odor de perfume francês, falando com um sotaque que me deu a impressão de ser eslavo”.[1]
            A chegada da mulher, para o seringalista, causa impacto, uma vez que no seu seringal a presença de mulheres é proibida pelo regulamento: “[...] a seringueirada toda a ‘imaginava’. À sua maneira, é claro. Com a imaginação superaquecida pela influência da prolongada abstinência carnal, que ia aos poucos temperando a realidade. Transformando a velha meretriz aposentada num verdadeiro mito. Quase uma deusa, inspiradora de sonhos lascivos e de excessos masturbatórios que confessavam sem a menor cerimônia”.[2] O privilégio da mulher que a personagem do seringalista pode auferir não fica sem castigo no romance, pois mesmo possibilitando luxo e conforto à prostituta negociada pelo regatão, tornando-a a ‘senhora’ do seringal, Cipriano é traído por ela e por seu empregado de confiança, que fogem juntos. A mulher mais uma vez acarreta um desfecho trágico na ficção da borracha: a personagem do seringalista vinga-se da traição com um duplo assassinato; é presa, condenada e ainda sofre a ruína econômica em virtude da baixa de preço da borracha.
            Dentre as obras referidas nesse capítulo, Deserdados é aquela que mais se concentra no aspecto da escassez e ausência da mulher no ambiente do seringal. Nos seus quinze capítulos, o livro aborda várias circunstâncias reveladoras tanto dos conflitos causados pela presença limitada da mulher quanto das alternativas extremas de que lançam mão os seringueiros para verem seu instinto sexual saciado. O episódio da disputa de uma mulher por dois seringueiros marca um dos momentos mais violentos da narrativa. Sugerindo precisamente que o ser feminino é disputado como uma presa, esse capítulo da luta feroz entre os seringueiros intitula-se “Caça á femea”. Como a luta não tem vencedor, ficando os dois contendores mortos, a mulher é abandonada à sorte e ensandece pela perda do companheiro e pela perda do que haviam construído juntos, a barraca incendiada durante a luta. A disputa pela mulher, entretanto, não termina com a cena sangrenta entre os dois seringueiros. Apesar de ela ter um idade avançada e ter perdido a lucidez, os seringueiros ainda a vêem como um possível usufruto:
 
Outro seringueiro famelico chamou de lado o patrão e em segredo lhe propôz a posse da virago imbecilizada, sob a recompensa de pagar-lhe a elle as dividas por ventura contraídas “por ambos” os freguezes assassinados. Mas quando em sua companhía, chegou ao local trajico, já outro lascivo havía tirado partído da irrezistencia da idiota e a conduzíra alhures, pelo labirinto da mata com o rafeiro, para uma outra cena horripilante que a contijencia do viver alí sujería e punha em pratica: a conjugação nojenta de uma carcaça repulsíva de mais de meio século de uzo com a seivoza compleição de um mancedo de vínte e poucos anos nos estertores morbidos da brutalidade antropoidesca da posse, sob a ramaría umbrosa, num leito de folhas e de líchens...
Ordenado pelo patrão sequiozo do saldo do melhor licitante, ía começar a emocionante caça á femea cretína, que outro famulento levava para a solitude florestal, á satisfação infrene dos instintos, á violência brutal da satiríaze...[3]


[1] Cláudio de Araújo LIMA, Coronel de barranco,  p. 255.
[2] Ibid., p. 257.
[3] Carlos de VASCONCELOS, Deserdados, p. 180.


Nenhum comentário: