sábado, 12 de setembro de 2015

A Paixão segundo G.H.


A Paixão segundo G.H.


Clarice Lispector 


 estou procurando, estou procurando. Estou tentando
entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas
não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi,
tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me
aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não a
saber como viver, vivi uma outra? A isso quereria chamar
desorganização, e teria a segurança de me aventurar, porque
saberia depois para onde voltar: para a organização anterior. A isso
prefiro chamar desorganização pois não quero me confirmar no
que vivi - na confirmação de mim eu perderia o mundo como eu o 
tinha, e sei que não tenho capacidade para outro.
Se eu me confirmar e me considerar verdadeira, estarei
perdida porque não saberei onde engastar meu novo modo de ser -
se eu for adiante nas minhas visões fragmentárias, o mundo
inteiro terá que se transformar para eu caber nele.
Perdi alguma coisa que me era essencial, e que já não me é
mais. Não me é necessária, assim como se eu tivesse perdido uma
terceira perna que até então me impossibilitava de andar mas que
fazia de mim um tripé estável. Essa terceira perna eu perdi. E
voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Voltei a ter o que nunca
tive: apenas as duas pernas. Sei que somente com duas pernas é
que posso caminhar. Mas a ausência inútil da terceira me faz falta
e me assusta, era ela que fazia de mim uma coisa encontrável por
mim mesma, e sem sequer precisar me procurar.
Estou desorganizada porque perdi o que não precisava? Nesta
minha nova covardia - a covardia é o que de mais novo já me
aconteceu, é a minha maior aventura, essa minha covardia é um
campo tão amplo que só a grande coragem me leva a aceitá-la -, na
minha nova covardia, que é como acordar de manhã na casa de
um estrangeiro, não sei se terei coragem de simplesmente ir. É
difícil perder-se. É tão difícil que provavelmente arrumarei
depressa um modo de me achar, mesmo que achar-me seja de
novo a mentira de que vivo. Até agora achar-me era já ter uma
idéia de pessoa e nela me engastar: nessa pessoa organizada eu
me encarnava, e nem mesmo sentia o grande esforço de
construção que era viver. A idéia que eu fazia de pessoa vinha de
minha terceira perna, daquela que me plantava no chão. Mas e
agora? estarei mais livre?
Não. Sei que ainda não estou sentindo livremente, que de
novo penso porque tenho por objetivo achar - e que por segurança
chamarei de achar o momento em que encontrar um meio de
saída. Por que não tenho coragem de apenas achar um meio de
entrada? Oh, sei que entrei, sim. Mas assustei-me porque não sei
para onde dá essa entrada. E nunca antes eu me havia deixado
levar, a menos que soubesse para o quê.
Ontem, no entanto, perdi durante horas e horas a minha
montagem humana. Se tiver coragem, eu me deixarei continuar 
perdida. Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o
que não entendo quero sempre ter a garantia de pelo menos estar
pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação. Como
é que se explica que o meu maior medo seja exatamente em
relação: a ser? e no entanto não há outro caminho. Como se
explica que o meu maior medo seja exatamente o de ir vivendo o
que for sendo? como é que se explica que eu não tolere ver, só
porque a vida não é o que eu pensava e sim outra como se antes
eu tivesse sabido o que era! Por que é que ver é uma tal
desorganização?
E uma desilusão. Mas desilusão de quê? se, sem ao menos
sentir, eu mal devia estar tolerando minha organização apenas
construída? Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a
um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz
porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era
bom. Mas era desse não-bom que eu havia organizado o melhor: a
esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O
medo agora é que meu novo modo não faça sentido? Mas por que
não me deixo guiar pelo que for acontecendo? Terei que correr o
sagrado risco do acaso. E substituirei o destino pela probabilidade.
No entanto na infância as descobertas terão sido como num
laboratório onde se acha o que se achar? Foi como adulto então
que eu tive medo e criei a terceira perna? Mas como adulto terei a
coragem infantil de me perder? Perder- se significa ir achando e
nem saber o que fazer do que se for achando. As duas pernas que
andam, sem mais a terceira que prende. E eu quero ser presa. Não
sei o que fazer da aterradora liberdade que pode me destruir. Mas
enquanto eu estava presa, estava contente? Ou havia, e havia,
aquela coisa sonsa e inquieta em minha feliz rotina de prisioneira?
Ou havia, e havia, aquela coisa latejando, a que eu estava tão
habituada que pensava que latejar era ser uma pessoa. É?
Também , também.
Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi
minha formação humana. Não sei se terei uma outra para
substituir a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não
usar superficialmente uma nova terceira perna que em mim
renasce fácil como capim, e a essa perna protetora chamar de uma
verdade Mas é que também não sei que forma dar ao que me 
aconteceu. E sem dar uma forma, nada me existe. E - e se a
realidade é mesmo que nada existiu?! Quem sabe nada me
aconteceu? Só posso compreender o que me acontece mas só
acontece o que eu compreendo - que sei do resto? O resto não
existiu. Quem sabe nada existiu! Quem sabe me aconteceu apenas
uma lenta e grande dissolução? E que minha luta contra essa
desintegração está sendo esta: a de tentar agora dar-lhe uma
forma? Uma forma contorna o caos, uma forma dá construção à
substância amorfa - a visão de uma carne infinita é a visão dos
loucos, mas se eu cortar a carne em pedaços e distribuí-los pelos
dias e pelas fomes - então ela não será mais a perdição e a
loucura: será de novo a vida humanizada.
A vida humanizada. Eu havia humanizado demais a vida. 

Um comentário:

Jefferson Bessa disse...

Que peso teve este livro nas minhas leituras. Ainda me lembro...
Jefferson.