domingo, 29 de novembro de 2015

ADEUS, NAURO MACHADO



CALENDÁRIO

Tomaste parte em nenhuma outra guerra.
Não perdeste pés ou mãos dentro desta.
Não abriste túmulo em nenhum lugar.
Nada quiseste além dos teus haveres.
Teu país de bois na aurora plantados,
levou-o o tempo na usura do ocaso.
Fizeste nada sábado, domingo,
segunda, terça, quarta, quinta e sexta.
Igual a todos, somaste semanas,
Unindo a noite ao dia e o dia às noites.
Escuta: o tempo passa! E o teu passou.
Passou o bonde, o colégio, a criança.
Já o adulto vai-se: está chegando ao fim
como um ronco doído em cosa podre,
como um enlatado para ninguém.
Made in Brazil. Tonel à água lançado
No porto noite. Minha família! Ó alma.

         Masmorra Didática, 1979


FILA INDIANA

Um atrás do outro, atrás um do outro,
ano após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século
após séculos, continuam

(a conduzir seus madeiros
na perícia dos próprios dramas).

um após do outro, atrás um do outro,
anos após ano, ano após outros,
minuto após minuto, século
após séculos, e de novo

um atrás do outro, atrás um do outro,
até a surdez final do pó.


AS PRAGAS

Porque não estive às portas de Madri,
de onde escuto, ainda, o “no pasarán”.
Te abjuro, Senhor, enfim, e a Ti,
a quem, outrora, chamei de pai e bom.

Porque não estive às portas de Madri,
lutando, às claras, com porcos-burgueses,
luto e lutarei, em trevas, por aqui,
Te abjurando, Pai, por milhões de vezes.

Entanto, saibam-no todos, e ouvi
que aos homens-bestas, com meus punhos, sorvo-os
enquanto, ao longe, às portas de Madri,
se erguer, incólume, o sangue dos povos!

         Décimo Divisor Comum, 1972


CAXANGÁ

Há um desespero real na palavra,
um desespero contra o desespero,
enlouquecido em tudo que é palavra
incapaz de dizer o real nela,
e um desespero dentro, um desespero
da palavra assentada na palavra,
de palavra assentada nela mesma,
canal e boca de uma angústia virgem,
de um dia novo contra a noite fora
envolvendo de luto os nomes todos:
Antônio, tênis, sonho, árvores, morte.
Sombra dentro de sombra, mas girando
em rodopio eterno, o pião da sombra,
o que fazer da voz, senão clamar
em uivos de absurda sombra, à noite
geradora de braços e destroços
vagando intérminos no extinto brado?



Morreu na madrugada deste sábado (28) o poeta e escritor maranhense Nauro Machado. Aos 80 anos, ele estava internado desde terça (24) em um hospital em São Luís (Maranhão) em razão de uma hérnia de disco. O velório seria realizado, na Academia Maranhense de Letras ainda neste sábado. O enterro será no domingo (29). Traduzido para o inglês, o francês e o alemão Nauro ganhou prêmios e honrarias, inclusive da Academia Brasileira de Letras. Em agosto, recebeu uma homenagem da Academia Maranhense de Letras pelos seus 80 anos. Com 37 livros publicados, o literário autodidata lançou em novembro de 2014 o último trabalho, "Esôfago Terminal". Inspirado na sua luta para superar um câncer de esôfago, é composto de 284 poemas.




Da doença nasce a poesia: Nauro Machado lança O Esôfago Terminal


SÃO LUÍS – Versos memorizados e, somente depois, postos no papel. Assim foi o processo de criação do novo livro do escritor maranhense Nauro Machado. O Esôfago Terminal reúne poemas pensados durante a internação do literário na Casa de Saúde São José, no Rio de Janeiro, enquanto lutava contra um carcinoma no esôfago. O autor, que passou por uma cirurgia, criou 284 poemas sobre enfermidade e morte e, após sair do hospital, recompôs estrofe por estrofe. Em entrevista ao Imirante.com, ele falou sobre a obra que reafirmou qualidades como força e capacidade de memorização.

“Foi escrito durante, aproximadamente, 40 dias. Todo mentalmente. Somente depois passei a mão. Sempre fui assim. Anos atrás, eu perdi o original de um livro chamado Zoologia da Alma. Mandei pelos Correios, e foi extraviado. Eu fiquei desesperado. Consegui reconstituir todo o livro, o que causou a maior surpresa. Vírgula por vírgula o livro foi recomposto”, contou.

Machado ressaltou que escrever poesia sempre foi uma necessidade na sua vida, por isso começou bem cedo, aos 12 anos. “Poesia foi o que sempre fiz na minha vida, a vocação que eu sempre tive. É a justificativa para minha vida que algumas pessoas dizem ser inútil e frustrada. É necessária para a poesia são-luisense” afirma.


Hoje, aos 79 anos, ele entrega uma obra que nasceu do sofrimento no leito de um hospital. O lançamento de O Esôfago Terminal, pela Editora Contraponto, ocorre nesta quarta-feira (12), às 19h, no Centro de Criatividade Odylo Costa, filho, na Praia Grande.

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